por João Bénard da Costa
Três anos depois de Fugiu um Condenado à Morte, Bresson estreou a sua quinta longa-metragem, de novo com argumento original, de sua autoria. À câmara, de novo, Burel e também, de novo, música chamada clássica: desta vez Lully. Actores (ou modelos) todos não profissionais, como desde o filme precedente, sempre passaria a suceder.
Alguns críticos pretendem ver no argumento de Bresson reminiscências de Dostoievsky e, particularmente, do Crime e Castigo. Não faltam, mesmo, algumas identificações entre Michel e Raskolnikoff. Sem as negar, Bresson afirmou contudo ter-se inspirado mais na obra que igualmente serviu de base ao romancista russo: Der Einzige und sein Eigentum (O Único e a sua Propriedade) do pensador anarquista alemão Max Stirner. Filiação curiosa, pois que abre para uma ordem de reflexões que raramente tem sido abordada a propósito do cineasta, cuja temática, atentamente considerada, não estará longe de certo anarquismo (mesmo que o de Bresson se situe politicamente à direita).
Ao falar de Stirner, numa entrevista concedida a Samuels e publicada no livro Encountering Directors, Bresson cita frases do livro deste: «O que é que legitimamente me é permitido fazer? Tudo aquilo de que sou capaz» ou «Os meus direitos, tanto quanto sei, vão tão longe quanto pode ir o meu braço» para encontrar paralelos entre essa moral e a do seu pickpocket. Mas pode-se legitimamente sustentar que é uma moral que não é só deste personagem bressoniano. Todos eles se colocam acima da lei, numa acepção que pode ter também eco em certos textos canónicos, nomeadamente na afirmação pauliniana do primado do espírito (A lei mata, mas o espírito vivifica).
Esta frase podia, aliás, servir de epígrafe a Pickpocket. Na sua aparente moral de super-homem, Michel reclama-se de uma outra ordem de valores, a que Jacques, o seu amigo, é incapaz de aceder e que só parece ser exactamente compreendida pelo seu verdadeiro rival: o inspector de polícia. A história do filme é a do duelo travado entre Michel e aquele, que se alguma coisa, é certo, terá que ver com o Crime e Castigo, releva mais da oposição-aproximação entre a força irracional da lei (a polícia) e a força irracional dum destino humano. Oposição na medida em que as forças são necessariamente divergentes (como o mostra o permanente jogo do gato e rato que se processa entre Michel e o inspector); aproximação porque esse jogo se desenvolve para uns e outros sob o mesmo signo de acaso e destino (Michel consegue salvar-se – como? - da primeira vez que é apanhado, no início do filme, e deixa-se apanhar – apesar de tudo o que o devia pôr de sobreaviso – no final do mesmo). Michel percorre um caminho, os polícias barram-no.
Essa noção de caminho (de novo com o correlativo peso da graça) é inseparável deste filme, onde, de novo, se entrecruzam os temas da liberdade e da prisão. É entre as grades, que Michel descobre o sentido, na célebre réplica final: «O Jeanne, pour aller jusqu'à toi quel drôle de chemin il m'a fallu prendre», proferida com o inconfundível acento neutro dos personagens bressonianos, e culminando um trajecto que teve que passar por tudo aquilo por que passou. Porque também, Jeanne “para ir até Michel” teve que abandonar a ordem (ligação-traição com Jacques) e a comunicação entre os dois processa-se na cumplicidade estabelecida por ambos nessa outra ordem de valores. Por isso, a música de Lully (como a de Mozart, em Un condamné à mort s'est échappé) intervém nos momentos de êxito do carteirista e nos encontros com Jeanne. Nesses vários momentos, a iluminação (traduzida pela banda-sonora) dá-se como sinal para a plenitude final. Momentos que farão dizer a Michel (sequência da missa pela mãe): «Acreditei em Deus durante três minutos» (e na citada entrevista, Bresson comentava que «poucas pessoas podem dizer que acreditaram em Deus durante tanto tempo»).
Como quase todos os filmes de Bresson, também Pickpocket teve outro título: “Incerteza” era a designação original da obra. Sem querer forçar a provável intenção desse nome, pode-se dizer que nenhum filme de Bresson, é, como este, tão aberto e incerto em possibilidades de interpretação (de uma incerteza que cada nova visão só reforça) e, ao mesmo tempo, nenhum será talvez mais rigoroso e de uma construção tão complexa (veja-se, por exemplo, a extraordinária sequência da gare de Lyon). Por isso, Pickpocket é a obra favorita dos mais fervorosos bressonianos, que nela vêem a mais ousada das tentativas do autor para desmontar o real através das suas aparências ou, se se preferir, as aparências através da sua realidade. O que um admirador deste filme tentou traduzir dizendo que Pickpocket era o filme mais “branco” da história do cinema.
De Pickpocket tanto se pode falar em termos de “tratado de moral” (e avançar em domínios aflorados, como o das relações entre o roubo e a homossexualidade, a propósito da relação Michel-Jacques ou Michel com os outros carteiristas, o tema da mãe, cuja ligação com o filho passa também pelo roubo mas principalmente pela morte) como em termos estritamente “materiais”, na medida em que se pode sustentar, igualmente, que é um filme sobre mãos, olhares, sem outra “metafísica” que não essa. A ausência de expressão (das personagens, suas vozes, sua fragmentação) tanto é uma expressão de ausência, como a expressão de uma presença idêntica à que se encontra em outros filmes de Bresson (a do que não tem nome e, portanto, não pode ter imagem). Este é um filme que joga com os seus próprios vazios, ou, melhor dito, em que esses vazios podem ser pressentidos como o essencial, apenas porque essencial se esgota na pura materialidade.
Nunca, talvez, como nesta obra, Bresson tenha ido tão longe na defesa da sua ideia de que «o cinematógrafo é a arte de não mostrar nada». Afirmação que só pode parecer paradoxal a quem não tenha sido capaz de ver o que é esse nada que Pickpocket mostra.
in «João Bénard da Costa – Escritos sobre Cinema», Tomo 1, 1º Volume, Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema, Lisboa, Setembro de 2018, pp. 513-515.
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