por João Bénard da Costa
Na filmografia de Renoir, French Can-Can segue-se a La Carrozza D'Oro e antecede Elena et les Hommes. Foi o primeiro filme que Renoir fez em França depois do seu regresso à pátria, donde estivera ausente (na América e na Índia) onze anos, de 1940 a 1951. Após as obras amargas realizadas nos Estados Unidos, que definitivamente o afastaram do realismo que o atraíra no fim dos anos 30, após esse filme, de certo modo singular na sua carreira, que foi The River (1951), Renoir iniciou com La Carrozza as suas grandes meditações finais sobre o espectáculo (“a comédia e a vida”) e sobre a arte como “grande ilusão”. French Can-Can é um marco fundamental nessa direcção, sendo também, “o primeiro dos seus grandes 'divertimentos' finais”. A acção do filme situa-se em 1888 e inspira-se na vida de Ziegler, o fundador do Moulin Rouge, o homem que lançou o can-can. Renoir reencontrou Jean Gabin, o actor de Les Bas-Fonds (36), La Grande Illusion (37) e La Bête Humaine (38). E – ele próprio disse - “amo French Can-Can porque me deu a ocasião de voltar a trabalhar com Gabin. Foi, para mim, um regresso ao passado (…) Agradeço ao cinema por me ter proporcionado esse reencontro”.
Aparentemente, esta afirmação é estranha, pois que French Can-Can parece estar nos antípodas dos filmes citados, três das obras que mais contribuíram para a imagem de Renoir realista e empenhado que, durante tanto tempo, se confundiu com a própria imagem de Renoir. Mas, voltando sobretudo ao seu filme mais famoso - “cette sacrée Grande Illusion”, como Renoir também disse – a obra que vamos ver, sem nada ter que ver com ela, no plano da leitura imediata, retorna explicitamente um dos momentos mais célebres desse filme. É a tão citada sequência da “Marselhesa” que em La Grande Illusion (cantada pelos prisioneiros franceses, durante uma representação teatral, quando sabem de uma vitória militar das suas tropas) marcava um momento alto de “emoção patriótica”, e regressa em French Can-Can (durante a visita do ministro) como momento de circunstância, marcando a grande bagarre entre Maria Félix e Françoise Arnoul que se transforma em pancadaria geral.
Não foi certamente por acaso que Renoir retomou uma sua sequência tão célebre para a destruir por dentro e lhe dar um tão diverso significado. O lado “humain, trop humain” que caracterizara o filme de 37 – e que não pouco devia à presença e à interpretação de Jean Gabin – é desmontado em French Can-Can, com o mesmo actor, dando sobretudo em espectáculo uma outra ilusão: a que consiste, como é dito no diálogo do filme, em acreditar que só o espectáculo permita aceder à grande vie e se substitua e confunda com ela. Essa é a ”ilusão” (de natureza diferente, mas de essência aproximável) que justifica o personagem de Gabin neste filme, para o qual tudo (amor, mulheres, amizade) mais não eram do que modos de criar essa ilusão de vida, que só no espectáculo complementar se perfaz. A famosa fala de Gabin, na inauguração do Moulin Rouge, quando explica a Françoise Arnoul o que são para ele as mulheres, o amor e o espectáculo (e que convence Nini a “entrar em cena”), será, vista a essa luz, um dos momentos mais confessionais do cinema de Renoir, opondo essa ilusão total (que, lato sensu, é a do criador) à ilusão que o príncipe procurara na sua noite de amor com Nini. O príncipe quisera a “ilusão do amor” para ter uma recordação com que ficar. Falha, assim, a relação com Nini, como antes falhara a sua própria morte. Só lhe resta “desaparecer de cena” deixando nela os atributos (“o décor”) da ilusão do poder que lhe andara associada. E é no mais visível desses atributos – a cadeira – trono – que Gabin se senta para escutar (sem ver) o sucesso da sua “girândola final”. Os grandes planos de Gabin nos bastidores, inseridos na genial sequência do “can-can” (enquanto o empresário esboça com o pé o movimento da dança) são o assombroso contraponto da “ficção ideal” que se desenrola no palco. Simultaneamente, o criador está de fora e de dentro dessa ficção. Já não precisa de ser voyeur (como o fora, pouco antes, quando espreitara com Nini, mas de oposto lado, a sua nova descoberta, Esther Georges), pode “reger”, invisivelmente, essa ordenação que é, para ele, a única que conta.
Assim, a visão de Renoir, neste filme, é sempre a de alguém que se encontra nos bastidores (sequência inicial, com o plano subjectivo sobre Maria Félix), sabendo que esse é o único lugar que possibilita a visão mais próxima e mais serena. Por isso, também este filme, que dá uma tão assombrosa sensação de movimento, é um filme em que a câmara pouco se move (quase todos os planos da sequência final são fixos e o movimento é o dos actores). O ponto donde se vê é quase sempre único, abarcando na sua globalidade os décors teatrais, de cartão visível (Montmartre, as colinas, a conversa entre Nini e o príncipe junto à árvore, etc.) e impondo o carácter fictício de todas as mises-en-scène (as pequenas-grandes paixões dos intérpretes, quer elas se refiram ao amor e ao ciúme, quer se refiram ao poder) face à única que finalmente reina: a mise-en-scène do próprio filme, a do espectáculo que tudo é. Sobre as aparências do real, só a realidade da aparência subsiste.
in «Folhas da Cinemateca – Jean Renoir», Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema, Lisboa, Setembro de 2005, pp. 153-155.
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