por Alexandra Barros
Inquietude é construído a partir de três obras: a peça de teatro Os Imortais de Prista Monteiro, a novela Suzy de António Patrício e o conto A Mãe de Um Rio de Agustina Bessa-Luís.
Um médico-investigador, outrora famoso e estimado, vive angustiado com o esquecimento e irrelevância actuais. O seu filho, médico e investigador também, atingiu já o auge da sua carreira e vive actualmente o seu grande momento de glória. Para que o filho não tenha um destino igual ao seu, o pai tenta convencê-lo a suicidar-se, mas ele recusa. Dedicou a vida ao trabalho e agora quer viver: viajar, ir ao teatro, fazer com uma senhora bonita “tudo o que fazem os jovens”. Porém tudo isso são ilusões, está demasiado velho, especialmente para mulheres, para as quais só lhe resta olhar, diz o pai. A única recompensa possível para os seus sacrifícios é perdurar na memória colectiva através daquilo que mais impressiona as massas: a morte. O pai vê-se obrigado a resolver o assunto pelas próprias mãos e não hesita: “Um imortal não morre.” Cai o pano. Entre o público que vai ao teatro tanto para ver e ser visto como (ou mais que) para ver a peça estão dois amigos que, durante os aplausos finais, se encantam por duas mulheres que avistam num camarote vizinho, Suzy e Gabi.
Um dos amigos, o narrador desta nova história, apaixona-se por Suzy, mulher de muitos homens, por ela silenciosamente desprezados, como confessa ao seu amante especial, o único com quem pode ser ela mesmo. Suzy é uma mulher triste, apesar de ter tudo o que sempre quis: homens ricos que a adulam, automóveis, vestidos das melhores modistas, jóias. “Tudo menos a felicidade.”, nota o amante amado. “A felicidade c’est un détail.” responde Suzy. “Parece-me que nasci para isto. Sofro [o horror, o nojo, a humilhação] como se não houvesse destino melhor. Com a volúpia de um sacrifício.” Suzy morre durante uma operação cirúrgica e para arrancar o apaixonado à sua desolação, o amigo conta-lhe a história de Fisalina. “O que tem a ver com Suzy?” / “Tem e não tem. A vida é um mistério. Lá no fundo tudo se liga. [...] É desse enigma que nos fala a Mãe de Um Rio.”
Incapaz de aceitar a vida que lhe querem impor, Fisalina dispõe-se perante a Mãe de Um Rio a trocar o seu destino por um outro, mesmo que amaldiçoado. De filha presa numa aldeia que a sufoca torna-se então mãe de um rio que lhe nasce aos pés, libertando a anterior Mãe. “Os vigilantes do espírito humano devem ser rendidos e as águas da sabedoria devem ser habitadas por novos mestres”, diz a Mãe de Um Rio, que aprendeu com a natureza aquilo que uma vida de estudo académico não ensinou aos dois afamados cientistas: a aceitação dos ciclos da vida. Nunca nos podemos banhar duas vezes no mesmo rio. Fisalina não pode voltar nem para o seu apaixonado nem para a sua comunidade por causa dos novos dedos de ouro, que a fascinam, mas simultaneamente a denunciam. Uma solidão de mil anos é o preço que tem que pagar por eles e pela sua libertação.
Tanto Suzy como Fisalina se colocam à margem das convenções sociais e são renegadas pela sociedade, mas isso pouco importa. “C’est un détail.” Para elas, executar as missões a que se sentem destinadas é o que dá sentido às suas vidas. Esse espírito de missão é o único gozo que têm, por ele renunciam a tudo o resto, por ele sofrem com prazer.
Habilmente interligadas pela estrutura narrativa, as três histórias têm em comum personagens que se debatem com as questões: “Para quê viver?”, “Como viver?”. Quando não encontram saída para situações insuportáveis, a angústia existencial empurra os protagonistas para soluções em que são obrigados a renunciar a bens tão preciosos como a vida, a felicidade e o amor.
Inquietude é forte nos textos e nas imagens. As (belas-)artes das primeiras duas partes cedem o lugar à beleza da natureza, das construções vernaculares e dos rituais rurais ancestrais, na terceira parte. Entre os cenários e as personagens há sempre fortes associações visuais. O pai e (em breve) o filho da tragi-comédia inicial são tão relíquia de outros tempos como os objectos decorativos e antiguidades que os rodeiam, embora os representados nas estatuetas, pinturas e fotografias que os cercam não envelheçam, ao contrário deles. No romance trágico da segunda parte, a própria casa de Suzy é uma obra de arte e Suzy, cuja beleza excede a dos frescos das paredes, nelas por vezes parece estar pintada. No realismo mágico da terceira parte, da sombra das árvores emerge um rosto e umas mãos que seguram um galho com pequeninas flores malvas, mas o corpo da Mãe de Um Rio é indistinguível da escuridão.
Na última história são muitas as imagens que ficam impressas na memória: a aldeia labiríntica, ruas e casas construídas com a mesma pedra, uma entidade única, uma grande casa em que Fisalina está presa; a escuridão que rodeia a Mãe do Rio cortada pela cor das flores que carrega ou pela natureza verde vibrante que a janela da sua casa sombria enquadra; o túnel subterrâneo onde a Mãe de Um Rio transmite a sua missão e os dedos de ouro a Fisalina; a procissão do Senhor Morto, pontuada pelas chamas das velas transportadas pelas mulheres e depois essas mesmas chamas a perseguir Fisalina, flutuando “sozinhas” na escuridão absoluta.
Imagens que existem por causa de uma outra, mas mesma, inquietude. No texto de apresentação do ciclo “Manoel de Oliveira, O Visível e o Invisível”, que a Cinemateca dedicou ao realizador em 2018, pode ler-se:
“E a alma o que é?”/“A alma é um vício.” O vício que todos os filmes de Oliveira perseguem, afirmou João Bénard da Costa a partir deste extraordinário diálogo de Francisca.
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