por António Cruz Mendes
Terence Fisher realizou dezenas de filmes protagonizados por uma vasta galeria de conhecidos monstros: Frankenstein, Drácula, o Fantasma da Ópera, a Múmia… Desvalorizados pela crítica quando estrearam, houve quem viesse mais tarde a reconhecer a sua qualidade.
Em As duas faces do Dr. Jekyll, Terence Fisher trouxe para a tela dos cinemas a personagem da bem conhecida novela O Médico e o Monstro. No entanto, o argumento de Wolf Mankowitz é estranho à história escrita por R. L. Stevenson. Nesta, só há protagonistas masculinos mas, no filme, a mulher tem um papel fundamental e, tal como sucede noutras obras de Fisher, o horror associa-se ao erotismo. Muitos recordarão por certo, a volúpia com que, nos seus filmes, jovens donzelas oferecem o seu pescoço aos dentes do Conde Drácula... Neste caso, grande parte da acção decorre em dois cenários contrastantes: o ambiente do laboratório do Dr. Jekyll, sombrio, austero e monocromático, e o da Esfinge, um cabaret onde as cores explodem e reina a liberdade e a devassidão. Estes dois mundos espelham-se no rosto dos protagonistas. O Dr. Jekyll e o Mr. Hyde são encarnados pelo mesmo actor, mas Paul Mason, quando assume o papel do primeiro, aparece-nos com uma cabeleira e sobrancelhas postiças, uma fácies torturada e o rosto sob uma pesada maquilhagem e, quando encarna o segundo, surge-nos despido de todos esses adereços, livre, espontâneo, de olhar fulgurante e sorriso aberto.
O conflito interior do Dr. Jekyll com o seu alterego, Mr. Hyde, tem sido por vezes entendido como exemplificando aquele que opõe o Id ao superego. Para Freud, o Id, fonte de impulsos e desejos inconscientes, busca o prazer imediato. É irracional e amoral. O superego, pelo contrário, encarna os valores socialmente aceites e funciona como um juiz da acção humana. O conflito entre ambos é gerido de uma forma apenas parcialmente consciente pelo ego, que obedece ao “princípio da realidade”, procurando minimizar todas as consequências negativas que possam advir da busca do prazer. Embora a novela de Stevenson tivesse sido escrita muito antes de Freud ter enunciado a sua teoria psicanalítica, esta tese pode corresponder ao facto de, nela, Mr. Hyde ser descrito como um tipo impulsivo e bestial, mas também como sendo muito baixo, de uma altura muito inferior à do Dr. Jekyll, o que se explicaria por o seu ser ter vivido sempre reprimido, impedido de se exercitar livremente.
No filme de Terence Fisher, apesar de Mr. Hyde nos aparecer sob uma forma de um homem atraente e bem-parecido, essa interpretação também é admissível. O diabo tem de saber ser tentador. Porém, As duas faces de Dr. Jekyll pode sugerir-nos outras leituras. Há nele uma nota de crítica social que importa sublinhar, uma denúncia da hipocrisia da puritana sociedade Vitoriana, da qual a Esfinge nos revela uma das suas faces ocultas. Quando Hyde quer conhecer os bas fonds da sociedade inglesa, é Paul Allen, um gentleman na sua aparência, que lhe serve de guia. E pode ser visto ainda como um caso de crime passional. Apesar do seu cinismo e da sua hipocrisia, Kitty está apaixonado por Allen e rejeita tanto os pedidos de ajuda de Jekyll, como os avanços amorosos de Hyde. E este, que a estupra e assassina, acaba por ser o instrumento da vingança de Jekyll. Será, talvez, a necessidade imperiosa de a realizar o que pode explicar que, no conflito interior que o consome, acabe por ser Hyde a levar a melhor.
Enfim, na novela de Stevenson, o honrado Jekyll suicida-se porque percebe que essa é a única forma que lhe permite liquidar o brutal e sádico Hyde que o habita. No filme de Terence Fisher, o final fica em aberto. Diante dos olhos da polícia, Jekyll e Hyde revelam-se como uma só pessoa, mas o autor material dos crimes cometidos praticou-os contra a vontade do homem que têm diante de si. Como irá lidar a Justiça com o seu caso?
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