quinta-feira, 28 de março de 2019

125ª sessão: dia 28 de Março (Quinta-Feira), às 21h30


Já passámos Touchez pas au grisbi de Jacques Becker, na velha-a-branca, mas não foi sob a égide das preferências de João Bénard da Costa (apesar de ter sido dele a folha de sala que acompanhou a sessão). Este ano voltamos ao grande cineasta francês, ainda muito subvalorizado um pouco por todo o lado mas um dos maiores vultos do cinema desse país, com Casque d'or, a nossa próxima sessão.

Quando esteve na América, Bertrand Tavernier, de quem já exibimos Voyage à travers le cinéma français, de 2016, falou de Becker para a Film Comment e deixou sair que "eu sei que ele não é conhecido neste país, e é uma pena, porque para mim ele é, se não o maior, então um dos maiores realizadores franceses dos anos quarenta e cinquenta. Um dos maiores. Um dos mais subvalorizados neste país. Sei que repuseram o Antoine et Antoinette recentemente, que é uma obra-prima, mas Edouard et Caroline é uma comédia maravilhosa: muito, muito engraçada, com um espaço tremendo, e alguns momentos em que se torna subitamente sério. Mesmo no fim, há um momento em que se podia tornar num drama. É feito com tanta graciosidade e elegância na direcção.

"Eu acho Becker o igual de - se não melhor que - mesmo pessoas como Hawks. Tinha um alcance tão vasto: de Casque d'or to Eduardo e Carolina, ou de Antoine et Antoinette a Touchez pas au grisbi ou O Buraco. Um alcance enorme, e sempre com a mesma qualidade profundamente orgânica. Ele estava a fazer coisas que eram extremamente arrojadas e extremamente novas, mas eram feitas de forma tão fluída que ninguém reparava quão novas eram. A personagem de Gabin em Touchez pas au grisbi, por exemplo, precede todos os anti-heróis dos anos sessenta e setenta: pela forma como é macho com as mulheres, ou a forma como quer ir cedo para a cama. É uma destruição da imagem de Gabin, e de toda a imagem romântica do herói. Este gangster é apenas um burguês que quer ter uma mulher burguesa e não vai dormir tarde nem tem quaisquer problemas. Isso era incrivelmente arrojado para alguém como o Gabin. Há muito poucos actores que estariam dispostos a desafiar a sua própria imagem dessa forma: ele tinha a reputação de ser o grande sedutor, o tipo romântico, o herói de todos os filmes do pré-guerra. E depois estava a interpretar o oposto. Adoro isso."

Em Les films de ma vie, título que serviu de inspiração tanto para as crónicas do jornal O Independente como para os livros em que João Bénard da Costa as reuniu para a Assírio & Alvim, o crítico e cineasta François Truffaut escreveu que «Casque d'Or é o único filme que Jacques Becker - normalmente muito meticuloso, absorvido pelo detalhe, obsessivo, inquieto, e às vezes incerto - alguma vez fez de um só golpe, de forma muito rápida, em linha recta do princípio ao fim. Escreveu o diálogo coloquial e de aparência tão natural de forma tão económica que se tem a impressão de Reggiani não dizer mais do que sessenta palavras.

«Nós, que amamos Casque d'Or, temos claro nas nossas mentes que Simone Signoret e Serge Reggiani tiveram nele os seus melhores papéis de sempre, mesmo que o público francês (mas não o inglês, decididamente mais subtil) tenha sido frio para com a sua união paradoxal, tão bela precisamente devido aos seus contrastes - um homem pequeno e uma mulher grande, o pequeno gato de rua que é feito apenas de coragem, e a linda planta carnívora que não se recusa a qualquer pedaço.

«Se se está interessado de todo na forma como as histórias são construídas, não se pode deixar de admirar o engenho da trama, particularmente a forma intensa, oblíqua e inesperada como chega abruptamente à execução de Manda numa cena que é tão bela como misteriosa, quando a Casque d'Or chega a um hotel de má reputação a meio da noite. Quando eu ou algum dos meus colegas argumentistas estamos em sarilhos, dizemos muitas vezes uns aos outros, "Que tal uma 'solução à Casque d'Or'?"»

No Dictionnaire, o irmão Jacques escreveu que "o trágico latente e disperso, que às vezes irrompe de forma inesperada em vários filmes de Becker (Goupi mains rouges, Falbalas), é aqui exibido à luz do dia e constitui o objectivo principal da obra. Os heróis são vítimas tanto da sua condição social como do seu destino individual. Vivem num mundo cruel de que Becker quis dar uma descrição sóbria e desprovida de trivialidade e de pitoresco. Porque a rapariga e o operário, por causa de uma espécie de dignidade que lhes é própria, parecem ambos superiores ao seu destino. O trágico da história deles encarna-se numa reconstituição precisa e comovente da periferia de Paris nos anos anteriores a 1914. Essa intensidade concreta na recriação vívida de uma época e de um lugar - os costumes, as atitudes e o falar das personagens - e essa saliência nos gestos e nas vozes dos actores (todos praticamente inesquecíveis e encontrando aqui os seus melhores papéis) fazem de Becker o cineasta francês por excelência. Nele não há nada de teórico, obediência alguma a uma tendência estética que poderia manchar a homogeneidade e a sinceridade da obra. Nos filmes dele fala apenas a matéria. É elaborada por um artista exigente e minucioso como um artesão. Casque d'or teve um insucesso bem conhecido na estreia. Devido à «lentidão do andamento, à ausência de qualquer elipse e à abundância dos tempos mortos», segundo o próprio Becker (in «Cahiers du cinéma» n° 32). Também se pode dizer: pela negritude sem concessões do tom e pela irrupção do trágico onde se esperava uma certa futilidade e o pitoresco dos romances populares. Alguns anos mais tarde, como foi o caso com Le carrosse d'or ou Le plaisir, outros memoráveis fracassos comerciais, o filme tornou-se um clássico do cinema francês aos olhos de todos.

"Biblio. : argumento e diálogos in «L'Avant-Scène» nº43 (1964)."

Até Quinta!

segunda-feira, 25 de março de 2019

Sommarlek (1951) de Ingmar Bergman



por João Bénard da Costa

Quem me tem vindo a seguir, já sabe, nesta altura do campeonato, por que é que Sommarlek é o mais belo dos filmes. Há os que já perceberam ou os que nunca hão-de perceber nada. Tanto para uns como para outros, não adiantam mais explicações. 

Por isso, se eu digo e repito que Sommarlek é o mais belo dos filmes, posso acrescentar que – só em Ingmar Bergman – há mais sete filmes que são também o mais belo dos filmes. Por ordem cronológica, Sasom i en Spegel (Em Busca da Verdade) de 1961, Nattvardsgästerna (Luz de Inverno) de 1963, Tystnaden (O Silêncio) de 1963, Persona (A Máscara) de 1966, Vargtimmen (A Hora do Lobo) de 1968, Ansikte Mot Ansikte (Face a Face) de 1975 e Saraband de 2004. 

Bergman não gostou do tal artigo de Godard nem da conversa do «mais belo dos filmes». Achou que ele mistificava ou, para ser mais exacto, que apresentava as coisas magicamente (o que é verdade). E devolveu-lhe o elogio: «É exactamente o que ele próprio fez, feiticeiro vítima do seu próprio feitiço. Neste artigo, estava a escrever sobre ele, não sobre mim». Podia repontar-se a Bergman: alguma vez ele filmou sobre outros e não só sobre ele?

Mas Bergman também colocou sempre Sommarlek, décima das suas longas-metragens, num lugar muito especial. «Pela primeira vez» - disse ele - «senti que estava a funcionar com total autonomia, com um estilo já só meu, com uma especificidade particular que era minha e só minha e mais ninguém podia imitar». E, se acusou Godard de falar dele (Godard) em vez de falar do filme, também disse que Marie, a bailarina protagonista de Sommarlek, era ele (Bergman). «Há imensas coisas minhas em Marie. Marie, o director do ballet e David, o medíocre e indolente jornalista, são, os três, projecções minhas.» Já de Henrik, o pobre estudante, disse que lhe tinha servido apenas de cabide. «Nunca me interessou muito.»

Marie foi um conto de Bergman, antes de ser o filme Sommarlek. Um conto que escreveu em 1937, com 19 anos, «sobre umas férias de verão nas rochas e o primeiro grande amor.»

Marie e Henrik conheceram-se aos 17 anos, numa ilha do norte da Suécia, onde passaram as férias de verão. Ela, em casa dos tios. Ele, em casa de uma tia viúva e cancerosa, que, ao sol da meia-noite, jogava xadrez com um padre. Era perigoso e terrível o mundo podre dos adultos. O tio lúbrico, que já comera muito a senhora mãe dela e agora lhe andava à roda da carne fresca. A tia, roída pelo cancro até às entranhas, beata e sempre vestida de negro. Aos 17 anos, esses sinais perturbam mas não escurecem. Como as nuvens negras que só momentaneamente tapam o sol. Nenhuma dessas aves de mau agouro impediu o belo amor dos adolescentes, esse amor de nunca mais e como nunca mais. Nos dias sem fim do brevíssimo verão, pela primeira vez aquela mulher conheceu um homem, e, pela primeira vez, aquele homem conheceu uma mulher. Os corpos, as almas. Até que um dia, uma noite, depois de mais um dia, de mais uma noite, voltaram à praia, às rochas e ao mar, como todos os dias voltavam. Como todos os dias, Henrik quis mostrar a Marie um dos seus belos mergulhos. A maré estava mais baixa ou o salto foi menos exacto. Henrik bateu com a cabeça numa rocha. A agonia num hospital, a morte. Aos 17 anos.

Agora, sim, tudo ficou tapado para Marie. Num plano fabuloso, virada para nós e de costas para o tio, que a tinha ido buscar, diz-lhe: «Não acredito que Deus exista. E, se existe, odeio-O. E nunca deixarei de O odiar. Se O visse na minha frente, cuspia-Lhe na cara. Odiá-Lo-ei durante toda a vida.»

Marie queria ser bailarina, esquecia-me de dizer. Foi-o. Mas a alma não se moveu mais. Deixou-se ser amante do tio, que conseguiu do desespero o que não conseguiu da esperança. O tempo cura tudo? Pelo menos, é provável que ela se tenha esquecido muito. Conheceu David, o jornalista que queria casar com ela. Já não tinha mais 17 anos, mas 30. Treze anos depois. E, numa noite de espectáculo (O Lago dos Cisnes), o tio mandou-lhe ao teatro o diário de Henrik, que ele retirara no hospital e que, durante treze anos, nunca lhe tinha mostrado. Marie volta à ilha, pela primeira vez, depois. Ainda lá vive, cada vez mais velha e cada vez mais cancerosa, a tia de Henrik. Ainda lá vive o tio, a tocar Chopin ao piano. Quando volta depois do espectáculo, decide-se a casar com David, para quem não tinha muita pachorra.

Isto tudo assim arrumadinho, de pouco serve. Até porque no filme nada está arrumadinho. Começa na noite em que Marie recebe o diário de Henrik e avança por flash-backs, dentro de flash-backs daquele jeito peculiar que, a partir de Sommarlek, sempre foi de Bergman, de se servir desse processo para abrir portas para o passado. E acaba com um happy end (que não é happy end): Marie a aceitar casar com o jornalista.

Marie, como disse, tem 30 anos no fim do filme, que, de propósito, não chamo o presente dele. Bergman tinha 33 quando o filmou. Ambos sabiam já que «nunca mais» a luz dos 17 ou dos 19 voltaria, que «nunca mais» se comerão morangos como aos 17 se comem, que «nunca mais» o mar e as rochas serão vistos com os mesmos olhos. Ambos sabiam que «nunca mais» voltam the days of wine and roses. Por isso, ambos podem olhar para o «verão do amor» (foi assim que o filme se chamou em Portugal, quando por aqui se estreou em 1963, treze anos depois de ser rodado) tão enfeitiçados como Bergman dizia que Godard estava. Mas, aos 33 anos, também já se pode ter o recuo suficiente e necessário – não mais, não menos – para não tropeçar em qualquer sentimentalismo e para olhar os personagens e os reflexos deles com tanta saudade quanto limpidez.

Sommarlek – apesar do happy end ou por causa do happy end – é um filme de dor e de nostalgia, um filme de luto. No camarim de Marie, depois de ela voltar da ilha, o director da companhia, vestido de palhaço (vai representar o papel de Copellius no bailado de Delibes) surge-lhe no espelho e especularmente lhe diz as palavras de um sage que a ajudam a recomeçar em circulação. Será mais forte essa máscara e esse mágico discurso, ou a máscara silenciosa da tia de Henrik, imagem da morte, que, nessa mesma tarde, ela reviveu na ilha? Será mais forte essa máscara e essas mágicas palavras, ou as palavras «diabólicas» que ouviu do tio, prometendo ajudá-la e ensiná-la a «murar-se» contra o mundo, criação do diabo? O tio ofereceu-lhe o «muro», a velha do guarda-chuva a existência de fantasma, o palhaço propõe-lhe a aceitação. Nada nunca mais se repete. É por isso que tudo sempre deve ser repetido. Nunca mais voltará o «esplendor das rochas», mas o que podemos fazer é arrancar as máscaras, como essa de bailarina, que as lágrimas de Marie desfazem enquanto ouve o mestre e se olha ao espelho. Assumir a nudez da cara com que ficámos é assumir a nudez da imagem que o espelho nos reflecte dessa cara.

O grande prodígio de Sommarlek – um dos grandes prodígios – é a dissolução de tudo em tudo, do tempo para amar no tempo para morrer e do tempo para morrer no tempo para amar.

Pelo tempo – badaladas de um relógio – começa o filme. E a imagem do relógio funde-se com a de girassóis e pássaros, barcos e mar. Do tempo, passamos ao templo – a Ópera, o Ballet –, na noite em que foi devolvido o diário de Henrik e em que alguém diz que há um cheiro esquisito no teatro. Quando o espectáculo vai começar, o bailado mágico de Tchaikowski é magicamente interrompido por «um problema de electricidade». As bailarinas falam do envelhecimento (caras de 45 anos em corpos de 18) e começam os grandes planos tácteis de Maj-Britt Nilsson, ela também a mais mágica de todas as actrizes de Bergman.

E os sinais continuam a acumular-se. A zanga com David, o padre do passado em cima de uma bicicleta, o regresso de Marie à ilha, o vento na banda-sonora, uma nuvem negra a tapar o sol. Depois, o primeiro flash-back.

Uma história de frutos e flores, de sol e águas transparentes. Uma história de sítios secretos, de pássaros de verão, de nuvens e rochas. Pavões, Chopin, a casa dos tios, a primeira noite de amor feito, uma bola de sabão, uma profundidade de campo ilimitada, uma paz mizoguchiana. E, sobre tudo e todos, a afirmação carnal, irradiante, dos jovens corpos de Marie e Henrik. Tão depressa tudo se ilumina como tudo se obscurece, manchas de adultos e claridades de adolescentes, pagando-se e despegando-se.

Mas do que eu mais gosto é da passagem do primeiro flash-back ao «presente», quando Marie regressa à casa de verão, agora deserta e com móveis tapados com panos, ouvindo o mesmo Chopin que ouviu na primeira noite e repara que as mãos do tio são belas e horríveis e lembra-se que as mãos de Henrik o eram também. Tudo é belo e horrível. Tão belo e tão horrível.

Mas do que eu mais gosto (segundo flash-back) é da sequência, na última noite de Marie e Henrik, em que eles ouvem discos de 78 rotações e vêem desenhos animados num projector de 8mm. E é do fim dessa sequência com o beijo. Os anéis, as juras, «tremer de frio e de medo».

Mas do que eu mais gosto é da elipse da queda e da morte de Henrik e do longuíssimo plano da longuíssima vigília dela, junto do corpo dele no hospital, até o médico lhe fechar os olhos.

Mas do que eu mais gosto é da duração infinita desse plano fixo da cara dela, da revolta rouca dela. É o fim do filme, não é o fim do filme.

O resto vemo-lo num espelho. Entre O Lago dos Cisnes e Copélia. Tudo se passa entre dois bailados, duas danças. Como Godard dizia, «l'éternité au secours de l'instantané».

Sommarlek é o mais belo dos filmes. Sabe tão bem voltar a dizê-lo com a boca cheia. 

in «Os Filmes da Minha Vida – 2º volume», Assírio & Alvim, Lisboa, Maio de 2007, pp. 32-37.

quarta-feira, 20 de março de 2019

124ª sessão: dia 21 de Março (Quinta-Feira), às 21h30


A nossa próxima sessão na Casa do Professor é muito especial.  Um Verão de Amor de Ingmar Bergman (o belo título original é Sommarlek) é um dos filmes mais amados pelo João Bénard da Costa a que nos temos dedicado e nos dedicaremos até ao final de Junho. "O mais belo dos filmes," com direito a lugar de relevo no segundo volume de "Os Filmes da Minha Vida".

A expressão "o mais belo dos filmes" é explicada por Jean-Luc Godard num dos seus textos fundamentais para os Cahiers du Cinéma, "Bergmanorama", em que escreveu que "há cinco ou seis filmes na história do cinema que se apetece criticar dizendo apenas, 'é o mais belo dos filmes.' Porque não há elogio mais belo. Na verdade, porque é que se há-de dizer mais sobre Tabu, Viagem em Itália ou Le Carrosse d'or? Como a estrela do mar que se abre e se fecha, eles sabem revelar ou esconder o segredo de um mundo de que são o único receptáculo e também o fascinante reflexo. A verdade é a verdade deles. Eles carregam-na profundamente em si mesmos, e no entanto o ecrã rasga-se a cada plano para a semear aos quatro ventos. Dizer deles, 'é o mais belo dos filmes', é dizer tudo. Porquê? Porque é assim. E só o cinema se pode permitir esta espécie de raciocínio infantil sem falsas vergonhas. Porquê? Porque é o cinema. E porque o cinema é suficiente só por si. Para gabar os méritos de Welles, Ophüls, Dreyer, Hawks, Cukor, e até Vadim, só se precisa de dizer, 'é cinema.' E quando o nome de grandes artistas dos séculos passados vem por comparação sob a nossa pena, não queremos dizer mais nada. Por outro lado, imagina-se um crítico a louvar o último romance de Faulkner dizendo: é literatura; ou o último Stravinsky ou Paul Klee dizendo: é música, é pintura? E ainda menos com Shakespeare, Mozart or Rafael. Nunca ocorreria a um editor, mesmo Bernard Grasset, lançar um poeta com o slogan: isto é poesia! Mesmo Jean Vilar, quando trouxesse de volta Le Cid, não sonharia em anunciá-lo em posters como: isto é teatro! Enquanto que 'isto é cinema!' é mais do que uma palavra-passe, é o grito de guerra tanto do promotor de filmes como do cinéfilo. Em suma, não é certamente o menor dos privilégios do cinema atribuir a sua própria existência como a sua justificação, e retirar ao mesmo tempo a sua estética da ética. Cinco ou seis filmes, disse eu, + 1, porque Um Verão de Amor é o mais belo dos filmes."

Já Ingmar Bergman explicou a génese do filme na sua segunda auto-biografia, Bilder, dizendo que “Um Verão de Amor tem uma longa história. Vejo agora que a sua origem se encontra numa aventura amorosa bem comovente que tive num Verão quando a minha família residia na ilha de Ornö. Tinha dezasseis anos e, como sempre, estava encalhado com estudos acrescidos durante as minhas férias de Verão e só podia participar ocasionalmente em actividades com gente da minha idade. Além disso, não me vestia como eles; era magro, tinha acne, e gaguejava sempre que quebrava o meu silêncio e olhava para cima ao ler Nietzsche.

"Era uma vida fantástica de indolência e auto-indulgência numa paisagem prístina e sensual. Mas como disse, estava bastante sozinho. Na extremidade desta suposta Ilha do Paraíso, na direcção da baía, vivia uma rapariga que também estava sozinha. Cresceu um amor tímido entre nós, como acontece muitas vezes quando dois jovens solitários se procuram um ao outro. Ela vivia com os pais numa casa grande e estranhamente inacabada. A mãe dela era de uma beleza um pouco desvanecida, mas fora do comum. O pai dela tinha tido um acidente vascular cerebral e sentava-se imóvel na grande sala de música ou no terraço virado para o mar. Vinham senhoras e senhores importantes em visitas para ver e admirar o exótico jardim de rosas. Na verdade, foi um bocado como entrar directamente num dos contos de Tchehov.

“O nosso amor morreu quando chegou o Outono, mas serviu como base para o conto que escrevi no Verão depois dos meus exames. Quando fui para a Svensk Filmindustri para trabalhar como escravo de argumentos, recuperei-o e poli-o para guião cinematográfico. Estava emaranhado em si mesmo e cheio de flash-backs, dos quais não conseguia sair. Escrevi várias versões, mas nada batia certo. Depois, Herbert Grevenius veio em meu socorro. Cortou os episódios supérfluos todos e conseguiu arrancar a história original. Graças aos esforços dele, consegui que o argumento fosse finalmente aprovado para produção.”

No Dictionnaire, Jacques Lourcelles escreve que Um Verão de Amor é "um dos filmes mais maduros e mais bem conseguidos de Bergman. (Eles pertencem na sua maioria à primeira parte da sua obra, antes de O Sétimo Selo.) Uma temática bem pouco original é ilustrada com uma grande coerência formal, obtida a partir de elementos dramática e filosoficamente díspares. A lembrança da claridade do primeiro amor é invadida por signos maléficos e fúnebres que teriam todas as chances de engolir a sua heroína na altura da sua lamentação, se a sua força instintiva (extraída da sua feminidade) e também a sua capacidade de esquecimento não a tivessem protegido. Mas o esquecimento tem um tempo apenas. Nos dias de hoje, no silêncio íntimo da sua meditação (provocada pela leitura do diário do seu primeiro amante), para ela já não se trata de esquecer, de apagar o passado, mas em vez disso de o fazer voltar à superfície para o exorcizar. Com a descoberta pessimista de um mundo sem Deus (que escandalizou até à blasfémia a adolescente que ela era) sucede-se, depois de uma passagem pelo vazio e de uma certa morosidade, um optimismo confuso em que a ausência de Deus é compensada por um consentimento com o amor temporal na sua precariedade e nas suas imperfeições. O uso dos interiores (os bastidores ruidosos do teatro, o camarim silencioso onde a dançarina limpa a maquilhagem) e dos exteriores (o resplendor paradisíaco da água: espelho da fugacidade da felicidade e lugar trágico da aparição da angústia) traduz os estados de alma sucessivos e transitórios da heroína com uma sóbria maestria. Interpretação notável de Maj-Britt Nilsson, sintetizando com uma unidade perfeita os dois momentos e os dois estados da sua personagem até esta se transformar numa terceira personagem, mais desencantada, mas também mais experiente no que se poderia chamar «o árduo ofício de viver».

"BIBLIO: argumento e diálogos in Bergman: «Oeuvres». Robert Laffont, 1962."

Até Quinta-Feira!

segunda-feira, 18 de março de 2019

Oyû-sama (1951) de Kenji Mizoguchi



por João Bénard da Costa

A segunda das “três senhoras” de Mizoguchi chamou-se Oyu e o cineasta foi buscá-la a um dos maiores romancistas japoneses do século XX, Junichirô Tanizaki (1886-1965), que a criara no conto Ashikari, de que existem traduções inglesa e francesa. Deux Amours Cruelles chamou-se a tradução francesa, editada pelo Stock em 1979. Para além de uma obra imensa, publicada entre 1910 e 1965, Tanizaki foi o homem que, em 1932, verteu para japonês moderno um dos monumentos da literatura clássica do seu país: os celebérrimos Contos de Genji de Murasaki Shikibu (Lady Murasaki, como alguns a conhecerão) que os escreveu há quase mil anos, entre 1007 e 1010. Outros ou os mesmos saberão que os famosos Contos foram uma das fontes de inspiração de Paulo Rocha para o seu filme O Desejado (1987). Quando ouvirmos, no filme, Oyu citar Os Contos de Genji entre as suas obras favoritas, não é para estranhar, vindo de quem vem. E é curioso recordar que os contemporâneos chamaram a Tanizaki “o escritor das mulheres” e que a sua obra foi caracterizada como um permanente documento sobre “o eterno feminino”. Tal como Mizoguchi. 

Apesar da aproximação temática que alguns críticos japoneses têm feito entre a obra de Tanizaki e a de Mizoguchi, nem o realizador nem o argumentista ficaram com boas recordações do filme. No livro, a narrativa é um longo “flash-back”, quando um já velho Shinnosuke conta a história da sua vida. Diz o argumentista Yoda: “De início, procurei conservar o carácter onírico da recordação e manter a construção em 'flash-back'. O regresso a tempos passados contribuía para reforçar o mistério. Mas essa sucessão de 'flash-backs' foi liminarmente recusada por Matsutaro Kawaguchi, o director do estúdio da Daiki em Quioto, que receou o descalabro comercial.” Por outro lado, Kinuyo Tanaka achava a Oyu de Tanizaki muito lânguida e etérea e Mizoguchi concordou com ela, dirigindo-a de forma muito mais energética. “Em Oyu-Sama – disse Yoda – fomos vencidos pela literatura”. Mizoguchi, como sempre ou quase sempre, foi também muito autocrítico: “não fizemos um bom trabalho. Deixei-me levar pelas modas e manias do tempo”. Como sempre ou quase sempre não tem razão. Oyu-Sama, sobre o qual Serge Daney escreveu em tempos um texto magnífico, é, para mim, tão fascinante como qualquer das senhoras que a precederam e seguiram: Yuki, a branca da neve (O Destino da Senhora Yuki), Michiko, a pálida e crepuscular Senhora de Musashino

A Yuki deu Mizoguchi a luz lunar que a quase todo o filme preside. A hora do pôr-do-sol foi a hora de Michiko em Musashino. Oyu, o filme das três primaveras, começa com todo o sol e acaba com toda a lua. Intensamente solar no início, nessa tarde em que Shinnosuke se enganou de mulher ou foi enfeitiçado por outra mulher, acaba sob uma lua imensa, na noite em que o protagonista traz como presente a Oyu, o filho que tivera de Oshizu e que, como ele, será um filho sem mãe. E bastariam essas sequências – iniciais e finais – para que essa obra fosse já o prodígio que é. 

Falei de três primaveras. Oyu-Sama é também o filme de três concertos, o filme de Mizoguchi em que a música (o koto) tem lugar mais central, a ponto de se poder dizer que lhe cabe o lugar que em Utamaro coube à pintura e em tantos outros filmes coube ao teatro. Este “conto da lua vaga”, este “conto dos cerejais em flor” é um conto musical, um conto encantado. “De cada vez que penso em ti, tudo é melancolia” diz a letra da canção, que também por três vezes ouvimos: durante o genérico, no segundo dos três concertos de Oyu, e no final, na oferenda do bebé. “Nun will die Sonn so hell aufgeh'n”. A primeira das crianças mortas. O espírito de Mahler, como o espírito de Tchekov, não andam longe. 

Tenho insistido no número três. Reparar-se-á que este filme, ao contrário de quase todos os filmes de Mizoguchi, com muitas personagens importantes, centra-se também num trio: as duas irmãs e o homem que ambas amaram. Todos os outros são quase inexistentes. 

Tudo começa com um pedido de casamento, na primeira das primaveras. Há um movimento envolvente de câmara, quando o grupo de mulheres se aproxima de Shinnosuke, como se algo de mágico lhe acontecesse. Depois, em plano médio, vemos Oyu, a causadora do feitiço, com o quimono branco e o chapéu de sol branco, como se a luz e o calor fossem fortes demais para ela (mais tarde desmaiará com o sol), o que motiva o seu primeiro encontro a sós – e na penumbra – com Shinnosuke. E imediatamente surge o aviso: “Não as confundas”. Não, não era aquela mulher, sempre proeminente, sempre avançada em relação ao grupo, a mulher que a família queria casar com o aturdido rapaz. Mas a irmã dela, muito mais nova, aparentemente muito mais bonita, mas em que Shinnosuke nem sequer reparou (nem nós, nesse plano de mulheres). Mas é de Oyu o leque que fica na cerejeira e que depois a irmã apanha, até ao grande plano do leque na mão dela. Mais tarde, Shinnosuke dirá a Oyu que ela lhe lembra a mãe que morreu quando ele tinha quatro anos. Oyu a viúva, Oyu que não pode voltar a casar porque tem que educar o filho que será o herdeiro do clã, Oyu a vestal, é também Oyu a mãe, a mulher de tempos muito mais antigos e a deusa da música, nesse primeiro concerto primaveril, com planificação fragmentada e em que com Oyu só “contracena” com os espaços vazios dedicados aos arranjos florais e às peças de cerâmica. 

Será a personagem tão distante e tão desinteressada como então nos surge? Há uma ambiguidade prodigiosa na sequência da cabana, quando Shinnosuke, extático, a abana e, num momento, quase a beija. “Pensei que era Deus que me vinha salvar”. E os olhos fechados abrem-se. 

Como soube Oshizu dessa história de amor que ninguém lhe contou? Porque é que as gentes começaram o murmurar sobre o “ménage à trois” que eles vão viver depois do casamento de Oshizu e Shinnosuke? Há coisas que não se dizem. Há coisas que se vêem. Como naquela fabulosa sequência da brincadeira de Oyu com o cunhado, quando o obriga a suster a respiração e depois lhe faz cócegas. Estão os três, estão sempre os três, mas o casamento, branco por vontade de Oshizu (ou por vontade de Oyu?) é, desde o início, compartilhado. E a ilustração suprema é o segundo concerto, um ano depois do casamento de Shinnosuke e Oshizu. A canção só é cantada por Oyu e por Shinnosuke. Mas no plano-sequência as duas mulheres estão sempre juntas e é o homem quem as enlaça a elas e a elas com a música. E esse plano é quase tão interminável como o plano da inexistente noite de núpcias de Shinnosuke e Oshizu, quando o “casal” troca sucessivamente de posição tanto tempo quando dura a confissão de Oshizu e o seu pedido. 

Há qualquer coisa de um Jules et Jim por haver nessa sequência de felicidade a três e em que os três brincam aos irmãos e irmãs. Mas Mizoguchi não caminha nessa direcção. Ouve-se o coaxar das rãs, o piar das corujas, no lago há uma espuma branca. Sabemos que se acabou o tempo do sol e que a lua iniciou o seu reino. Morre, inexplicavelmente, o filho de Oyu, os grandes cerejais são murados ao fundo, dos lagos se passa ao mar e às rochas e o que se via começou a ser dito e falado. Um dia, Oshizu descobrirá que falta um talher à mesa e nunca mais nem ela nem ele verão Oyu, que casou com quem não queria casar. 

A última primavera – a primavera do nascimento do bebé – já não é fonte de vida mas de morte. Oshizu ainda quer ver as cerejeiras em flor, mas nada florirá nessa vida de casal em Tóquio. E é com o quimono de Oyu que Oshizu morre. Depois, é o último concerto à lua. E a lua trouxe o bebé e a lua levou Shinnosuke, no imponderável plano final. 

Este é o filme que faz tanta pena. Este é o filme entre o tarde e o cedo. O corpo de um homem e a alma de duas mulheres. E, no fim, como no princípio, só Oyu reina. Morreu Oshizu. Shinnosuke volveu-se noutro homem e noutra aparência. E o sol deu lugar à lua, a lua que brilha sobre o rio, onde um barco leva para sempre o filho que não achou mãe e o homem que não achou mulher. 

Mulher, disse eu. 

“Se algum de vós avistasse o que seríamos com o tempo 
todos nós choraríamos, de muita pena e susto imenso” 
Cecília Meireles, disse ela. 

in «As Folhas da Cinemateca – Kenji Mizoguchi», Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema, Lisboa, Março de 2005, pp. 89-92.

quarta-feira, 13 de março de 2019

123ª sessão: dia 14 de Março (Quinta-Feira), às 21h30


O quarto filme de Kenji Mizoguchi exibido pelo Lucky Star será um filme de João Bénard da Costa na medida em que Mizoguchi é um dos cineastas de João Bénard da Costa. "Filme que faz tanta pena", "filme entre o tarde e o cedo", A Senhora Oyu é a nossa próxima sessão na Casa do Professor.

Em texto para a Retrospectiva Mizoguchi na Bienal de Veneza de 1980, Jean Douchet escreveu que "a obra de Mizoguchi pertence à corrente naturalista. Através dos seus meandros e das suas investigações em direcções diferentes, procura apenas um objectivo: alcançar a perfeição da representação do real. Para isso, Mizoguchi não filma a acção, mas a ideia da acção. Ao rever a integralidade do que resta desta obra, constatamos que no seu desenvolvimento:

"a) a concepção do enquadramento não muda. Vai-se suavizar, claro, aperfeiçoar-se-á, às vezes vai-se complicar, mas a linha do desenho encontra a sua precisão e a sua força a partir dos primeiros filmes. Não há diferenças capitais na construção do plano entre Furusato no uta (1925) e Rua da Vergonha (1956);

"b) a pintura das personagens, por outro lado, evolui de forma sensível. A paleta do pintor fica cada vez mais fina, subtil e delicada durante o desenvolvimento da obra. No início manifesta-se a predilecção do cineasta pelas situações fortes, às vezes mesmo próxima do excesso melodramático que vai conservar até ao fim da sua vida. Mas as personagens são sacrificadas em relação às situações. Servem-lhe apenas de apoio. Percebe-se muito rápido (desde Fujiwara Yoshie no furusato em 1930) que isso aborrece Mizoguchi. Quer dar uma vida própria e independente às suas personagens, captar apenas as suas mais pequenas reacções. É preciso que a situação se eclipse em prol da verdade do ser humano, que a sua força engrandeça a sua fraqueza, que se esqueça o desenho pela única ressonância afectiva dos sucessivos toques pictóricos."

Nas fabulosas Souvenirs de Kenji Mizoguchi, o argumentista do filme, Yoshikata Yoda, conta a criação da Senhora Oyu, confessando que "(...) tinha discussões tempestuosas com Mizo-san sobre as relações entre o cinema e a literatura. Geralmente, um filme trai o romance. Era o caso do Retrato da Senhora Yuki. Traduzir a pureza e a sinceridade de uma mulher cujo amor e desejo são partilhados entre dois homens é uma coisa difícil no cinema. Apesar disso, nós continuávamos obstinados com A Senhora Oyu (1951). No romance original, Ashikari de Junichiro Tanizaki, o autor não se apega à descrição concreta da heroína O-Yu-sama, senão para dizer que ela tem um rosto de pequena boneca que evoca o de uma deusa e pequenos pés gentis. Ora, para o filme, era preciso que a actriz Tanaka Kinuyo incarnasse de forma muito «física» esta personagem aliás intencionalmente velada de mistério. No romance, O-Yu-sama é uma mulher de uma ingenuidade doce, gentil e indiferente. Mas esta indiferença esconde um espírito subtil e muito desperto. Precisava de construir o drama em torno de Shinnosuke (o amante), Oshizu (a criada de quarto) e a própria O-Yu-sama. Tarefa difícil, fazer com que o público aceitasse este triângulo.

"No romance, a história é contada sob o ponto de vista de um velho homem que o autor finge ter conhecido. As memórias dele mantiveram o espanto do olhar de criança que era na altura. Na verdade, a construção tem três movimentos, três regressos ao passado. Era preciso conservar o carácter onírico da lembrança no filme. Portanto insisti sobre esse aspecto narrativo para que esta busca pelo tempo que foge reforçasse o mistério. Mas esses flashbacks sobrepostos foram recusados de forma impiedosa por M. Kawaguchi, o director do estúdio de Quioto da Daiei. Arriscávamos um falhanço comercial. Mas arrependo-me muito.

"Havia outra dificuldade: No romance, O-Yu-sama era demasiado estática e plácida - mas não podíamos demolir facilmente essa tendência romanesca. Mizoguchi estava aborrecido. Para mais, Kinuyo Tanaka coincidiu mal com a ideia que se podia fazer de O-Yu-sama. Ela tinha carácter. A interpretação dela deformou a imagem da heroína e fez com que não a distinguíssemos mais de Oshizu, a sua criada de quarto. Não eram mais do que duas amantes de Shinnosuke."

Para o Libération, em 1983, Serge Daney escreveu que "em 1951, entre Retrato da Senhora Yuki e A Senhora de Musashino (ambos interpretados por Tanaka), Mizoguchi trabalhava nos seus mais belos retratos de mulheres. Amores contrariados ou impossíveis, bovarysmos das mulheres, baixeza dos homens. Está sempre do lado das mulheres, nunca do dos homens. A este respeito, A Senhora Oyu é um filme que resume os outros, como um teorema que inclui todas as «hipóteses» mas continua excepcionalmente misterioso em si mesmo. Há um homem, o gentil e desarmado Shinnosuke (Hori Yuji). Há a Senhora Oyu primeiro como viúva (um bocado) frívola e depois renunciante. Mas a história não são eles. Nem é por eles que ela se mantém. É a terceira personagem, Shizu (Otawa Nobuko) que conta. É o intermediário que está no centro. Shizu ama Shinnosuke (pelo menos é o que ela diz) mas vendo este apaixonado por Oyu, propõe-lhe este incrível contrato: o casamento deles permanecerá branco e vão viver os três juntos, desde que ele «faça a irmã dela feliz». Porque Shizu tem apenas um desejo: ficar com eles, entre eles, ser a sua «irmã mais nova». A primeira parte do filme, é esta estranha vida a três, de que se começa rápido a falar mas em que a frustração sexual está no nível máximo, apesar de um bom humor aparente.

"A segunda parte começa com a morte da criança de Oyu. De volta ao princípio de realidade, ela aceita casar-se com um velho fabricante de saqué e desaparecer da vida do jovem casal, que está a morrer. Muda tudo muito rápido: Shizu dá uma criança a Shinnosuke e depois morre. Uma noite, Oyu, negligenciada pelo seu novo marido, dá um concerto ao ar livre, fazendo-se ouvir os gritos de um recém-nascido nos juncos. É Shinnosuke que acaba de abandonar o seu filho com uma carta para Oyu. Esta criança de substituição é o único vestígio de união entre as três personagens separadas para sempre. É um pequeno símbolo que se lamenta.

"Esta história não foi inventada por Mizoguchi. De resto, ele nunca inventou, exigindo aos seus argumentistas (sobretudo de Yoda, Yoshikata, o seu bode expiatório favorito) que adaptassem romances clássicos e modernos. Desta vez, Yoda atacou «Um corte de juncos», uma das duas novelas de Tanizaki, reunidas mais tarde sob o título de «Dois amores cruéis». Em Tanizaki, a personagem do homem estava mais no centro da história. Na adaptação de Yoda-Mizoguchi, o centro está vazio ou antes ocupado por uma personagem, Shizù, que aceitou extrair todo o seu prazer do simples facto de estar entre. Faz todo o sentido. Mizoguchi sempre procurou compreender o que ligava os humanos entre si. O dinheiro, o desejo, a filiação. Tentou o impossível: filmer essas ligações enquanto tais, como vestígios de união."

Até Quinta!

sexta-feira, 8 de março de 2019

Roma città aperta (1945) de Roberto Rossellini



por João Bénard da Costa

17 de Novembro de 1973 foi a noite da mais memorável sessão de cinema do meu filme da vida. Nunca tive outra igual e duvido que a venha a ter. Passou-se, ou fixou-se, no Grande Auditório da Fundação Calouste Gulbenkian e o filme projectado na tela chama-se Roma Città Aperta. Roberto Rossellini realizara-o 28 anos antes dessa noite. 

Foi nessa noite que se inaugurou o primeiro dos 31 ciclos de cinema que nestes 16 anos tiveram lugar naquela sala, ou em iniciativa exclusiva da Fundação (até 1980) ou em co-organização com a Cinemateca Portuguesa (quase todos os realizados entre 1981 e o dia de hoje). 

A Gulbenkian criara o Sector de Cinema (integrado no Serviço de Belas-Artes) nos finais de 1968, e dera-lhe pessoas e dinheiro em Maio de 1969. Foi há 20 anos. Vinte anos de mim que, esforçando-me à imparcialidade, devem ter dado à Casa tantos motivos de arrependimento como de satisfação. Histórias que agora não vêm ao caso. 

Ao princípio, tratava-se de enquadrar e apoiar o recém-nascido Centro Português de Cinema, cooperativa hábil e imaginosamente sugerida pelo Dr. Azevedo Perdigão, na produção dos filmes que faziam parte do modus-vivendi entre a Fundação e o Centro e que, historicamente, fizeram renascer o então agonizante cinema português. Mas o Presidente da Fundação compreendeu bem que essa aposta num novo cinema só podia ser ganha se se apostasse num novo público, ou seja, se se formasse uma nova camada de espectadores que, nas condições concretas de Portugal, estava privado de um conhecimento sério da história do cinema, dos seus maiores momentos, dos seus maiores autores. A ignorância da história não permite o avanço dela. Quando, hoje, tantos se arrepiam com a invocação deste axioma humanista, e até ignara e jubilosamente o refutam ou desconhecem, é bom que se recorde que foi dele que partiu a ideia de organizar estes vastos ciclos. 

Não clamei no deserto e muitos me ajudaram. Daqui lembro o entusiasmo e a carolice (tão grandes como o meu) de Carlos Baptista da Silva, nessa altura adjunto do Serviço da Presidência. Em 1970, a expensas da Fundação, fui até Cannes e conheci em carne e osso Henri Langlois a quem pedi ajuda. Ninguém ma podia dar como ele ma deu. Nesse dia – também de Maio – foi «the start of a beautiful friendship» para citar o ainda fresco Casablanca. Durou até à morte dele (Janeiro de 1977). Durará até eu morrer a imensa e ilimitada admiração por esse homem genial (um dia, falarei aqui muito mais dele e da mulher, essa espantosa e queridíssima Mary Meerson). 

Com Langlois discuti o arranque dos ciclos, ideia para que logo tive o seu incondicional apoio. E fez-se rápido consenso sobre Rossellini. 

O parto foi mais difícil do que eu previra. As negociações foram morosas e só três anos depois, três anos de muitas viagens a Paris, tanto minhas como de Carlos Baptista da Silva, três anos de muitas viagens de Langlois a Lisboa, três anos para conhecer, na Cinemateca de Langlois, tantas outras pessoas admiráveis (Lotte Eisner, Marie Epstein) se fixou a data do lançamento do foguetão. Langlois prometera-me que convenceria Rossellini a vir. E Rossellini veio. 

À época, o anúncio deste ciclo foi uma festa. A revista Cinéfilo (cuja segunda série começara por essa altura, dirigida pelo Fernando Lopes e pelo António-Pedro Vasconcelos) deu-lhe honras de capa, e o segundo formulava apaixonados e ardentes votos para que fosse apenas um início e breve chegasse o tempo em que o público da Fundação estivesse tão familiarizado com os nomes de Griffith e de Hitchcock, como o estava com os de Beethoven e Boulez. Acho que não o deixei ficar mal. Nem a ele, nem a ninguém, em olhar agora retrospectivo. 

À medida que se confirmavam as notícias, e as vindas de Rossellini e de Langlois como guest stars, a retrospectiva tornou-se no acontecimentos da temporada. Anunciou-se que abriria com Roma Città Aperta

Eu tinha visto Roma Città Aperta, ainda miúdo, no Palácio, na estreia portuguesa do filme, em 1947. Embora todos os filmes desse ciclo, como todos, todos os filmes, tivessem de ir à Censura (Joaquim Boavida, à época meu mais próximo colaborador, tanto sofreu com essas idas e vindas, mesmo em cima dos dias de espectáculo e no suspenso do veredicto), não tinha inquietações acerca de Roma, pois sabia que o filme passara por cá e por cá fizera os habituais cinco anos de distribuição, até 1952. Ignorava é que em 1956 um distribuidor o tinha querido repor e esbarrara com um niet redondo da Censura, farta de dores de cabeça com esse filme. Tivera de o «engolir» no pós-guerra, para que não parecesse o que era. Livre dele, pela lei fatal da vida comercial de um filme, proibira regressos, nesses anos 50 em que, graças à Guerra Fria, já não precisava de parecer nada. 

Assim, à última hora, com a casa toda esgotada (esgotou tudo, logo no dia em que as bilheteiras abriram) fui surpreendido por um amável telefonema da Direcção-Geral da Cultura Popular e Espectáculos (da qual dependia a Censura aos filmes) a dizer-me suavemente que o filme estava proibido e não podia passar. Soube isto na antevéspera de Rossellini chegar a Lisboa. 

Nalgumas horas de altíssima tensão e de conversações bilaterais ao mais alto nível, o mais alto nível do lado de lá acabou por ser sensível à «bronca» que seria ter de contar a Rossellini da proibição. O álibi de que a cópia seria projectada uma única vez e sem legendas funcionou como moeda negocial. Na noite de 15 de Novembro, veio o nihil obstai sob essas condições. 

Quando Rossellini chegou à Gulbenkian, não cabia na sala um alfinete. Se Altos Dignatários do Regime também não faltaram, a maioria daqueles mil e picos era jovem, turbulenta e, como então era de moda, contestatária. Até podia ser que achassem Rossellini um «reaças» ultrapassado, cúmplice de negregandos pactos com o «social-fascismo» ou com a «social-democracia». Tudo se podia passar. Entre os vaivéns dessa minha estreia, mais nervoso ainda do que é meu costume, recordo-me de ter ouvido, estupefacto, um simpático piropo do director-geral da Cultura Popular e Espectáculos. Aquele que era – em penúltima instância – o chefe máximo da Censura, felicitava-me pela boa ideia que eu tinha tido ao trazer a Lisboa Roma Città Aperta, «um filme que eu há tanto tempo queria ver» (sic). Ainda hoje não sei se estava a ser sincero. A alma humana é um abismo. 

Apresentei Rossellini «por mandato do Conselho de Administração e em nome do Serviço de Belas-Artes» com a pompa e circunstância que a última pedia. Tanto para fora como para dentro, sublinhei que sob aquele tecto, onde já haviam estado os grandes vultos da arte contemporânea, estava hoje, pela primeira vez, um dos maiores artistas da arte maior que o cinema é. A seguir falou Rossellini. Conquistou logo os menos reverentes, com a intuição única que tinha, quando a certa altura emendou uma frase que era qualquer coisa do género: «Aos jovens queria dar um conselho» para «Conselhos não, dar conselhos é sempre estúpido». Foi a primeira trovoada de aplausos. A segunda foi quando anunciou, no fim, que «quanto ao filme, o melhor é discutirmos depois de o terem visto». 

O que ele não sabia é que debates públicos a seguir a espectáculos estavam rigorosamente proibidos, e que assim infringia uma regra de décadas. A sala foi ao rubro. 

Não se ouviu uma mosca durante os 100 minutos de projecção do filme, a que Rossellini não assistiu porque, como me disse, detestava rever as próprias obras. «É horrível voltar a ver coisas que sei que estão erradas e já não as poder mudar.» Durante a projecção, e nas minhas errâncias entre a sala e a cabina, lembro-me de o ter visto a dormir num maple, ao lado de Langlois, que ressonava noutro. 

Quando apareceu na tela a palavra «fim», a sala levantou-se em peso para a maior ovação de que me recordo em sessões de cinema. No palco, Rossellini «com uma emoção que não disfarçava, mas também não exibia», como escreveu Helena Vaz da Silva no dia seguinte, esperou 10 minutos (não exagero) antes de conseguir agradecer. 10 minutos em que os «bravo» deram lugar a distintíssimos brados do género: «Abaixo o fascismo» ou «Liberdade, liberdade». 

Ministros e altas entidades escaparam-se discretamente pela direita baixa, muitos deles pessoalmente interpelados. Por fim, não houve mesmo debate nenhum porque a emoção já proibia raciocínios. Coube-me a ingrata tarefa de levar Rossellini dali para fora, antes que os ânimos aquecessem a ponto de pôr o resto do ciclo em causa. À saída, as pessoas abraçavam-se e muitas choravam. Quem não esteve lá nunca imaginará. 

A minha mulher e eu fomos depois cear com Rossellini e Langlois e com o casal Baptista da Silva. Rossellini estava espantadíssimo. O filme tinha tido acolhimentos desses, mas em 45 ou 46, no fim da guerra e do fascismo em Itália. Vinte e oito anos depois que «aquilo» ainda funcionasse assim, parecia-lhe da ordem do inexplicável. «Que país era este?» Lá lhe expliquei como pude. Foi então que Langlois, mais frio, me disse que o país podia ser assim ou assado, mas dentro de bem pouco tempo muitas coisas se iriam passar aqui. Habituado, há vinte anos, a frases dessas, respondi-lhe com enorme cepticismo. Alguns meses depois, a seguir ao 25 de Abril, lembrei-me desse comentário e perguntei-lhe por que é que ele tinha dito aquilo, como é que tinha adivinhado. «Sabe, - ripostou-me – o cinema mudo ensinou-me a ver muito. Não foi a algazarra que me impressionou, mas as caras das pessoas. As caras dos maus e as caras dos bons.» E repetiu a rir-se: «Le cinéma muet, le cinéma muet.» Às vezes lembro-me disso e em comícios ou manifestações tiro o som à televisão, ou esforço-me por tapar os ouvidos. Langlois tinha razão. 

in «Os Filmes da Minha Vida – Os Meus Filmes da Vida», 1º volume, Assírio e Alvim, Lisboa, 1990, pp. 289-294

quinta-feira, 7 de março de 2019

122ª sessão: dia 7 de Março (Quinta-Feira), às 21h30


E regressamos, finalmente. Para um novo espaço, a Casa do Professor, e num novo dia da semana, a Quinta-Feira. Com novos filmes e novos ciclos, com Rossellini, Mizoguchi, Bergman e Jacques Becker sob a égide e os gostos, as aventuras e as participações do grande João Bénard da Costa, a quem dedicaremos um ciclo de alguns meses. A primeira sessão é já amanhã às 21h30 com Roma, Cidade Aberta de Roberto Rossellini.

Em texto traduzido e republicado no catálogo da Cinemateca Portuguesa dedicado a Rossellini, o cineasta escreve que "em 1944, imediatamente após a guerra, tudo em Itália estava destruído. Tanto no cinema como noutros domínios. Quase todos os produtores tinham desaparecido. Aqui e ali vislumbravam-se algumas tentativas com ambições extremamente limitadas.

"Gozávamos então de uma imensa liberdade, a ausência de uma indústria cinematográfica era favorável às empresas menos rotineiras. Todas as iniciativas eram boas. Foi esse contexto que nos permitiu começar a fazer trabalhos de carácter experimental; aliás, rapidamente nos apercebemos que esses filmes, apesar do seu aspecto, estavam a tornar-se obras importantes, tanto no plano cultural como no plano comercial.

"Foi nestas condições que comecei a filmar Roma Cidade Aberta, cujo guião tinha sido escrito com alguns amigos, quando alemães ainda ocupavam o país. Realizei esse filme com muito pouco dinheiro arranjado, aos poucos, em pequenas quantias; só havia com que pagar a película, e a questão da revelação nem se punha, uma vez que eu não tinha o suficiente para pagar aos laboratórios. Não houve assim qualquer sessão de rushes antes do fim das filmagens. Algum tempo depois, tendo conseguido algum dinheiro, montei o filme e apresentei-o a algumas pessoas do cinema, críticos e amigos. Para a maioria deles foi uma grande desilusão. Roma Cidade Aberta foi projectado em Setembro de 1945, num pequeno festival e na sala havia gente para o vaiar. O acolhimento da crítica foi, podemos dizê-lo, franca e unanimemente desfavorável. Foi nessa época que propus a vários colegas meus fundar uma associação seguindo o modelo da United Artists, para evitar os dissabores que a reorganização do cinema italiano, por parte dos produtores e homens de negócios, iria trazer. Mas ninguém se quis associar ao autor de Roma Cidade Aberta; era evidente que não era um artista."

No ano da estreia do filme nos Estados Unidos, James Agee, então crítico de cinema mas já com o colossal Let Us Now Praise Famous Men no currículo, escreveu para o The Nation que "não tenho dúvidas de que muitos padres, em Itália e noutros lugares, se comportaram de forma tão corajosa como este. Nem duvido que eles e muitos esquerdistas não religiosos, a trabalhar com eles em grave perigo, se respeitassem uns aos outros de forma tão perfeita como é aqui mostrado. Vejo pouco que seja incompatível entre o que há de melhor na esquerda e na religião—muitíssimo pouco para se medir contra a profunda incompatibilidade que existe entre eles e o resto do mundo. Mas não posso deixar de duvidar que os motivos praticantes básicos e definitivos do Cristianismo e da esquerda institucionais possam ser representados de forma adequada pelos indivíduos mais magnânimos de cada tipo; e receio que a esse nível se esteja a vender tanto ao público religioso como ao de esquerda—e mais particularmente os religiosos de esquerda, que devem ser o conjunto chave em Itália—uma espécie de patranha. Continuo a dizer a mim próprio que as pessoas que fizeram o filme ainda estavam comovidas para reproduzir a experiência recente e não estavam no estado de espírito nem sob obrigação alguma para complicar aquilo por que tinham passado; Reconheço com grande prazer a forma tão completa como o padre e os partidários, ao mesmo tempo, são autorizados a manter as suas integridades distintas; e o fogo e o espírito do filme deixam-me continuamente suspeito das minhas próprias suspeitas. No entanto, elas persistem; portanto sinto que é minha obrigação dizê-lo. Se tiver razão, como espero não ter, as instituições de ambos os tipos estão aqui, como tantas vezes antes, a explorar tudo o que é melhor nos indivíduos pelo bem de tudo o que menos honra o indivíduo, nas instituições. 

"Há um qualificador adicional, que mencionei há algumas semanas, que já não se aplica; foram cortados alguns detalhes de tortura especialmente próximos, sinto que sem perda alguma, considerando a quantidade de sadismo clandestino com que todos os públicos são contaminados. tenho outro qualificador leve: falta a Roma Cidade Aberta a profundidade de caracterização, pensamento, e sentimento que podia ter feito dele definitivamente um grande filme. 

"Daí em diante não tenho mais que admiração por ele. Mesmo estas falhas em profundidade e complexidade são sacrifícios em relação a virtudes grandes na mesma medida: raramente se verá frescura e vitalidade tão puras num filme, ou irrealidade e afectação tão pequenas entre os intérpretes; sente-se que foi tudo feito rápido demais e com uma sinceridade demasiado feroz para se correr o risco de se atolar na mera mestria ou meditatividade—e muito menos na sentimentalidade dos murais da WPA (nota: Work Progress Administration) e na incapacidade absoluta para conhecer, amar, ou honrar as pessoas por que os americanos de esquerda são responsáveis. No geral, a qualidade mais bela do filme, que raramente poderia ser igualada de forma tão espectacular, é esta urgência. Tudo nele tinha sido vivido recentemente; muita coisa é re-encenação no próprio local ou perto; todo o seu espírito é ainda o espírito da própria experiência, dificilmente arrefecida de todo. Houve pouco que se comparasse a esse tipo de espírito desde o júbilo libertário de entusiasmo maravilhoso sob o qual era praticamente inevitável que homens como Eisenstein, Dovzhenko e Pudovkin fizessem algumas das maiores obras de arte deste século."

No Dictionnaire du Cinéma, Lourcelles escreve que a "quinta longa-metragem de Rossellini, Roma, Cidade Aberta, rodada ao mesmo tempo que Sciuscià de De Sica, funda com esse filme o neo-realismo. Aqui, fundar quer dizer procurar, experimentar, tactear, e esse caminho não se faz sem certas «impurezas» relacionadas com os objectivos que mais tarde vão ser definidos como essenciais ao movimento. (Sob um ponto de vista estritamente neo-realista, Paisà será uma obra muito mais pura.) Rossellini quis olhar para a realidade sob um ângulo e uma luz mais verdadeiros e mais documentais do que tudo o que tinha sido tentado anteriormente. Isso implicava uma crítica radical a todo o cinema precedente. Essa vontade revolucionária é mesmo o ponto de partida do filme? Não é certo, de todo. Na primeiríssima origem do filme, se é verdade que se possa remontar até aí, parece que houve o desejo da parte de Rossellini em captar o presente, nada mais que o presente, e o mais a quente possível. Em ir contra a vocação passadista do cinema, essa máquina de transformar o presente em passado. Esse desejo inicial levou tudo atrás de si. Essa tomada de posição documental de Rossellini foi servida de forma desmedida pela precariedade extravagante das suas condições de trabalho (luz insuficiente ou intermitente, duração dos planos submetida à quantidade variável de película disponível, etc.). Rodar imagens deste período da guerra a terminar em Itália e vivê-la (ou acabar de a viver) são duas experiências que se confundem no filme, concedendo-lhe uma assombrosa autenticidade histórica. Visto hoje, este diário exploratório do presente mantido por Rossellini, ou de um passado tão recente e tão crucial que ainda absorve todo o presente, parece ao mesmo tempo o fruto de um amadorismo inspirado e de um profissionalismo altamente qualificado, mas constantemente posto em dúvida, contrariado e finalmente melhorado por esse amadorismo ligado aos perigos da rodagem. A variedade espectacular da interpretação dos actores - celebridades e anónimos misturados - fica muito longe da neutralidade austera que Rossellini vai conseguir em Paisà e que aqui existe apenas no actor Pagliero, um profissional usado como não-profissional. A construção ultra-inteligente da narrativa, com essa constrição da acção em torno dos três mártires, esse alongamento progressivo da duração das cenas à medida que a história avança e se torna cada vez mais trágica, é o testamento de uma arte consumada da narração. De modo que Roma, Cidade Aberta aparece como uma obra duplamente única: por um lado revolucionária, criando um dinamismo e um movimento novos, suscitando uma esperança de mudança quase ilimitada sob o plano estético, e por outro lado, permanecendo fiel ao conhecimento e à competência acumulados antes dela pelo cinema. Ela até acrescenta sobre essa conquista, porque nenhum filme de guerra antes deste tinha ido tão longe na violência e na crueldade.

"BIBLIO: o argumentista Ugo Pirro escreveu uma história sobre a rodagem de Roma, Cidade Aberta: «Celluloide», Roma, Rizzoli, 1983, que é sobre fazer um filme. Eis como Ugo Pirro relata os factos. O argumentista Sergio Amidei recebe um avanço do produtor Peppino Amato para escrever um argumento sobre a marcha negra em Roma. Amidei encontra-se com Rossellini todos os dias e este projecto vai ser a base do filme. Amidei escreve um começo, retirado de uma aventura que viveu pessoalmente: os alemães aterram-lhe um dia em casa, tendo descoberto que albergava anti-fascistas. Ele foge pelos telhados. Consiglio, um jornalista napolitano, amigo de Amidei e de Rossellini, fala-lhes de dois padres, conhecidos por terem ajudado resistentes e judeus. Um dos dois foi executado pelos alemães. Reunem-se as duas personagens numa só, cuja história vai constituir um segundo episódio. Em busca de dinheiro - a sua preocupação a todo o instante - Rossellini propõe à condessa Politi um filme em episódios, já que esse tipo de filme, segundo ele, é o mais fácil de realizar neste tempo de desordem (notem-se as semelhanças com Paisà). Consiglio escreve o episódio da morte do padre. Amidei exige que noutro episódio seja torturado um comunista para restabelecer o equilíbrio político do filme. Rossellini pensa num terceiro episódio sobre crianças. Amidei lembra-se de uma novela que leu na «I'Unità» clandestina e que lhe traz novamente à memória os factos seguintes: os alemães matam uma mulher grávida que queria impedir que levassem o seu marido. Este crime cria uma revolta entre as pessoas presentes, que libertam o prisioneiro e os seus companheiros. Isto poderia constituir um quarto episódio para o filme (a história de Pina). Amidei pensa que Anna Magnani, que à época cantava estrofes satíricas todas as noites numa casa de variedades, seria a intérprete ideal para Pina. Ao lado dela, via muito bem Aldo Fabrizi no papel do padre. Fellini já tinha escrito histórias de filmes e revistas para este actor; Fabrizi lê o que está escrito do guião e aceita prontamente em participar na aventura, tomado pela força do tema. Rossellini contacta Fellini e fá-lo trabalhar como argumentista às escondidas de Amidei. Tendo sido gasto o adiantamento da condessa, Rossellini encontra dinheiro junto de um pastor enriquecido, apaixonado pelo cinema e sobretudo pelas actrizes. Constroem-se os primeiros cenários numa rotunda situada numa rua onde se encontra um bordel. Amidei pergunta-se se Rossellini não irá solicitar as residentes com uma contribuição financeira para o filme em vista. Peppino Amato interessa-se novamente no projecto e propõe o título Roma, Cidade Aberta (Rossellini, por uma vez pouco inspirado, tinha pensado em Histórias de Ontem). A condessa Politi volta a aparecer, também ela, com uma mala cheia de dinheiro. Exige que o comunista desapareça do guião. Rossellini promete que será feito de acordo com os desejos dela. Primeiro dia de rodagem: 17 de Janeiro de 1945. Roda-se à noite para evitar os cortes de energia. A luz vai ser fraca mas isso é exactamente o que deseja Rossellini, entusiasmado em derrogar os hábitos do cinema. Depois de supervisionar a primeira semana de rodagem, Peppino Amato prefere-se retirar do processo. Para o substituir, Rossellini encontra um comerciante de tecidos (Venturini) e um dos primeiros soldados americanos a entrar em Roma (o sargento Geiger). Geiger, que trabalha em publicidade, promete tornar o filme conhecido no mundo inteiro. Durante a rodagem, o filho de Magnani e de Massimo Serato é atacado pela poliomielite. Anna Magnani pensa em desistir do cinema, durante um momento. Começa um romance entre ela e Rossellini. Opõe-se uma luta épica entre Magnani e M. Serato. M. Serato foge numa camioneta e Magnani cai na lama. Amidei propõe filmar assim a morte de Pina. Na primeira projecção privada, toda a gente fica devastada, particularmente o distribuidor. Não só o estilo é insólito, como a intriga é um acumular de tabus: droga, lesbianismo, torturas, etc. Rossellini censura Amidei por ter posto sangue demais no guião. Mas durante a primeira projecção pública, inserida num festival de música e teatro no Teatro Quirino, e em que esteve Anna Magnani, o entusiasmo predomina claramente sobre os assobios. Vamos encontrar os testemunhos dos principais colaboradores do filme em «L'aventurosa storia del cinema italiano» de F. Faldini e G. Fofi, Milão, Feltrinelli, 1979. A decupagem do filme foi publicada no volume «Roberto Rossellini: la trilogia della guerra» (com Paisà e Alemanha, Ano Zero), Bolonha, Cappelli, 1972. (Cada um dos 760 planos é registado em segundos e em imagens.) Prefácio capital de Rossellini: «A inteligência do presente». Tradução inglesa deste volume na Viking Press, Nova Iorque, 1973. Argumento e diálogos em francês in «L'Avant-Scène» nº 71 (1967). Finalmente, é preciso citar a célebre carta sobre Roma, Cidade Aberta que Ingrid Bergman escreveu a Rossellini sem o conhecer, já que teve uma importância histórica na evolução do cinema ao provocar o encontro deles e a série de cinco longas-metragens memoráveis que rodaram juntos: «Caro Senhor, vi os seus filmes Roma, Cidade Aberta e Paisà, e gostei muito deles. Se precisar de uma actriz sueca que fale inglês muito bem, que não esqueceu o seu alemão, que não seja muito compreensível em francês, e que em italiano só sabe dizer "ti amo", estou pronta para fazer um filme consigo.»" 

Até Quinta-Feira!

terça-feira, 5 de março de 2019

Em Março, no Lucky Star:

7 de Março 
21h30 


 Roma, Cidade Aberta de Roberto Rossellini 
1945, Itália (99 min.) 

Durante a ocupação de Roma pelos nazis, o engenheiro Giorgio Manfredi, comunista e líder da Resistência em Roma, é activamente perseguido pelas tropas das SS. Forçado a mudanças constantes de residência, acaba em casa de Francesco. Este está noivo de Pina, também activa na Resistência e que facilita os contactos de Giorgio com os companheiros de armas. Mas a luta pela liberdade não é fácil quando põe em causa a sobrevivência. 

14 de Março 
21h30


Senhora Oyu de Kenji Mizoguchi 
1951, Japão (94 min.) 

A titular senhora Oyu é uma viúva que a convenção japonesa durante a época Meiji proíbe de casar. Tem uma irmã mais nova chamada Shizu, que é apresentada a Shinnosuke como potencial noiva. Só que Shinnosuke apaixona-se por Oyu e, mais uma vez em Mizoguchi, os corações batem-se com a sociedade e os valores vigentes sem que alguém vença. 

21 de Março 
21h30 


Um Verão de Amor de Ingmar Bergman 
1951, Suécia (99 min.) 

Durante um ensaio turbulento para a estreia do bailado do “Lago dos Cisnes”, Marie, agora perto dos trinta anos, recebe o diário do seu primeiro amor, Henrik, que conheceu de visita à casa dos tios numas férias de Verão de há treze anos. Quando o ensaio é cancelado, ela volta ao local onde o conheceu e amou e vai-se lembrando desses tempos belos e despreocupados da juventude. 

28 de Março
21h30 


Casque D'or de Jacques Becker 
1952, França (94 min.) 

Marie, prostituta conhecida por todos como “Casque D'or”, é assediada pelo namorado violento, Roland, membro de um consórcio criminoso. Um dia conhece Georges, carpinteiro humilde que lhe rouba o coração. Movido pelo ciúme, Roland enfrenta Georges, que é obrigado a matá-lo em legítima defesa. Maria foge e Georges vai atrás dela, mas os problemas só começaram.


Observações: As sessões são organizadas pelo Lucky Star - Cineclube de Braga e realizam-se às Quintas-Feiras na Casa do Professor (Av. Central, 106-110 - 4710-229, Braga), pelas 21h30. Os primeiros meses da programação serão dedicados aos "filmes de João Bénard da Costa".