sábado, 10 de julho de 2021

198ª sessão: dia 13 de Julho (Terça-Feira), às 19h00


Filme em três episódios, baseado na peça de teatro Os Imortais de Prista Monteiro e nos contos Suzy de António Patrício e A Mãe de um Rio da nossa Agustina Bessa-Luís, Inquietude é a nossa próxima sessão no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva.

Em 2006, o Instituto Italiano de Cultura em Portugal recolheu um testemunho de Agustina sobre Manoel de Oliveira, em que a romancista diz que "não se apresenta ninguém que não se possa representar. Eu estou nesta infeliz situação que é falar de quem muito se fala. Uns dirão das minhas pretensões, outros acrescentam decerto que sou de razões destemidas. A inveja, que a tudo se mistura, até ao mais sincero amor, dirá que, se tenho bri­lho, não tenho direitos que o fazer valer neste assunto do cinema e do mestre em realizá­-lo, e encontrar­-lhes os efei­tos e a função própria. A função própria do cinema é apai­xonar. Outras artes são mais medidas pela meditação. Mas tudo que é visual encontra logo o coração das pessoas e as faz comover e sonhar. 

"Manoel de oliveira é um visionário. o seu lado obscuro desconcerta; o seu lado grave converte­-se em humor para não ser apercebido. Eu aparento Manoel de Oliveira àqueles poetas saudosos que tivemos; Bernardim foi um deles, outro o cavaleiro Francisco Manoel de Melo. Vou dizer porquê. Porque em todos há mais uma determinação de fazer obra sua, do que voz do mundo. E fazer das histórias fatais, pere­grinas fantasias. A morte de Fanny Owen, por exemplo, tem o mesmo carácter de solidão que se encontra na morte de Ana Arfet nos lugares ainda desconhecidos da ilha da Ma­deira. O desgraçado amante que ali a levou por desgraçada aventura, abraça-­se aos pés dela que já a morte arrefece. E também Francisca deixa descobrir no pé descalço e que o lençol mortuário põe a nu, deixa descobrir o último limite da desilusão. E a saudade instala­-se onde a vida acaba."

Luiz Carlos Oliveira, Jr. escreveu sobre o filme para a revista brasileira Contracampo em 2004, defendendo que "no cinema, já disse Jean Louis Schefer, o mais decisivo não é o movimento, a mobilidade geral do mundo, "mas a inquietude acrescida a esse movimento" (cf. L’Homme ordinaire du cinéma, livro publicado na França em 1980). Mais do que espectadores dos objetos que se movem, somos conhecedores de sua morte premeditada pela imagem. É um pouco como a chama de uma vela, que desfruta tal brilho e tal intensidade, mas que em algum momento, consumido seu suporte, se apaga. Essa chama pode muito bem ser aquela com que brinca Fisalina (Leonor Baldaque, doce e bela como sempre), protagonista da terceira e última parte de Inquietude: ela passa seus "dedos de ouro" sobre a chama da vela, tomando intimidade com a natureza - através de um dos "quatro elementos fundamentais" - e prenunciando seu próprio destino, que é a desaparição. O que fica claro no filme de Manoel de Oliveira, contudo, é que a desaparição implica necessariamente uma contrapartida, ou seja, a aparição de alguma outra coisa no lugar daquilo que se foi. Sai tristeza, entra felicidade - e a recíproca é verdadeira. O que sumiu, por sua vez, também não se resume ao vazio: quem desaparece de um pólo, emerge no outro. Fisalina desaparece para uma parte do mundo (a saber, a aldeia a que pertencia), mas surge inteira para seu novo habitat, junto à relva, junto aos rios (que são a melhor expressão do fluxo, da vida que se refaz constantemente ao invés de se imobilizar). Da mesma forma, o pai insiste com o filho para que este se suicide, já nos primeiros minutos de filme, pois essa é a única forma de se imortalizar (sair da vida e entrar na História). Na ótica do pai, cientista ultrapassado pela própria ciência, somente saindo da vida no auge da notoriedade, e antes do esquecimento, seu filho poderá eternizar-se. A ciência vive do amanhã, mas os cientistas morrem um dia, ou enfrentam suas limitações - e as de suas teorias - mesmo em vida. 

"Apesar de começar sob o peso amargo (e visto de forma tragicômica) do esquecimento, Inquietude aos poucos se revela um fascinado cultivo da memória. Ou, valorizando seu potencial filosófico, o filme constitui um excelente ensaio sobre a duração (dos corpos, dos sentimentos, do cinema, da vida). São três histórias com perfeita ductilidade entre si, uma puxando a outra e confrontando diversas camadas (não apenas narrativas, mas também fotográficas e cenográficas). Ao início e ao fim encontram-se os lamentos dos esquecidos (o velho cientista, a antiga mãe do rio), mas no meio existe a revelação - na esteira da tentativa sempre frustrada de engessar o amor, de reter sua virtual transformação - de que é preciso preencher o tempo com ações, de modo a fazer do próprio presente a eternidade (inalcançável enquanto meta idealizada). Ritualizados ou não, os gestos - que, em última análise, criam o tempo (porquanto dão sua impressão) - devem mover a vida para frente, apreender a passagem do tempo como um acúmulo de tesouros pessoais, a memória sendo uma espécie de caixa de ferramentas do presente. É talvez por isso que, jovial e elegante, o nonagenário Manoel de Oliveira aparece esbanjando vivacidade ao protagonizar uma dança (acompanhado, naturalmente), ratificando a idéia de que somos tão mais vivos quanto mais soubermos aproveitar o tempo."

Já João Bénard da Costa, em Pedra de Toque - O Dito Eterno Feminino na obra de Manoel de Oliveira, publicado originalmente no catálogo dedicado ao cineasta pelo Festival de Cinema de Turim, escreve a páginas tantas do seu estudo que "com Inquietude, filme seguinte (1998), Oliveira regressou a uma origem narrativamente «estilhaçada», como a que seguira em Mon Cas ou em A Divina Comédia. Mas se, nesses filmes, as diversas fontes eram subsumidas numa narração una, como já sublinhei, em Inquietude são adaptadas três histórias quase como três episódios: a peça de teatro Os Imortais de Prista Monteiro (1922-1994)*, o conto Suzy do escritor simbolista António Patrício (1878-1930) e o conto A Mãe de um Rio de Agustina.

*Prista Monteiro foi também o autor da peça A Caixa, que Oliveira levou ao cinema em 1994.

"Só que essas três histórias são convertidas a um ponto de vista único, por uma hábil fusão, a meio do filme. Este começa com a primeira «história» (a de Prista Monteiro) sem que nada denuncie a sua origem teatral. De certo modo, e sob a figura da irrisão, essa história parece prolongar a meditação sobre a velhice iniciada (ou pelo menos aprofundada) a partir da Viagem ao Princípio do Mundo. Mas, no termo dela, o espectador descobre que o que viu e ouviu era uma peça de teatro, representada numa «cena à italiana» (cai a cortina, ouvem-se os aplausos) para uma assistência de que emergem os dois protagonistas masculinos da segunda história, a de António Patrício. Não é só uma brilhante passagem da primeira à segunda história. Não é - ainda menos - o surpreendente anacronismo de mostrar gente dos anos 20 - tempo do conto de Patrício - a assistir a uma peça teatral escrita nos anos 70. Ora, indubitavelmente, como a segunda e a terceira história esclarecerão, o ponto de vista é o de Suzy (mais uma vez Leonor Silveira) fulcro do filme e não só do episódio de que é protagonista. O ponto de vista em Inquietude - o que faz, em sentido literal, raccord ao eixo - é a imagem da mulher jovem, essa mulher que, em retrato, ocupa sempre a mesma posição ao longo do filme. O olhar sobre Inquietude é um olhar feminino e o filme é, de novo, um filme sobre o mistério da mulher e a impotência masculina face a ela. Terminada a história de Suzy («Pobre Suzy», prostituta de luxo que no mundo dos prazeres se consumiu) o ouvinte dela conta a história da «pobre Fisalina», da Mãe de um Rio de Agustina.

"Essa mulher que «goza, goza, goza» e para quem tudo «ce n'est qu'un détail» é a mais volátil e a mais «ophulsiana» das visões femininas de Oliveira. Perde todos os homens e perde-se por todos os homens. Traspassando do amor para a morte, puxando fumaças da sua boquilha de ouro, tão marcada como a Fisalina do conto de Agustina, a quem os dedos se transformam em ouro, vive, como ela, uma história de amor, que sugere «destruição, calamidade e princípio» (Agustina).

Até Terça!

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