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segunda-feira, 30 de outubro de 2023

Choses secrètes (2002) de Jean-Claude Brisseau



por João Palhares

Há seis anos, uma secretária de Estado francesa disse na rádio, à France Culture, “agradeço à Cinemateca que tenha adiado a retrospectiva Jean-Claude Brisseau”. Com estas palavras todas, sem tirar nem pôr, agradeceu a uma instituição cultural histórica, numa estação de rádio histórica, que não tivesse feito o seu trabalho, que é exibir filmes. A retrospectiva não aconteceu nos meses seguintes e o realizador em questão morreu menos de dois anos depois, a 11 de Maio de 2019. Em Fevereiro de 2020, os Césares não o incluíram no segmento in memoriam, o que não pode ter sido um lapso inocente. Tanto não foi, que não passou despercebido a Maria-Luisa Garcia Martínez, companheira e colaboradora de sempre do cineasta francês, que escreveu entre muitas coisas certeiras, numa carta aberta aos responsáveis pelos Césares, “os grandes profissionais do cinema”, que “fico siderada com a demonstração da vossa idiotice. Tenho de reconhecer que é uma idiotice notável, realmente, uma idiotice cuja profundidade abissal alcança níveis raramente igualados.” 
 
De Brisseau já se disse e escreveu muita coisa, desde que se aproximou de Éric Rohmer nos anos setenta e pareceu seguir os seus passos no controlo dos meios de produção de um filme com a redução da equipa técnica e artística ao essencial. Era admirador incurável de Alfred Hitchcock, de quem conhecia o Psycho de trás para a frente, e sobre quem e sobre o qual podia dissertar durante horas a fio. Deu o nome de um filme fabuloso de um fabuloso desconhecido, Edward Ludwig, à sua pequena companhia de produção, La Sorcière Rouge, título francês de A Lenda do Bruxa Vermelha, um dos filmes preferidos de John Wayne entre os quase duzentos que interpretou. Falou do que sabia e do que viveu como professor em escolas nos arredores de Paris, trabalho a que se teve de dedicar por uns tempos por não conseguir pagar os estudos no IDHEC (Institut des hautes études cinématographiques, escola fundada por Marcel L'Herbier em 1943 e onde estudaram por exemplo Paulo Rocha ou Alain Resnais). Fez três filmes com Bruno Cremer, actor que tinha trabalhado com Pierre Schoendoerffer, Luchino Visconti, William Friedkin ou Claude Sautet, e alcançou um sucesso comercial inesperado e considerável com Noce blanche
 
*

“Depois de todos os vossos recentes discursos muito, muito deontológicos,” desabafa Luisa Garcia na mesma carta, “vocês, totalmente sozinhos, como adultos, mostraram ao mundo inteiro, em directo para a televisão, que os vossos actos, as vossas decisões, a vossa política em suma, não é nem a democracia, nem o reconhecimento do talento artístico. 
 
“Mas não, nem pensar. É como na fábula de La Fontaine: "dependendo de serem poderosos ou miseráveis, os julgamentos do tribunal farão de vocês brancos ou negros."
 
“E sim, dois pesos e duas medidas. As homenagens todas de um lado, e do outro vilipendiam, até mais, limpam a existência. Entendam bem que falo apenas de vocês e das vossas acções, vocês, decisores dos Césares. 
 
“E impeçamos imediatamente os maliciosos, os fabuladores e outros Tartufos. Jean-Claude Brisseau entregou-se à justiça, não houve violação nenhuma, toque nenhum. O julgamento estabeleceu isso. 
 
“Foi o facto de pedir a actrizes perfeitamente avisadas e consentidoras, de fazer ensaios para as cenas eróticas incluídas em Coisas Secretas, que constituiu o assédio sexual pelo qual foi condenado, e pelo qual pagou há quinze anos. 
 
“Eu sei, eu sei, alguns até dizem que torturou meninas, tornou-se quase uma lenda urbana. 
 
“Até há bem pouco tempo, nas altas esferas, o que as pessoas faziam do rabo delas ou do rabo das outras, sinceramente, deixava-vos indiferentes. Simplesmente não se falava disso. 
 
“Mas não, o que vocês fizeram não tem nada que ver com o caso de assédio sexual. E aí, voltamos ao fundamental: houve sempre uma questão de relação de classes entre uma parte da profissão e Jean-Claude Brisseau, sim, de nível mesmo básico. 
 
“Jean-Claude era da classe operária, filho de empregada doméstica; detonado ainda por cima com a sua "pequena Lili "(essa sou eu) proletária imigrada filha de empregada doméstica, e sim, eu também fui empregada doméstica. Uau, o desprezo que recebemos. Fazia-nos rir quase sempre, estávamos tão contentes por fazer cinema.” 
 
*

“Eu sou a morte de tudo e sou o nascimento de tudo,” diz o Bhagavad Chita, texto religioso hindu citado em Coisas Secretas e que lhe dá também o nome, “a palavra e a memória, a constância e a misericórdia. E o silêncio das coisas secretas.” Brisseau não devia ter aberto o portal das coisas secretas, só nos fez perceber uma vez mais que quem trabalha nas margens do que é estipulado socialmente, na vida como no trabalho, sempre sorrateiramente para não se suspeitar que “há algo de podre no reino da Dinamarca”, ou é absorvido pela cultura ou é castigado pelo poder. Percebe-se também que o cinema profissional sempre quis a morte do cinema amador, foi ele que gastou a palavra e a tornou pejorativa. “São amadores”, dizem. E a “tradição de qualidade” do cinema francês, atacada por François Truffaut nos anos cinquenta, continua assim mais viva do que nunca. Não se pode falar de sexo. Não se pode falar da morte. Não se pode questionar o dinheiro nem o poder. Não se pode “ousar”. Brisseau quebrou estas regras todas. E, como o que nos move por estes meses é o futuro, ficamos à espera de um dia em que uma ministra ou um ministro diga à France Culture, se ainda existir, que “agradeço à Cinemateca que tenha realizado a retrospectiva Jean-Claude Brisseau.” E que os Césares se mostrem magnânimos e reconheçam os seus erros. Não se sabe, afinal, se não haverá bárbaros à espreita, prontos a irromper por uma orgia de poderosos ao som de Zadok the Priest de George Handel, hino da Liga dos Campeões desde o início dos anos noventa, e dispostos a decepar cabeças e a usurpar o trono.



quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

Yadon ilaheyya (2002) de Elia Suleiman



por Alexandra Barros

Nalguns países, Intervenção Divina tem associado o subtítulo Uma Crónica de Amor e Dor. É entre estes dois pólos que E.S., a personagem principal, vive o seu dia-a-dia. E.S., interpretado pelo próprio realizador do filme, Elia Suleiman, é (como este) um árabe que habita nos territórios de Jerusalém sob ocupação israelita. O pai vive em Nazaré[1] e é hospitalizado após sofrer um ataque cardíaco causado pela depressão económica e psicológica decorrente da ocupação. Do outro lado da fronteira, em Ramallah[2], vive a namorada de E.S.. Impossibilitada de atravessar a fronteira, que está aberta só para quem vive no “lado certo”, é E.S. quem a atravessa. Estaciona junto ao checkpoint e é aí que os dois se juntam. Entre as visitas ao pai hospitalizado e os encontros com a namorada, percorremos uma teia de histórias de palestinianos cujo quotidiano é marcado pelas consequências da invasão política e militar. 

Intervenção Divina tem poucos diálogos, mas Suleiman deixa os temas musicais falar (I put a spell on you, de Screamin’ Jay Hawkins, numa versão de Natacha Atlas, é particularmente eloquente). O tom geral é de humor negro e essencialmente visual. Frequentemente comparado a Jacques Tati ou Buster Keaton, Suleiman mantém-se (quase) impassível em (quase) todas as circunstâncias. De olhar melancólico e intenso, não diz uma única palavra durante todo o filme. 

Os movimentos coreografados sempre deliciaram Suleiman, de acordo com uma entrevista que deu ao The New York Times, e algumas cenas do filme são pura coreografia. Os encontros entre E.S. e a namorada, por exemplo, com os seus pas de deux executados literalmente a duas mãos, são das mais belas cenas de expressão muda de desejo amoroso do [3] cinema. Nessa entrevista Suleiman disse também desejar comunicar através do humor porque “dessa forma, sentimo-nos menos sós.” “Não faço filmes por razões politicamente correctas, mas para encontrar mais espaço para o amor.” 

Há mais umas quantas cenas memoráveis em Intervenção Divina: um Pai Natal aterrorizado por um bando de rapazes que o persegue por uma encosta de Nazaré acima; um balão subversivo, com a cara sorridente de Yasser Arafat estampada, a atravessar pelo ar fronteiras fechadas em terra; um confronto surreal, com balas paradas à la Matrix, entre uma ninja palestiniana e um grupo armado israelita; um semáforo que desencadeia uma tensa medição de forças. 

A violência latente e o absurdo percorrem esta(s) história(s) de um povo sob ocupação. Há quem espere todos os dias por um autocarro que nunca vem; há insultos murmurados por baixo de acenos sorridentes e aparentemente amistosos; há caroços de fruta que rebentam tanques militares como granadas; há lixo lançado para o quintal do vizinho e re-lançado de volta para o primeiro... 
- Vizinho, porque é que atira o lixo para o meu quintal? Não tem vergonha? 
- O lixo que atiro para o seu quintal é o mesmo que atirou para o meu jardim. 
- Não deixa de ser uma vergonha. Os vizinhos deviam respeitar-se. Deveria falar comigo sobre isso. 
Com estas três linhas, Suleiman traça um esboço do eterno conflito israelo-palestiniano: um sem-fim de apenas perdas. 

O filme foi muito bem recebido em todo o mundo e tentou candidatar-se aos Óscares. No entanto, a Academia rejeitou a candidatura com um argumento que parece escrito para o próprio filme: os filmes têm que ser nomeados pelo país de origem e a Palestina não é oficialmente um país. 

Desta loucura trágica e infindável só parece ser possível sair de uma forma: intervenção divina.

[1] Cidade israelita, com um grande número de habitantes árabes.
[2] Cidade palestiniana.
[3] meu

terça-feira, 20 de julho de 2021

O Princípio da Incerteza (2002) de Manoel de Oliveira



por André Miranda

Perto já do final de O Princípio da Incerteza, quando já tudo se precipita com a calma inexorável das águas do rio observadas a partir da janela do comboio, a criada dos irmãos Roper diz a Camila: “Eu também gosto muito de ouvir a senhora. Mas nem tudo o que a senhora diz eu compreendo bem.” Ao que Camila responde: “Não é preciso compreender, basta ouvir.” Mas recuemos ao início, às palavras que trocam os irmãos Roper, Daniel e Torcato, enquanto observam o rio Douro e o barco de turismo que, sob a chuva, vai vazio; Torcato aproveita para, por entre comentários sobre o tempo, elaborar uma frase de uma eloquência cuidada: “Esses mísseis e essas explosões que estão agora em moda alteraram as condições meteorológicas.” O mesmo Torcato será o autor da seguinte afirmação: “As mulheres são como as alcachofras, cujo coração sabe bem e é comestível.” 
 
Joana d’Arc, como todos sabem é uma santa e mártir francesa; impelida por visões divinas, de arcanjos e santos que com ela comunicavam (ou assim ela dizia) pegou em armas e liderou o exército francês sobre os ingleses; mais tarde é capturada por estes e levada a julgamento: confirmada a sua heresia, com apenas 19 anos é condenada à morte na fogueira, tal como manda a fé no que a heréticos diz respeito. A Nossa Senhora, por outro lado, é conhecida por ser mãe de Jesus. Não se lhe conhecem aventuras com qualquer tipo de objeto cortante. É também conhecida por Virgem Maria, pois, ao que parece, Jesus resulta de conceção imaculada; no entanto, tendo em conta o sucedido a Joana d’Arc, não poria as minhas mãos no fogo por tal facto. Mas a que propósito vem tanta palavra gasta com religião? Camila, figura central de toda a trama, é comparada a ambas. À Virgem Maria por Celsa, que vê nela inocência, pureza e santidade. A Joana d’Arc pelo Daniel Roper: “Camila faz-me lembrar Joana d’Arc, guerreira e mártir”. Camila é alvo de adoração, obsessão, amor, repúdio, é tema de conversa geral; todos a tentam decifrar. No entanto, ela é a que melhor diz sobre ela mesmo: “Nem uma coisa, nem outra” 

É, pois, sob Camila que tudo gira. Quando Celsa lhe adivinha a divindade decide casar Camila com António Clara, também conhecido como Cravo Roxo, jovem dono de rica quinta, e a quem Celsa adora como se um filho fosse. Urde então com os irmãos Roper um malévolo plano para que esse casamento se concretize. Depois de um jantar sumptuoso em que a questão é aflorada de forma pouco subtil, como é apanágio dos irmãos, estes dirigem-se à degradada casa de Camila, onde vive com os pais, outrora família rica, mas cuja fortuna foi-se esvaindo nas mesas de jogo do Casino da Póvoa pela figura paternal, interpretada por João Bénard da Costa. O pai e os Roper chegam a um entendimento e o casamento acontecerá. Camila sente-se feliz; pela possibilidade de reerguer-se da pobreza, tanto ela como os seus. Também, quem sabe, não seja a última chance de parar a decadência de toda uma classe social que aos poucos vê a sua influência e poder esboroar-se como pedra que pelo rio e o tempo se faz areia. 

Mas é um casamento que nunca se faz feliz, pois em cena já existe Vanessa. Esta surge na vida de Cravo Roxo pela mão de Luciano, filho de Celsa e conhecido como Touro Azul, Vanessa e Touro Azul partilham negócios: são sócios em várias casas de alterne de reputado furor. Depressa Vanessa se imiscui na vida de Cravo Roxo: numa viagem a Itália, este não só leva consigo a amante como também a esposa, conjugação deveras peculiar. E a partir daí a sua presença é constante, apesar de não omnipresente, afinal ainda existem coisas que só a Deus pertencem. A última chance depressa desmorona e o que fora nunca mais voltará a ser. 

“Olhe, Celsa, nem semente de sésamo, nem semente de tabaco, só a semente do homem.”

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

António Pinho Vargas, notas de um compositor (2002)



por Manuel Mozos

O ponto de partida, ou de como os filmes se vão transformando 

Também não sei até que ponto é que realizadores ou filmes que pelo menos a partir de certa altura começaram a ser considerados obras de arte foram pensados para ser isso mesmo. Talvez fossem somente uma vontade de contar uma história através do cinema sem qualquer outra pretensão para além dessa. Há muitas coisas que podem não partir do realizador, e acabarem por se tornar grandes obras, e falo de encomendas, ou filmes feitos dentro de contratos com produtoras. De repente no meio disso pode aparecer um filme genial porque o realizador trabalhou como trabalharia nos outros filmes, acabando por catapultar o trabalho para a zona, digamos, da obra de arte, deixando o lado de entretenimento. Um filme como o Zidane, por exemplo, para mim é uma coisa que realmente só tem a ver com televisão. Mas acaba por ser um produto muito fora do vulgar. Aquilo é feito um pouco como se fosse um jogo de futebol só que em vez de estar a acompanhar a bola, se está sempre em cima de um determinado jogador, e com isso apercebemo-nos de que grande parte de um jogo é passado a olhar, à espera (mesmo eu, que gosto de futebol, e jogo ainda às vezes, não me tinha apercebido disto). Trata-se de um processo televisivo, embora consiga identificar raízes cinematográficas, como os filmes da Leni Riefensthalt, com a utilização de uma panóplia de câmaras para filmar um determinado objecto. 

E isto traz um outro problema que é o da classificação. Realmente, qual é o espaço daquele filme? Para mim é até muito curioso, porque trabalhando no ANIM, para catalogar o material, tenho que tomar decisões. Onde é que se põem certos objectos que são, como este, mais fora do comum? Julgo que mesmo na área do documentário há uma série de coisas muito diferentes. E por uma facilidade de linguagem há tendência para catalogar as coisas: é o western, um filme de aventuras, um melodrama, um thriller; um certo documentário é cinéma-vérité... mas para mim, o que eu acho mais interessante é ver o contrário dessa classificação, ou seja, conseguir ver que todos os filmes têm um carácter documental. 

Entre a ficção e o documentário: o filme e a sua época 

Por um lado não acredito no cinema como uma coisa da verdade. É sempre uma coisa da encenação. Ao colocar a câmara num certo sítio já estou a delimitar. Não acredito no “cinema-verdade”, não acredito que as coisas acontecem e nós estamos a captar o real. Acho que nunca é bem o real. Mesmo que atirasse uma câmara ao ar, e donde ela caísse filmava, mesmo isso implica uma acção, quer dizer, não é a vida em si. Por outro lado mesmo os filmes que estão no tal campo do entretenimento, para mim documentam a sua época. Mesmo aquilo que está ultra-encenado acaba por transmitir qualquer coisa de uma época e eu acabo por encontrar a arquitectura de uma cidade, ou por ver a maneira como as pessoas se vestem, os costumes, certas tradições, o que é que comem, e portanto, mesmo que aquilo seja tudo encenado, também há um lado que não está a fugir completamente ao real. Mesmo as coisas mais mirabolantes do cinema fantástico estão contaminadas pelo real. Tal como o oposto, ou seja, no documentário, para mim a colocação da câmara num sítio já está a deturpar esse real. E a própria película está a passar por um lado químico, no mínimo, que já vai refractar a realidade (mesmo nós, a nossa visão, ou os sentidos em si não nos possibilitam captar tudo). 

Por enquanto as ficções que fiz são muito centradas em Lisboa, para deixar alguma coisa do tempo em que estou a filmar a própria cidade. E isso é deliberado. Mas nem sequer obedeço à geografia da cidade. Na última ficção que fiz havia um personagem que saia de Alfama, e já estava no Lumiar a apanhar o Metro para ir para Caselas onde não há Metro. Tento transformar a cidade num cenário. E não me interessa obedecer ao seu lado realista nesse aspecto, interessa-me sim que esse pedaço de Alfama, do Lumiar ou de Caselas, um dia seja reconhecido por alguém que possa assim ver como eram as casas desses bairros. Ou seja, em vez de estar sempre a filmar o mesmo bairro, prefiro mostrar coisas diferentes. Do mesmo modo, nos documentários eu assumo que tudo está a ser um bocado encenado, não quero dizer que aquilo é a verdade de qualquer coisa. 

Em termos de documentário, fiz sobretudo biografias, ou coisas em que usei materiais de arquivo. Portanto, não tenho o tipo de relação com as coisas que tem a maioria dos documentaristas portugueses. Coisas como a análise do bairro não sei quê, ou a comunidade tal que vive não sei onde... acho óptimo que se façam esses filmes, mas como eu acho que já há pessoas a trabalhar sobre isso, e que é o que lhes interessa, eu tento explorar outras coisas que a mim me interessam, mesmo que não sejam coisas tão obedientes aos cânones do documentário, mas que fiquem eventualmente como retrato de uma época. 

Nas biografias do José Cardoso Pires ou do Pinho Vargas tratei uma época da vida deles, e não fugi a isso, mas nos outros servi-me muito de material de arquivo, e neste que estou a fazer agora, e que é talvez o mais “livre”, a minha ideia é contaminá-lo com uma série de coisas que lhe trazem um lado mais artificial. Ou seja, vou tentar jogar com efeitos de encadeados e sobreposição de imagens, pôr imagens fotográficas e fílmicas de arquivo e sons, fugindo a esse lado, digamos, mais verdadeiro do documentário que realmente não é a coisa que eu acho mais interessante. 

excerto de «Um Cinema de Verdade», texto inserido no catálogo do Panorama – Mostra do Documentário Português de 2008.