terça-feira, 20 de julho de 2021

O Princípio da Incerteza (2002) de Manoel de Oliveira



por André Miranda

Perto já do final de O Princípio da Incerteza, quando já tudo se precipita com a calma inexorável das águas do rio observadas a partir da janela do comboio, a criada dos irmãos Roper diz a Camila: “Eu também gosto muito de ouvir a senhora. Mas nem tudo o que a senhora diz eu compreendo bem.” Ao que Camila responde: “Não é preciso compreender, basta ouvir.” Mas recuemos ao início, às palavras que trocam os irmãos Roper, Daniel e Torcato, enquanto observam o rio Douro e o barco de turismo que, sob a chuva, vai vazio; Torcato aproveita para, por entre comentários sobre o tempo, elaborar uma frase de uma eloquência cuidada: “Esses mísseis e essas explosões que estão agora em moda alteraram as condições meteorológicas.” O mesmo Torcato será o autor da seguinte afirmação: “As mulheres são como as alcachofras, cujo coração sabe bem e é comestível.” 
 
Joana d’Arc, como todos sabem é uma santa e mártir francesa; impelida por visões divinas, de arcanjos e santos que com ela comunicavam (ou assim ela dizia) pegou em armas e liderou o exército francês sobre os ingleses; mais tarde é capturada por estes e levada a julgamento: confirmada a sua heresia, com apenas 19 anos é condenada à morte na fogueira, tal como manda a fé no que a heréticos diz respeito. A Nossa Senhora, por outro lado, é conhecida por ser mãe de Jesus. Não se lhe conhecem aventuras com qualquer tipo de objeto cortante. É também conhecida por Virgem Maria, pois, ao que parece, Jesus resulta de conceção imaculada; no entanto, tendo em conta o sucedido a Joana d’Arc, não poria as minhas mãos no fogo por tal facto. Mas a que propósito vem tanta palavra gasta com religião? Camila, figura central de toda a trama, é comparada a ambas. À Virgem Maria por Celsa, que vê nela inocência, pureza e santidade. A Joana d’Arc pelo Daniel Roper: “Camila faz-me lembrar Joana d’Arc, guerreira e mártir”. Camila é alvo de adoração, obsessão, amor, repúdio, é tema de conversa geral; todos a tentam decifrar. No entanto, ela é a que melhor diz sobre ela mesmo: “Nem uma coisa, nem outra” 

É, pois, sob Camila que tudo gira. Quando Celsa lhe adivinha a divindade decide casar Camila com António Clara, também conhecido como Cravo Roxo, jovem dono de rica quinta, e a quem Celsa adora como se um filho fosse. Urde então com os irmãos Roper um malévolo plano para que esse casamento se concretize. Depois de um jantar sumptuoso em que a questão é aflorada de forma pouco subtil, como é apanágio dos irmãos, estes dirigem-se à degradada casa de Camila, onde vive com os pais, outrora família rica, mas cuja fortuna foi-se esvaindo nas mesas de jogo do Casino da Póvoa pela figura paternal, interpretada por João Bénard da Costa. O pai e os Roper chegam a um entendimento e o casamento acontecerá. Camila sente-se feliz; pela possibilidade de reerguer-se da pobreza, tanto ela como os seus. Também, quem sabe, não seja a última chance de parar a decadência de toda uma classe social que aos poucos vê a sua influência e poder esboroar-se como pedra que pelo rio e o tempo se faz areia. 

Mas é um casamento que nunca se faz feliz, pois em cena já existe Vanessa. Esta surge na vida de Cravo Roxo pela mão de Luciano, filho de Celsa e conhecido como Touro Azul, Vanessa e Touro Azul partilham negócios: são sócios em várias casas de alterne de reputado furor. Depressa Vanessa se imiscui na vida de Cravo Roxo: numa viagem a Itália, este não só leva consigo a amante como também a esposa, conjugação deveras peculiar. E a partir daí a sua presença é constante, apesar de não omnipresente, afinal ainda existem coisas que só a Deus pertencem. A última chance depressa desmorona e o que fora nunca mais voltará a ser. 

“Olhe, Celsa, nem semente de sésamo, nem semente de tabaco, só a semente do homem.”

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