quinta-feira, 28 de março de 2019

125ª sessão: dia 28 de Março (Quinta-Feira), às 21h30


Já passámos Touchez pas au grisbi de Jacques Becker, na velha-a-branca, mas não foi sob a égide das preferências de João Bénard da Costa (apesar de ter sido dele a folha de sala que acompanhou a sessão). Este ano voltamos ao grande cineasta francês, ainda muito subvalorizado um pouco por todo o lado mas um dos maiores vultos do cinema desse país, com Casque d'or, a nossa próxima sessão.

Quando esteve na América, Bertrand Tavernier, de quem já exibimos Voyage à travers le cinéma français, de 2016, falou de Becker para a Film Comment e deixou sair que "eu sei que ele não é conhecido neste país, e é uma pena, porque para mim ele é, se não o maior, então um dos maiores realizadores franceses dos anos quarenta e cinquenta. Um dos maiores. Um dos mais subvalorizados neste país. Sei que repuseram o Antoine et Antoinette recentemente, que é uma obra-prima, mas Edouard et Caroline é uma comédia maravilhosa: muito, muito engraçada, com um espaço tremendo, e alguns momentos em que se torna subitamente sério. Mesmo no fim, há um momento em que se podia tornar num drama. É feito com tanta graciosidade e elegância na direcção.

"Eu acho Becker o igual de - se não melhor que - mesmo pessoas como Hawks. Tinha um alcance tão vasto: de Casque d'or to Eduardo e Carolina, ou de Antoine et Antoinette a Touchez pas au grisbi ou O Buraco. Um alcance enorme, e sempre com a mesma qualidade profundamente orgânica. Ele estava a fazer coisas que eram extremamente arrojadas e extremamente novas, mas eram feitas de forma tão fluída que ninguém reparava quão novas eram. A personagem de Gabin em Touchez pas au grisbi, por exemplo, precede todos os anti-heróis dos anos sessenta e setenta: pela forma como é macho com as mulheres, ou a forma como quer ir cedo para a cama. É uma destruição da imagem de Gabin, e de toda a imagem romântica do herói. Este gangster é apenas um burguês que quer ter uma mulher burguesa e não vai dormir tarde nem tem quaisquer problemas. Isso era incrivelmente arrojado para alguém como o Gabin. Há muito poucos actores que estariam dispostos a desafiar a sua própria imagem dessa forma: ele tinha a reputação de ser o grande sedutor, o tipo romântico, o herói de todos os filmes do pré-guerra. E depois estava a interpretar o oposto. Adoro isso."

Em Les films de ma vie, título que serviu de inspiração tanto para as crónicas do jornal O Independente como para os livros em que João Bénard da Costa as reuniu para a Assírio & Alvim, o crítico e cineasta François Truffaut escreveu que «Casque d'Or é o único filme que Jacques Becker - normalmente muito meticuloso, absorvido pelo detalhe, obsessivo, inquieto, e às vezes incerto - alguma vez fez de um só golpe, de forma muito rápida, em linha recta do princípio ao fim. Escreveu o diálogo coloquial e de aparência tão natural de forma tão económica que se tem a impressão de Reggiani não dizer mais do que sessenta palavras.

«Nós, que amamos Casque d'Or, temos claro nas nossas mentes que Simone Signoret e Serge Reggiani tiveram nele os seus melhores papéis de sempre, mesmo que o público francês (mas não o inglês, decididamente mais subtil) tenha sido frio para com a sua união paradoxal, tão bela precisamente devido aos seus contrastes - um homem pequeno e uma mulher grande, o pequeno gato de rua que é feito apenas de coragem, e a linda planta carnívora que não se recusa a qualquer pedaço.

«Se se está interessado de todo na forma como as histórias são construídas, não se pode deixar de admirar o engenho da trama, particularmente a forma intensa, oblíqua e inesperada como chega abruptamente à execução de Manda numa cena que é tão bela como misteriosa, quando a Casque d'Or chega a um hotel de má reputação a meio da noite. Quando eu ou algum dos meus colegas argumentistas estamos em sarilhos, dizemos muitas vezes uns aos outros, "Que tal uma 'solução à Casque d'Or'?"»

No Dictionnaire, o irmão Jacques escreveu que "o trágico latente e disperso, que às vezes irrompe de forma inesperada em vários filmes de Becker (Goupi mains rouges, Falbalas), é aqui exibido à luz do dia e constitui o objectivo principal da obra. Os heróis são vítimas tanto da sua condição social como do seu destino individual. Vivem num mundo cruel de que Becker quis dar uma descrição sóbria e desprovida de trivialidade e de pitoresco. Porque a rapariga e o operário, por causa de uma espécie de dignidade que lhes é própria, parecem ambos superiores ao seu destino. O trágico da história deles encarna-se numa reconstituição precisa e comovente da periferia de Paris nos anos anteriores a 1914. Essa intensidade concreta na recriação vívida de uma época e de um lugar - os costumes, as atitudes e o falar das personagens - e essa saliência nos gestos e nas vozes dos actores (todos praticamente inesquecíveis e encontrando aqui os seus melhores papéis) fazem de Becker o cineasta francês por excelência. Nele não há nada de teórico, obediência alguma a uma tendência estética que poderia manchar a homogeneidade e a sinceridade da obra. Nos filmes dele fala apenas a matéria. É elaborada por um artista exigente e minucioso como um artesão. Casque d'or teve um insucesso bem conhecido na estreia. Devido à «lentidão do andamento, à ausência de qualquer elipse e à abundância dos tempos mortos», segundo o próprio Becker (in «Cahiers du cinéma» n° 32). Também se pode dizer: pela negritude sem concessões do tom e pela irrupção do trágico onde se esperava uma certa futilidade e o pitoresco dos romances populares. Alguns anos mais tarde, como foi o caso com Le carrosse d'or ou Le plaisir, outros memoráveis fracassos comerciais, o filme tornou-se um clássico do cinema francês aos olhos de todos.

"Biblio. : argumento e diálogos in «L'Avant-Scène» nº43 (1964)."

Até Quinta!

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