Jacques Demy criou um mundo à parte, como já vimos o ano passado nas Donzelas de Rochefort, povoado de personagens em movimento perpétuo e que se vão encontrando e desencontrando de filme para filme. Os Chapéus de Chuva de Cherburgo talvez seja o seu filme mais icónico e um dos filmes preferidos de Bénard da Costa. É a nossa próxima sessão.
Jorge Silva Melo, que nos apresentou Some Came Running em 2016, escreveu sobre o cinema de Demy para o Público, em 2017, dizendo que "tudo passou, a festa acabou, é sempre de uma quarta-feira de cinzas que Jacques Demy olha para trás. Um cinema encantado, poderosamente realista. Um cinema que entristece.
"Atrás de cada vidraça, uma personagem. Em cada prédio, um destino. Este o titânico projecto de Balzac que, na sua Comédie Humaine, foi povoando cada rua, beco, cada bairro de Paris (e não só), com aquela multiforme humanidade que inventou, para desvendar a metrópole que nascia. E é o projecto romanesco de Jacques Demy, que faz passar pelas suas cidades do Loire, Nantes em primeiro lugar (Lola), Cherburgo ou Rochefort depois, pelas mesmas ruas, mesmos portos, pelas mesmas arcadas que há ainda em Nantes, esplendor da cidade comerciante, pelas mesmas pontes, mesmos portos, carrosséis, uma catrefada de gente, marinheiros em licença, operários, professoras de ballet, bailarinos, raparigas de entretém, empregaditas de loja, patroas, feirantes, gasolineiros, meninas que ainda vão ao colégio.
"E de tal forma povoou que, em 1972, de Renault 4, ainda lá fomos uns quatro, de Lisboa muito cedo até à praça de Rochefort, à Passage Pommeraye de Nantes, ao porto de Cherburgo. E que triste fiquei quando, na marginal de Nantes, naquele prédio de gaveto onde as raparigas cantavam, de maillot rendado e para os marinheiros de uma noite, não havia cabaré nenhum, tinha sido só um letreiro que o seu genial cenógrafo, Bernard Evein, lá colocou. E era pois, era Eldorado o nome do cabaré que nunca existiu. O lugar inventado ali mesmo na rua, mas na outra banda da vida? Era de lá que saiam, pelas primeiras luzes da manhã cinzenta e branca (Raoul Coutard, o director de fotografia), com uma gabardina por cima do maillot, as raparigas que entretinham os homens e tinham um filho para criar umas ruas adiante, quarto alugado."
Michel Legrand, que escreveu a banda-sonora e nos deixou no início deste ano, escreveu sobre o processo de composição do filme para o Télérama, contando que «o Jacques tinha escrito "L'Infidélité ou Les Parapluies de Cherbourg". “Não achas que podíamos fazer um musical com canções?” Eu começo a trabalhar. Dez dias depois, vê-se se a coisa funciona. E bom, o que não funcionava, era a passagem do cantado ao falado. Eu proponho que se desista. “Não", diz o Jacques. "E se o fizéssemos todo cantado?” Vou para um lugar retirado e escrevo: “Jacques, vem ouvir isto depressa!” Era uma música séria, “operática” e complicada. “Não é isso, diz Jacques. É preciso que seja muito simples para que o público possa decifrar a partitura à primeira audição.”
«Pusemo-nos ao trabalho: criar o sublime com três notas, dar ao público a ilusão de que sabe de cor o que está a ouvir pela primeira vez... O Jacques trazia-me uma cena. Líamos. Eu tentava.
«O Jacques era paciente: foi preciso muito tempo até sair uma nota aceitável. Ele aconselhava-me: “Mais alto, mais rápido – Tu não te chateias quando ando à procura durante duas horas? – Oh não!” Jacques adorava a música. Eu inventava outras notas. Ele escrevia outras palavras. Eu dizia-lhe: “Preciso de mais duas sílabas”, ou então “menos duas sílabas”. O Jacques cinzelava as palavras todas sobre a melodia.»
Jorge Silva Melo, que nos apresentou Some Came Running em 2016, escreveu sobre o cinema de Demy para o Público, em 2017, dizendo que "tudo passou, a festa acabou, é sempre de uma quarta-feira de cinzas que Jacques Demy olha para trás. Um cinema encantado, poderosamente realista. Um cinema que entristece.
"Atrás de cada vidraça, uma personagem. Em cada prédio, um destino. Este o titânico projecto de Balzac que, na sua Comédie Humaine, foi povoando cada rua, beco, cada bairro de Paris (e não só), com aquela multiforme humanidade que inventou, para desvendar a metrópole que nascia. E é o projecto romanesco de Jacques Demy, que faz passar pelas suas cidades do Loire, Nantes em primeiro lugar (Lola), Cherburgo ou Rochefort depois, pelas mesmas ruas, mesmos portos, pelas mesmas arcadas que há ainda em Nantes, esplendor da cidade comerciante, pelas mesmas pontes, mesmos portos, carrosséis, uma catrefada de gente, marinheiros em licença, operários, professoras de ballet, bailarinos, raparigas de entretém, empregaditas de loja, patroas, feirantes, gasolineiros, meninas que ainda vão ao colégio.
"E de tal forma povoou que, em 1972, de Renault 4, ainda lá fomos uns quatro, de Lisboa muito cedo até à praça de Rochefort, à Passage Pommeraye de Nantes, ao porto de Cherburgo. E que triste fiquei quando, na marginal de Nantes, naquele prédio de gaveto onde as raparigas cantavam, de maillot rendado e para os marinheiros de uma noite, não havia cabaré nenhum, tinha sido só um letreiro que o seu genial cenógrafo, Bernard Evein, lá colocou. E era pois, era Eldorado o nome do cabaré que nunca existiu. O lugar inventado ali mesmo na rua, mas na outra banda da vida? Era de lá que saiam, pelas primeiras luzes da manhã cinzenta e branca (Raoul Coutard, o director de fotografia), com uma gabardina por cima do maillot, as raparigas que entretinham os homens e tinham um filho para criar umas ruas adiante, quarto alugado."
Michel Legrand, que escreveu a banda-sonora e nos deixou no início deste ano, escreveu sobre o processo de composição do filme para o Télérama, contando que «o Jacques tinha escrito "L'Infidélité ou Les Parapluies de Cherbourg". “Não achas que podíamos fazer um musical com canções?” Eu começo a trabalhar. Dez dias depois, vê-se se a coisa funciona. E bom, o que não funcionava, era a passagem do cantado ao falado. Eu proponho que se desista. “Não", diz o Jacques. "E se o fizéssemos todo cantado?” Vou para um lugar retirado e escrevo: “Jacques, vem ouvir isto depressa!” Era uma música séria, “operática” e complicada. “Não é isso, diz Jacques. É preciso que seja muito simples para que o público possa decifrar a partitura à primeira audição.”
«Pusemo-nos ao trabalho: criar o sublime com três notas, dar ao público a ilusão de que sabe de cor o que está a ouvir pela primeira vez... O Jacques trazia-me uma cena. Líamos. Eu tentava.
«O Jacques era paciente: foi preciso muito tempo até sair uma nota aceitável. Ele aconselhava-me: “Mais alto, mais rápido – Tu não te chateias quando ando à procura durante duas horas? – Oh não!” Jacques adorava a música. Eu inventava outras notas. Ele escrevia outras palavras. Eu dizia-lhe: “Preciso de mais duas sílabas”, ou então “menos duas sílabas”. O Jacques cinzelava as palavras todas sobre a melodia.»
No suplemento final do Dictionnaire du Cinéma, Jacques Lourcelles escreve que "a vida separa Geneviève e Guy, chamado a cumprir o serviço militar na Argélia. Geneviève está grávida de Guy. Casar-se-ão cada um para seu lado e Geneviève vai criar a filha de Guy com o marido dela. A arte convalescente de Jacques Demy, com este filme, encontrou o caminho para o grande público. Encontro altamente paradoxal, já que tem lugar num filme musical e sabe-se do ódio – a palavra não é forte demais – do público francês pelos filmes em que as personagens cantam. Todos os cinéfilos têm nos ouvidos as zombarias, as piadas, etc, que saudavam inevitavelmente o começo das canções nas grandes comédias musicais americanas, na altura do seu lançamento. Como explicar, então, este pequeno milagre? Os méritos do filme – modestos, de resto – não chegam para o fazer. Foi sem dúvida por Demy ter ido até ao fim do seu empreendimento, superando um obstáculo aparentemente intransponível e que se calhar nem receou. Quis filmar uma espécie de ópera em que as personagens cantavam sem insterrupções, evitando assim as passagens do falado ao cantado que tanto eriçavam os espectadores. Quanto ao resto, trata-se de um melodrama muito bem colorido."
Até Quinta-Feira!
Até Quinta-Feira!
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