sexta-feira, 8 de março de 2019

Roma città aperta (1945) de Roberto Rossellini



por João Bénard da Costa

17 de Novembro de 1973 foi a noite da mais memorável sessão de cinema do meu filme da vida. Nunca tive outra igual e duvido que a venha a ter. Passou-se, ou fixou-se, no Grande Auditório da Fundação Calouste Gulbenkian e o filme projectado na tela chama-se Roma Città Aperta. Roberto Rossellini realizara-o 28 anos antes dessa noite. 

Foi nessa noite que se inaugurou o primeiro dos 31 ciclos de cinema que nestes 16 anos tiveram lugar naquela sala, ou em iniciativa exclusiva da Fundação (até 1980) ou em co-organização com a Cinemateca Portuguesa (quase todos os realizados entre 1981 e o dia de hoje). 

A Gulbenkian criara o Sector de Cinema (integrado no Serviço de Belas-Artes) nos finais de 1968, e dera-lhe pessoas e dinheiro em Maio de 1969. Foi há 20 anos. Vinte anos de mim que, esforçando-me à imparcialidade, devem ter dado à Casa tantos motivos de arrependimento como de satisfação. Histórias que agora não vêm ao caso. 

Ao princípio, tratava-se de enquadrar e apoiar o recém-nascido Centro Português de Cinema, cooperativa hábil e imaginosamente sugerida pelo Dr. Azevedo Perdigão, na produção dos filmes que faziam parte do modus-vivendi entre a Fundação e o Centro e que, historicamente, fizeram renascer o então agonizante cinema português. Mas o Presidente da Fundação compreendeu bem que essa aposta num novo cinema só podia ser ganha se se apostasse num novo público, ou seja, se se formasse uma nova camada de espectadores que, nas condições concretas de Portugal, estava privado de um conhecimento sério da história do cinema, dos seus maiores momentos, dos seus maiores autores. A ignorância da história não permite o avanço dela. Quando, hoje, tantos se arrepiam com a invocação deste axioma humanista, e até ignara e jubilosamente o refutam ou desconhecem, é bom que se recorde que foi dele que partiu a ideia de organizar estes vastos ciclos. 

Não clamei no deserto e muitos me ajudaram. Daqui lembro o entusiasmo e a carolice (tão grandes como o meu) de Carlos Baptista da Silva, nessa altura adjunto do Serviço da Presidência. Em 1970, a expensas da Fundação, fui até Cannes e conheci em carne e osso Henri Langlois a quem pedi ajuda. Ninguém ma podia dar como ele ma deu. Nesse dia – também de Maio – foi «the start of a beautiful friendship» para citar o ainda fresco Casablanca. Durou até à morte dele (Janeiro de 1977). Durará até eu morrer a imensa e ilimitada admiração por esse homem genial (um dia, falarei aqui muito mais dele e da mulher, essa espantosa e queridíssima Mary Meerson). 

Com Langlois discuti o arranque dos ciclos, ideia para que logo tive o seu incondicional apoio. E fez-se rápido consenso sobre Rossellini. 

O parto foi mais difícil do que eu previra. As negociações foram morosas e só três anos depois, três anos de muitas viagens a Paris, tanto minhas como de Carlos Baptista da Silva, três anos de muitas viagens de Langlois a Lisboa, três anos para conhecer, na Cinemateca de Langlois, tantas outras pessoas admiráveis (Lotte Eisner, Marie Epstein) se fixou a data do lançamento do foguetão. Langlois prometera-me que convenceria Rossellini a vir. E Rossellini veio. 

À época, o anúncio deste ciclo foi uma festa. A revista Cinéfilo (cuja segunda série começara por essa altura, dirigida pelo Fernando Lopes e pelo António-Pedro Vasconcelos) deu-lhe honras de capa, e o segundo formulava apaixonados e ardentes votos para que fosse apenas um início e breve chegasse o tempo em que o público da Fundação estivesse tão familiarizado com os nomes de Griffith e de Hitchcock, como o estava com os de Beethoven e Boulez. Acho que não o deixei ficar mal. Nem a ele, nem a ninguém, em olhar agora retrospectivo. 

À medida que se confirmavam as notícias, e as vindas de Rossellini e de Langlois como guest stars, a retrospectiva tornou-se no acontecimentos da temporada. Anunciou-se que abriria com Roma Città Aperta

Eu tinha visto Roma Città Aperta, ainda miúdo, no Palácio, na estreia portuguesa do filme, em 1947. Embora todos os filmes desse ciclo, como todos, todos os filmes, tivessem de ir à Censura (Joaquim Boavida, à época meu mais próximo colaborador, tanto sofreu com essas idas e vindas, mesmo em cima dos dias de espectáculo e no suspenso do veredicto), não tinha inquietações acerca de Roma, pois sabia que o filme passara por cá e por cá fizera os habituais cinco anos de distribuição, até 1952. Ignorava é que em 1956 um distribuidor o tinha querido repor e esbarrara com um niet redondo da Censura, farta de dores de cabeça com esse filme. Tivera de o «engolir» no pós-guerra, para que não parecesse o que era. Livre dele, pela lei fatal da vida comercial de um filme, proibira regressos, nesses anos 50 em que, graças à Guerra Fria, já não precisava de parecer nada. 

Assim, à última hora, com a casa toda esgotada (esgotou tudo, logo no dia em que as bilheteiras abriram) fui surpreendido por um amável telefonema da Direcção-Geral da Cultura Popular e Espectáculos (da qual dependia a Censura aos filmes) a dizer-me suavemente que o filme estava proibido e não podia passar. Soube isto na antevéspera de Rossellini chegar a Lisboa. 

Nalgumas horas de altíssima tensão e de conversações bilaterais ao mais alto nível, o mais alto nível do lado de lá acabou por ser sensível à «bronca» que seria ter de contar a Rossellini da proibição. O álibi de que a cópia seria projectada uma única vez e sem legendas funcionou como moeda negocial. Na noite de 15 de Novembro, veio o nihil obstai sob essas condições. 

Quando Rossellini chegou à Gulbenkian, não cabia na sala um alfinete. Se Altos Dignatários do Regime também não faltaram, a maioria daqueles mil e picos era jovem, turbulenta e, como então era de moda, contestatária. Até podia ser que achassem Rossellini um «reaças» ultrapassado, cúmplice de negregandos pactos com o «social-fascismo» ou com a «social-democracia». Tudo se podia passar. Entre os vaivéns dessa minha estreia, mais nervoso ainda do que é meu costume, recordo-me de ter ouvido, estupefacto, um simpático piropo do director-geral da Cultura Popular e Espectáculos. Aquele que era – em penúltima instância – o chefe máximo da Censura, felicitava-me pela boa ideia que eu tinha tido ao trazer a Lisboa Roma Città Aperta, «um filme que eu há tanto tempo queria ver» (sic). Ainda hoje não sei se estava a ser sincero. A alma humana é um abismo. 

Apresentei Rossellini «por mandato do Conselho de Administração e em nome do Serviço de Belas-Artes» com a pompa e circunstância que a última pedia. Tanto para fora como para dentro, sublinhei que sob aquele tecto, onde já haviam estado os grandes vultos da arte contemporânea, estava hoje, pela primeira vez, um dos maiores artistas da arte maior que o cinema é. A seguir falou Rossellini. Conquistou logo os menos reverentes, com a intuição única que tinha, quando a certa altura emendou uma frase que era qualquer coisa do género: «Aos jovens queria dar um conselho» para «Conselhos não, dar conselhos é sempre estúpido». Foi a primeira trovoada de aplausos. A segunda foi quando anunciou, no fim, que «quanto ao filme, o melhor é discutirmos depois de o terem visto». 

O que ele não sabia é que debates públicos a seguir a espectáculos estavam rigorosamente proibidos, e que assim infringia uma regra de décadas. A sala foi ao rubro. 

Não se ouviu uma mosca durante os 100 minutos de projecção do filme, a que Rossellini não assistiu porque, como me disse, detestava rever as próprias obras. «É horrível voltar a ver coisas que sei que estão erradas e já não as poder mudar.» Durante a projecção, e nas minhas errâncias entre a sala e a cabina, lembro-me de o ter visto a dormir num maple, ao lado de Langlois, que ressonava noutro. 

Quando apareceu na tela a palavra «fim», a sala levantou-se em peso para a maior ovação de que me recordo em sessões de cinema. No palco, Rossellini «com uma emoção que não disfarçava, mas também não exibia», como escreveu Helena Vaz da Silva no dia seguinte, esperou 10 minutos (não exagero) antes de conseguir agradecer. 10 minutos em que os «bravo» deram lugar a distintíssimos brados do género: «Abaixo o fascismo» ou «Liberdade, liberdade». 

Ministros e altas entidades escaparam-se discretamente pela direita baixa, muitos deles pessoalmente interpelados. Por fim, não houve mesmo debate nenhum porque a emoção já proibia raciocínios. Coube-me a ingrata tarefa de levar Rossellini dali para fora, antes que os ânimos aquecessem a ponto de pôr o resto do ciclo em causa. À saída, as pessoas abraçavam-se e muitas choravam. Quem não esteve lá nunca imaginará. 

A minha mulher e eu fomos depois cear com Rossellini e Langlois e com o casal Baptista da Silva. Rossellini estava espantadíssimo. O filme tinha tido acolhimentos desses, mas em 45 ou 46, no fim da guerra e do fascismo em Itália. Vinte e oito anos depois que «aquilo» ainda funcionasse assim, parecia-lhe da ordem do inexplicável. «Que país era este?» Lá lhe expliquei como pude. Foi então que Langlois, mais frio, me disse que o país podia ser assim ou assado, mas dentro de bem pouco tempo muitas coisas se iriam passar aqui. Habituado, há vinte anos, a frases dessas, respondi-lhe com enorme cepticismo. Alguns meses depois, a seguir ao 25 de Abril, lembrei-me desse comentário e perguntei-lhe por que é que ele tinha dito aquilo, como é que tinha adivinhado. «Sabe, - ripostou-me – o cinema mudo ensinou-me a ver muito. Não foi a algazarra que me impressionou, mas as caras das pessoas. As caras dos maus e as caras dos bons.» E repetiu a rir-se: «Le cinéma muet, le cinéma muet.» Às vezes lembro-me disso e em comícios ou manifestações tiro o som à televisão, ou esforço-me por tapar os ouvidos. Langlois tinha razão. 

in «Os Filmes da Minha Vida – Os Meus Filmes da Vida», 1º volume, Assírio e Alvim, Lisboa, 1990, pp. 289-294

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