por João Bénard da Costa
Casque d'or, como todas as grandes obras, é um filme que quanto mais se vê mais se quer rever. E, ao contrário de muitos filmes que não resistiram à passagem do tempo Casque d'or guarda intactas as suas virtudes: hoje, como em 1952, é um dos mais belos filmes de música, é um dos mais belos filmes de luz.
Filmes de música. Muito se tem insistido depois de Truffaut (que lhe chamou o Poulenc do cinema francês), na analogia entre a música de câmara e o cinema de Becker. No melhor texto sobre o filme publicado em português (de Alberto Vaz da Silva) falava-se «de uma maneira de fazer cinema que prescinde de metais e se contenta com arcos e uns raros instrumentos de sopro». Casque d'or é a suprema ilustração dessa maneira.
Se a música (até aos últimos dez minutos do filme) tem uma presença muito discreta, e está, como os diálogos, reduzida ao essencial, há sempre um tratamento da banda sonora que permite a melhor definição do ambiente. Passando para lá das primeiras danças de Marie, com Roland e com Manda (esta última recapitulada, em ângulo e acompanhamento diferente no postfácio de Casque d'or) vale a pena ouvir bem o que se passa na sequência do duelo (o latir dos cães, misturando-se ao silêncio) na da primeira visita de Signoret a Reggiani (vozes de crianças como pano de fundo do primeiro beijo), na do encontro à beira do rio (pássaros) ou na sequência em que Leca vem anunciar a prisão de Raymond (os sinos). Esses sons – discretos e distantes – dizem-nos tanto quando a imagem – (o pátio negro, de parede muito branca, do duelo; a profundidade de campo do terreiro vazio do beijo da Signoret: o campo-contra-campo em grandes planos do despertar de Manda por Marie; a lenta panorâmica a “fechar espaço” que se sucede ao anúncio da prisão, com Marie fechando o xaile) sobre o que vai acontecer às personagens, sobre o fatal percurso que sobre elas se abate.
Mas a música não tem apenas que ver com a banda sonora. É a espantosa construção narrativa deste filme que releva do que se chamou “música de câmara” com cada “instrumento” (personagem) a desenhar os motivos que os distinguem, opõem e combinam até ao “crescendo” final, culminando na longa nota silenciosa que é o rosto da Signoret perante a execução.
Nesta altura do filme – os citados dez minutos finais – já a música (agora em sentido literal) ocupa o primeiro plano. É a canção Le Temps des Cerises que começa in nas vozes desafinadas dos cegos (plano insólito) para fazer raccord em off com a explosão do tema musical que vai dominar as últimas sequências (mortes de Leca e Manda). A letra da canção (as palavras não se ouvem) fala da «plaie ouverte» e do «souvenir que je garde au coeur». («Et dame fortune / en m'étant offerte /ne pourra jamais / calmer ma douleur»).
Filme de luz. A acção situa-se no temps des cerises e todo o filme é uma prodigiosa variação sobre a luz desse tempo, na linha da grande pintura impressionista francesa, de Manet a Monet, passando por Renoir. Luz que nos é “atirada” desde a sequência inicial do passeio de barco e culmina no já citado encontro de Marie e Manda junto ao rio. Toda essa luminosidade (que preside igualmente à vingança de Manda) prepara a madrugada final, com a passagem da luz do candeeiro à luz da aurora e a um tom que evoca alguns quadros de El Greco.
Essa luz é sempre preferencialmente recebida e espalhada por Signoret – Casque d'or. Sem qualquer preocupação realista, Becker “inunda” a actriz, fazendo-a sempre surgir rodeada de sol e ouro, mesmo quando nenhum ponto luminoso (sequência em casa de Leca quando do primeiro encontro de ambos) justifica esse halo que rodeia Marie. Halo que atinge a expressão máxima no contra-campo em que Manda a vê quando acorda, e que já foi considerado o mais belo grande plano da história do cinema. Mas halo que se prolonga em diversos cambiantes, como na sequência da igreja (em que toda a luz desce sobre Signoret) e não envolve só os cabelos e a cara desta, mas se comunica ao pescoço, à estola, ao colar, aos brincos e aos sapatos que irão desempenhar na acção um tão importante papel.
Tudo são “emanações” de Signoret, neste filme da sua máxima criação no cinema. Talvez nunca, depois das criações de Marlene com Von Sternberg, uma actriz tenha sido “fetichizada” a este ponto.
Mas Casque d'or, imponderável na combinação de muitos registos, não se perfaz nos “acordes” sobre Simone Signoret nem na história do seu amor com Manda. Em filigrana, «tão belo como», para citar uma vez mais o texto de Alberto Vaz da Silva, está a história de Manda e Raymond (com as também excepcionais criações de Reggiani e Bussières). A sequência na polícia, milagre de concisão e elipse, é o ponto culminante dessa aventura paralela que tem a sua expressão máxima no breve movimento de cabeça de Raymond quando percebe tudo e na luz – uma vez mais – que enche os olhos de Manda. Reconstituindo impecavelmente uma época – Paris 1900 – servido pelos excepcionais décors de d'Eaubonne, Becker soube trazer até nós uma luz e um eco. A exuberância de formas – e de carnes – com que povoou o seu filme dão-nos a memória dum tempo e dum amor muito breve («mais il est bien court le temps des cerises»). E, regressando ao momento da dança, depois do terrível plongé da execução e do desfazer do ouro nos cabelos de Signoret, Becker fixa essa memória fantomática para prolongar e perpetuar a ilusão dela.
in «João Bénard da Costa – Escritos Sobre Cinema», Tomo 1, 1º Volume, Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema, Lisboa, Setembro de 2018, pp. 141-143.
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