domingo, 4 de julho de 2021

197ª sessão: dia 6 de Julho (Terça-Feira), às 19h00


A magia encantatória e mitológica do nosso Rio Douro talvez só tenha sido verdadeiramente apreendida no cinema pelos portuenses Paulo Rocha e Manoel de Oliveira, através de obras como O Rio do Ouro (1998), Douro - Faina Fluvial (1931) e Vale Abraão (1993), filme maravilhoso e imprescindível que será a nossa próxima sessão no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva.

Explicando a diferença entre durações das duas versões do filme, em depoimento escrito em 1998 aquando da edição em DVD, Oliveira disse que "A versão integral deste filme foi posteriormente encurtada por circunstâncias exteriores à sua construção original. Para que pudesse ser apresentado a concurso no Festival de Cannes, foi imposto ao produtor que o filme não podia ultrapassar, em tempo, um máximo de 2h50. Tentando satisfazer a vontade do produtor, para reduzir o tempo do filme, vi que podia suprimir quatro cenas sem perturbar a compreensão geral da história, pensando que assim ficaria dentro das 2h50 exigidas. Mas não. Depois da redução ficou ainda com 3h10, o que impediu de figurar na competição oficial. Já não era possível maior redução sem grave prejuízo da sua estrutura e não havia tempo para retornar à sua primeira forma. Sob tais manobras, a versão encurtada foi parar à Quinzena dos Realizadores, o que aliás, de certo modo me agradava, por saber que era onde acorriam os cinéfilos mais amantes dum cinema diferente. Entretanto, retomei as partes retiradas por entender que eram de facto necessárias para uma compreensão, não da história propriamente dita, mas para uma melhor definição das personagens, em especial do Carlos, para o conhecimento da sua primeira mulher, que se não vê na versão encurtada, e para um melhor entendimento do ambiente social que envolve os personagens e onde se desenrola o drama."

Na sua folha da Cinemateca sobre o filme, João Bénard da Costa escreveu que "no princípio de Fanny Owen (o romance que esteve na base do filme Francisca) Agustina Bessa-Luís escreveu: “O rio Douro não teve cantores. Teve-os o Mondego e o Tejo também. [...] O rio Douro ficou banido da lírica portuguesa com a sua catadura feroz pouco própria para animar os gorgeios dos bernardins, que são sempre lamurientos e que à beira de água lavam os pés e os pecados”. 

"No entanto, esse “rio majestoso como não há outro”, esse rio que “entra em Portugal à má cara” (continuo a recitar Agustina), encharcou as melhores páginas da literatura portuguesa. Camilo, Pascoaes, Agustina. À excepção de alguns “romances históricos” (Sebastião José, Florbela, A Quinta Essência, etc.), todo o mundo dela é fechado pelo Douro e os homens e mulheres de Agustina nunca tiveram outra categoria como origem, referência ou destino. O Douro é, também, o rio do nosso cinema: Douro - Faina Fluvial (1931), Aniki-Bóbó (1942), Francisca (1981), Vale Abraão, ou o filme de Paulo Rocha precisamente chamado O Rio do Ouro (1998). E estes cinco filmes são tão fechados por ele como os romances de Agustina."

Em Algumas notas sobre a recepção em França da obra de Manoel de Oliveira (in «Revista Camões» nº12/13), e discorrendo sobre números de espectadores e recepção crítica à obra do cineasta, Jacques Lemière escreve que "Vale Abraão, alargou ainda mais o círculo. Como dissemos anteriormente, este filme teve mais de 55 000 bilhetes vendidos, e bateu o recorde de menções na imprensa francesa, de todos os filmes de Manoel de Oliveira (é possível recensear o dobro das menções de Amor de Perdição). Vemos que o fenómeno da adesão dos jovens, já presente em Non, se vai amplificando: jovens espectadores e jovens críticos também, ignorando, ainda, o papel pioneiro da obra e da tetralogia denominada «dos amores frustrados» (O Passado e o Presente, Benilde, Amor de Perdição, Francisca). Sem dúvida o tema de Madame Bovary, que inspirou o romance de Agustina Bessa-Luís e o guião escrito por Oliveira, tiveram um papel importante no processo de aceitação do filme, servido cinematograficamente pela dupla deslocalização no espaço (a região do Douro) e no tempo (algures durante o século XX).

"Mas este facto pode explicar-se, também, pela grande abertura dos dispositivos estéticos de Vale Abraão, sob a forma de «pontos de figuração», introduzidos num conjunto que permanece não-figurativo, como sublinhou justamente Denis Levy*, numa conferência em Rouen, feita no quadro das Jornadas de Cinema Português do Cineluso, a 2 de Fevereiro de 1994: ao contrário de alguns filmes do cinema moderno, cujo carácter abrupto amplificava a deriva do olhar do espectador, dificultando o seu acesso ao filme, Vale Abraão inovou, ao «propor uma visão não romântica do romantismo» e «ao dispor de maneira diferente, logo a abrir, as características da modernidade, embora apoiadas a uma certa herança clássica», numa deriva menos angustiante para o espectador. A informação, dada por Paulo Branco, de que, de toda a obra de Oliveira, Vale Abraão e A Carta, são os dois filmes com maior distribuição mundial, poderá ser reinterpretada à luz dos critérios da presente análise, que fez de Vale Abraão «a obra inaugural de uma nova forma de modernidade»."

* Denis Levy, Vale Abraão: modernidade e pós-romantismo, introdução de Jacques Lemière, Cineluso, Rouen, Janeiro de 1995.

Até Terça-Feira!

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