É a primeira vez que exibimos um filme do "Patron", na acepção do documentário em três partes que Jacques Rivette dedicou ao maior cineasta francês, Jean Renoir. Já o tínhamos visto com Henri Langlois no filme de Éric Rohmer sobre os irmãos Lumière, Louis Lumière, que exibimos o ano passado em Março, bem como no documentário de Bertrand Tavernier sobre o cinema do seu país, mas vai ser a primeira vez que programamos um filme por si realizado. French Cancan é a nossa próxima sessão na Casa do Professor.
Em 1961, para a série de televisão Jean Renoir vous parle de son art (transcrito mais tarde em Jean Renoir: entretiens e propos e traduzido para português por Júlio Bezerra para o catálogo da mostra A Vida Lá Fora: O Cinema de Jean Renoir), o realizador disse que "French Cancan é, acima de tudo, a história de Nini. Nini é uma pequena lavadeira, anda pela rua com a cesta dela debaixo do braço. Não há nada mais atraente do que uma lavadeira que anda pela rua com a cesta dela debaixo do braço. Está a ver, elas já não existem, mas quando eu era pequeno, havia muitas e eu observava-as. Claro que também é a história de um indivíduo brilhante que inventou o que hoje é chamado de music-hall. Devemos o espectáculo a esse tipo, bem como as discotecas, tudo o que existe agora para distrair as pessoas que estão entediadas. Mas a Nini é muito importante. A Nini é a irmã de Lulu. A Lulu é a minha esposa de La chienne (1931), é a irmã de Celestine. Celestine é a minha empregada de O Diário de Uma Criada de Quarto (The Diary of a Chambermaid, 1946). Pode até ser mesmo a irmã de Magnani, de Camilla de A Comédia e a Vida (Le carrosse d’or, 1952). Nini caminha pela rua com a cesta dela debaixo do braço, o grande empresário aborda-a e vai-lhe ensinar não só a melhor forma de ganhar dinheiro, mas também como ser brilhante, a beleza da arte. É algo extremamente importante. Eu acredito no trabalho. Acho que devemos basear as nossas vidas no trabalho, e acho que French Cancan talvez seja acima de tudo uma homenagem à arte, e que arte, não é? Eu escolhi a dança! Além disso, se tivesse tentado não acreditar nesta profissão enquanto filmava French Cancan, teria sido convencido a voltar atrás pelas raparigas que trabalhavam comigo. Foi absolutamente fantástico! Vivíamos numa atmosfera incrível! A coragem, a boa vontade, a bondade dessas dançarinas, que se esforçam e sofrem muito, por vezes até mesmo magoando-se – é algo muitas vezes doloroso fazer uma espargata, não é nada engraçado. Apresento-vos French Cancan e peço-vos que pensem sobre o trabalho que desempenham e o amem. Porque há sempre maneiras de amar o nosso trabalho. Em primeiro lugar, porque não há distinções ou classificações no que diz respeito às profissões. Podemos dizer que toda a gente é um artista na vida, o padeiro que consegue fazer um bom pão é tão importante como o Picasso. O que é importante é ser o melhor padeiro possível, e, se se for um pintor, que também se seja o melhor, que se pinte como um génio. E, finalmente, é dessa maneira que nos expressamos, até porque, essencialmente, essa é a grande questão. O problema é que quando nos explicamos demais – como devo estar a fazer neste momento – estamos a cometer um erro. Mas, por fim, vai-me desculpar. Se tentamos explicar demais as coisas, acabamos por não dizer nada, na verdade. Se nos tentamos explicar parcimoniosamente, aperfeiçoando um objeto, se nos expressamos por meio de algo que queremos fazer ou dizer, então há uma pequena chance de, modestamente, nos conseguirmos expressar a nós próprios."
Em Os Filmes da Minha Vida (no capítulo "Un Festival Jean Renoir"), François Truffaut escreveu que "French Cancan (1955) marcou o regresso de Renoir aos estúdios franceses. Não vou contar o enredo mas fiquem apenas a saber que é sobre um episódio da vida de um certo Danglard que fundou o Moulin Rouge e criou o cancan francês. Danglard dedica a sua vida ao music-hall, descobre jovens talentos, dançarinas ou cantoras e «faz» vedetas. Mal ele se torna amante deles por um tempo e eis que elas se revelam exclusivas, possessivas, ciumentas, caprichosas e insuportáveis. Mas Danglard não se deixa prender, está casado com o music-hall e só o sucesso dos seus espectáculos é que conta.
Em 1961, para a série de televisão Jean Renoir vous parle de son art (transcrito mais tarde em Jean Renoir: entretiens e propos e traduzido para português por Júlio Bezerra para o catálogo da mostra A Vida Lá Fora: O Cinema de Jean Renoir), o realizador disse que "French Cancan é, acima de tudo, a história de Nini. Nini é uma pequena lavadeira, anda pela rua com a cesta dela debaixo do braço. Não há nada mais atraente do que uma lavadeira que anda pela rua com a cesta dela debaixo do braço. Está a ver, elas já não existem, mas quando eu era pequeno, havia muitas e eu observava-as. Claro que também é a história de um indivíduo brilhante que inventou o que hoje é chamado de music-hall. Devemos o espectáculo a esse tipo, bem como as discotecas, tudo o que existe agora para distrair as pessoas que estão entediadas. Mas a Nini é muito importante. A Nini é a irmã de Lulu. A Lulu é a minha esposa de La chienne (1931), é a irmã de Celestine. Celestine é a minha empregada de O Diário de Uma Criada de Quarto (The Diary of a Chambermaid, 1946). Pode até ser mesmo a irmã de Magnani, de Camilla de A Comédia e a Vida (Le carrosse d’or, 1952). Nini caminha pela rua com a cesta dela debaixo do braço, o grande empresário aborda-a e vai-lhe ensinar não só a melhor forma de ganhar dinheiro, mas também como ser brilhante, a beleza da arte. É algo extremamente importante. Eu acredito no trabalho. Acho que devemos basear as nossas vidas no trabalho, e acho que French Cancan talvez seja acima de tudo uma homenagem à arte, e que arte, não é? Eu escolhi a dança! Além disso, se tivesse tentado não acreditar nesta profissão enquanto filmava French Cancan, teria sido convencido a voltar atrás pelas raparigas que trabalhavam comigo. Foi absolutamente fantástico! Vivíamos numa atmosfera incrível! A coragem, a boa vontade, a bondade dessas dançarinas, que se esforçam e sofrem muito, por vezes até mesmo magoando-se – é algo muitas vezes doloroso fazer uma espargata, não é nada engraçado. Apresento-vos French Cancan e peço-vos que pensem sobre o trabalho que desempenham e o amem. Porque há sempre maneiras de amar o nosso trabalho. Em primeiro lugar, porque não há distinções ou classificações no que diz respeito às profissões. Podemos dizer que toda a gente é um artista na vida, o padeiro que consegue fazer um bom pão é tão importante como o Picasso. O que é importante é ser o melhor padeiro possível, e, se se for um pintor, que também se seja o melhor, que se pinte como um génio. E, finalmente, é dessa maneira que nos expressamos, até porque, essencialmente, essa é a grande questão. O problema é que quando nos explicamos demais – como devo estar a fazer neste momento – estamos a cometer um erro. Mas, por fim, vai-me desculpar. Se tentamos explicar demais as coisas, acabamos por não dizer nada, na verdade. Se nos tentamos explicar parcimoniosamente, aperfeiçoando um objeto, se nos expressamos por meio de algo que queremos fazer ou dizer, então há uma pequena chance de, modestamente, nos conseguirmos expressar a nós próprios."
Em Os Filmes da Minha Vida (no capítulo "Un Festival Jean Renoir"), François Truffaut escreveu que "French Cancan (1955) marcou o regresso de Renoir aos estúdios franceses. Não vou contar o enredo mas fiquem apenas a saber que é sobre um episódio da vida de um certo Danglard que fundou o Moulin Rouge e criou o cancan francês. Danglard dedica a sua vida ao music-hall, descobre jovens talentos, dançarinas ou cantoras e «faz» vedetas. Mal ele se torna amante deles por um tempo e eis que elas se revelam exclusivas, possessivas, ciumentas, caprichosas e insuportáveis. Mas Danglard não se deixa prender, está casado com o music-hall e só o sucesso dos seus espectáculos é que conta.
"Esse amor exclusivo pelo ofício, e incuti-lo às jovens artistas que descobre e revela, é a sua razão para viver.
"Reconheceremos a relação deste tema com o de Carrosse d'Or: a vocação do espectáculo triunfante das peripécias sentimentais. French Cancan é uma homenagem ao music-hall como Le Carrosse d'Or o era à commedia dell'arte, mas acho que tenho de confessar a minha preferência por Le Carrosse d'Or; as fraquezas de French Cancan, por serem exteriores a Jean Renoir, não são menos prejudiciais porque afectam o elenco em primeiro lugar. Se Giani Esposito, Philippe Clay, Pierre Olaf, Jacques Jouanneau, Max Dalban, Valentine Tessier e Anik Morine estão excelentes, pelo contrário, Jean Gabin e Maria Félix não parecem dar o «máximo» de si mesmos.
"Mas é preciso notar igualmente os elementos mais positivos da empreitada: French Cancan marcou uma data na história da cor no cinema. Jean Renoir não quis fazer um filme pictórico e a esse respeito French Cancan apresenta-se como um anti-Moulin Rouge, em que John Huston tinha procedido a misturas de cores obtidas pelo emprego de filtros de gelatina; aqui só há cores puras. Em French Cancan cada plano é uma gravura popular, uma «imagem de Épinal» em movimento. Ah! os belos negros, os belos castanhos, os belos beges!"
No Dictionnaire, Jacques Lourcelles escreveu que "depois de quinze anos de peregrinações, Renoir volta a rodar em França. «Para mim», declarou ele (in «Cahiers du cinéma» nº 78), «French Cancan correspondia a un grande desejo de fazer um filme num espírito muito francês, e de poder existir um contacto fácil e cómodo, uma ponte aprazível entre mim próprio e o público francês.» Ele herda um projecto destinado a Yves Allégret que re-escreve totalmente e sozinho. Neste filme «fácil» e sem ambição aparente, inspirado na vida do verdadeiro fundador do Moulin Rouge, estão contudo presentes uma grande parte da sua filosofia e da sua paleta. Renoir pinta mais uma vez um clã, um mundo bem homogéneo no seu pitoresco e na sua diversidade, e que, sem constituir uma sociedade secreta por inteiro, tem no entanto as suas regras e o seu território próprios, como as diferentes classes sociais evocadas em A Grande Ilusão. Nos dois pólos da sociedade, o príncipe e o padeiro vão queimar os dedos, aprendendo às próprias custas e para sua grande tristeza que não têm lugar («Na selva, os animais agrupam-se por famílias, por clãs, não se misturam sob pena de morte. Pus as minhas patas onde não devia» dirá o príncipe depois do seu suicídio). O clã aqui descrito não é o do Teatro com T maiúsculo como em Le carrosse d'or; é o do espectáculo nas suas formas mais populares e mais modestas: o music-hall, o café-concerto, o cabaret, e tudo aquilo que algumas décadas mais tarde se chamará de «variedades». Ainda mais do que pelos actores, Renoir interessa-se aqui pelo organizador do espectáculo, pelo encenador, pela eminência parda da festa. Isto mostra o quão próximo dele está este filme. As cores, sensuais, vivas e variadas a preceito, recriam numa homenagem ao Impressionismo um mundo já antigo, ressuscitado pela lembrança. A afectação está ausente porque a crueldade está sempre ao lado da nostalgia, colando-se a ela como sua sombra. A direcção de actores consegue esse milagre constante e característico do estilo do autor de dar vida a personagens nas quais nunca esquecemos o fantoche, mal escondido por trás das alegrias e das tristezas que o animam - é a parte do moralista em Renoir. Finalmente o movimento, o movimento sacrossanto, por mais frenético que seja, vem como em John Ford de uma acumulação erudita de planos fixos. A câmara tem o pudor de se mexer o menos possível, e sempre com sabedoria, e sempre de forma sub-reptícia. Nos últimos filmes de Renoir, o movimento pertence mais aos corpos e aos sentimentos do que à técnica."
Até Quinta-Feira!
Até Quinta-Feira!
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