quarta-feira, 27 de julho de 2016

The Chase (1966) de Arthur Penn



por João Palhares

É a personagem interpretada por Janice Rule (terrível personagem, terríveis as humilhações a que sujeita o marido interpretado por Robert Duvall, esse “filosofo de Sábado à noite”) que pouco depois de The Chase começar, fala do olhar de “Bubber” Reeves, dizendo que “he just stared. You know how he does, that funny stare, like everything is goig all wrong and he just can’t figure out why”. Nós vemos esse olhar no final do filme por três vezes. Quando “Bubber” olha para Jake numa maca e depois para Anna, que lhe responde da mesma moeda, sem saber porque terá acontecido o que aconteceu e, por fim, para a mãe que lhe abana cinco mil dólares à cara como se resolvessem tudo, passado e futuro. 

“Bubber” vai parar à cidade natal por partida do destino. Com fome e com pressa vai para Norte em vez de ir para Sul e em direcção à cidade dos pais e da mulher como se um íman terrível o puxasse até si. O burburinho que se vai multiplicando até resultar em fogo e sangue e o interesse das pessoas desta cidade pelo evadido não é mera curiosidade que se sacia por vê-lo em carne e osso, mas sim parte integrante delas, fantasma de sonhos, vontades e até crimes passados delas e que ao regressar traz tudo de volta consigo. Não por culpa dele mas dos outros. Por isso as coisas correm tão mal e por isso não andamos longe doutro filme que já aqui vimos (Some Came Running), em que outro homem voltava a casa mas para acordar os fantasmas doutra cidade (e a presença da actriz que interpretava Gwen French nesse filme triste e maravilhoso em The Chase parece confirmar este parentesco). “I was thinking of myself at that age, all the things I wanted and believed would happen,” diz Edwin, a personagem que interpreta Duvall. É esta a frase que lhe vale a alcunha de “Saturday night philosopher” dada pela mulher. 

Calder (uma das grandes composições de Marlon Brando, ao lado das dos filmes que fez com Kazan e Coppola e com o próprio Penn, em The Missouri Breaks, western fabuloso e misterioso) assiste a tudo isto da sua delegacia com um olhar não muito diferente do “funny stare” de Reeves, acusado de aceitar o dinheiro de Val Rogers quando o enfrenta e faz de tudo para separar as coisas, recusando presentes, terras e dinheiro na mesma noite e na festa de aniversário de tanto dinheiro e de tantos disfarces de Rogers. Tem que prender os inocentes e deixar os verdadeiros culpados à solta para não haver sangue nas ruas, enquanto “Bubber” se aproxima e a ânsia e os impulsos regados a álcool vão fazendo cada vez mais estragos. Defendendo o que é certo com grande impassibilidade não pode evitar a terrível carga de porrada na cadeia ou a morte nos degraus, quando o burburinho se faz trovão e tempestade (já cantava José Mário Branco: “os homens pequenos, quando são demais, não fazem por menos: tornam-se fatais”). Desaparece como os grandes amargurados do cinema americano (John Wayne em The Searchers, James Coburn em Pat Garrett & Billy the Kid...) e deixa os lobos entregues a si próprios. 

Parte da força e da raiva de The Chase talvez se devam à perseverança de Penn em combater o seu produtor e o seu estúdio, desiludido com muitas decisões e entraves injustas que lhe impuseram, o que acaba por contagiar o filme e confundir-se com outras perseveranças, combates, desilusões e entraves. Era cavalo de batalha dos grandes vultos da politica dos autores dizer que não interessa o que se filma, mas sim como se filma. Autor é, portanto, quem resiste e ilumina os criadores que tem à sua volta e ao seu dispôr com uma tenacidade feroz e apaixonante. De Nicholas Ray a Sam Peckinpah com passagem em Arthur Penn.

Nan va Koutcheh (1970) de Abbas Kiarostami



por João Palhares

Abbas Kiarostami, cineasta iraniano que nos deu o belíssimo Khane-ye doust kodjast, em que um miúdo atravessa o que parece ser o mundo inteiro para entregar um caderno ao colega da escola, Bād mā rā khāhad bord e Klūzāp, nemā-ye nazdīk, mais conhecido como Close-Up e que tomou de assalto o mundo do cinema, começou por trabalhar em design gráfico, fazendo os genéricos de alguns filmes antes de se aventurar na realização com Nan va Koutcheh, escrito pelo seu irmão. Kiarostami contou a Shahin Parhami em 2004 que “na altura em que estava a trabalhar para o Instituto de Desenvolvimento Intelectual das Crianças e dos Jovens Adultos nos finais dos anos 60, li muitos guiões, mas saltou-me à vista este em especial. A linha temporal unificada atraiu-me particularmente. A história em si tem só a duração de doze minutos, portanto não havia grande necessidade de dividir o tempo. Mas também estava ciente que dividir o quadro temporal para mostrar a passagem do tempo faz os cineastas submeterem-se a clichés e convenções. Portanto foi um desafio interessante para mim aproximar o tempo fílmico do tempo real o máximo possível sem usar essas convenções. 

“Nan va Koutcheh foi a minha primeira experiência em cinema e devo dizer que muito difícil. Tive que trabalhar com uma criança muito jovem, um cão e uma equipa não profissional, tirando o director de fotografia, que chateava e se queixava a toda a hora. Bom, o director de fotografia de certa forma tinha razão porque eu não segui as convenções do cinema a que ele se tinha habituado. Insistiu que dividíssemos as cenas. Por exemplo, ele queria tirar um plano geral do miúdo a aproximar-se, um plano aproximado da mão do miúdo e depois o miúdo entre em casa e fecha a porta, um plano do cão quando vai dormir para a porta, etc. Mas eu achava que se os conseguíssemos a ambos (miúdo e cão) num plano só, isto é, entrando no enquadramento, o miúdo a entrar em casa e o cão a adormecer à porta, teria um impacto mais profundo. 

“Eu acho que esse foi o plano longo mais difícil que filmei na minha vida. Para esse plano em particular tivemos que esperar quarenta dias; mudámos de cão três vezes (um deles até tinha raiva). Apesar dos problemas todos que enfrentámos aconteceu finalmente ou fez-se luz. De certo modo este filme é devido em grande medida à minha falta de conhecimento no que diz respeito a convenções fílmicas. Agora, quando penso nisso, chego à conclusão que tomei a decisão certa. Acredito que dividir as cenas – embora possa contribuir para o ritmo do filme – pode muito bem prejudicar a realidade e o conteúdo do filme.”

domingo, 24 de julho de 2016

24ª sessão: dia 26 de Julho (Terça-Feira), às 21h30


Na nossa última sessão antes das férias de Verão vamos assistir a The Chase, quarto filme de Arthur Penn e uma das etapas essenciais dos anos 60, em que convivem vultos e estrelas da velha Hollywood (Miriam Hopkins, Henry Hull, E. G. Marshall) e da nova (Jane Fonda, Robert Redford, Robert Duvall, James Fox), mediados doridamente por quem as atravessou às duas (Marlon Brando, Angie Dickinson) nessa noite quente em que Bubber Reeves volta a casa.

A anteceder o filme de Penn teremos Nan o Kucheh, primeiro trabalho do recentemente falecido Abbas Kiarostami, que tanta falta nos vai fazer...

Arthur Penn não gostava do resultado final de The Chase, que foi montado nas suas costas por Sam Spiegel, o produtor do filme. Admitiu no entanto a Damien Love que aprendeu bastante sobre retratar a violência e acabou por o usar em Bonnie & Clyde. "Aprendi, sim. Em The Chase, tentei fazer uma pequena experiência com slow-motion, e logo que as rushes foram vistas pelo chefe do estúdio da Warner Brothers, veio uma nota muito severa para mim: Não Há Mais Slow-Motion. Portanto, quando começámos a fazer aquela grande luta, em que Marlon é mesmo espancado selvaticamente pelas pessoas na cidade, Marlon sugeriu que, uma vez que tínhamos tão bons actores, que ambos conhecíamos muito bem do Studio, que, em vez de fingir os murros, podíamos mesmo dar os murros, só que um bocado mais lentamente, e depois o que fizemos foi dar menos à manivela, portanto estávamos a filmar qualquer coisa entre 18 a 20 fotogramas por segundo, e então quando se projecta a toda a velocidade, tem lugar uma surra realmente selvagem, com o Marlon a fazer algumas coisas completamente maravilhosas. De algumas eu não estava à espera, como rolar pela secretária abaixo, para o chão, e quando ele sai do tribunal, para os degraus de cimento, tentei convencê-lo a usar um duplo para isso, e ele recusou."

O grande crítico inglês Robin Wood, no seu livro sobre o cineasta americano, alongou-se sobre The Chase, escrevendo entre muitas outras coisas, o seguinte: "A primeira (pensar-se-ia) obra-prima indiscutível de Penn tem tido na verdade, em Inglaterra pelo menos, reconhecimento um pouco escasso, tanto de críticos como do público em geral. A inteligência do realizador informa cada sequência: não apenas uma inteligência cerebral, mas uma inteligência em que a emoção e a percepção intuitiva têm os seus papéis essenciais, e em que a claridade de visão mais rigorosa é equilibrada (mas não anulada ou comprometida) pela generosidade emocional. É talvez o filme mais completo de Penn. Não que seja necessariamente preferível a Bonnie and Clyde, mas contém certas características que não se incluem nesse filme, o que lhe dá uma dimensão extra, comparativamente. 

"The Chase dá o retrato mais completo de Penn de uma determinada sociedade, levando a análise à condenação intransigente, por implicação, da sociedade baseada-em-dinheiro em geral. Até ao final do filme toda a gente do mais alto (Val Rogers) ao mais baixo (o negro Lester) se revelou uma vítima por igual. A natureza essencial da sociedade retratada (vivamente particularizada, carregando no entanto o alcance implícito mais amplo possível) é sugerida cedo no filme pela cena no banco de Val Rogers: na superfície, uma hipocrisia e um uso de máscaras que tudo permeiam; por baixo dela, uma sensação de necessidades frustradas e corrompidas continuamente forte o suficiente para ameaçar a fachada quebradiça. O brinde com champanhe a Val Rogers no seu dia de aniversário, organizado com eficiência obsequiosa por Damon Fuller, transmite subtilmente a posição de Val. Toda a apresentação de Rogers é um bom exemplo da generosidade bem pouco sentimental de Penn. A ‘imagem' de Rogers - que ele próprio aceita claramente como real - de um cidadão eminente minuciosamente decente e responsável, modesto mas perfeitamente em controlo, não é inteiramente alheio à realidade. Penn mostra-nos um homem que não é inerentemente perverso, de todo: a sua corrupção subtil, revelada gradualmente à medida que o filme progride, sente-se como qualquer coisa inerente à sua posição e não à sua natureza. Como ele é rico, é respeitado universalmente; mas o respeito é pelo dinheiro, não pelo homem, e portanto falso e precário. Quando se erguem os copos de champanhe, as meninas que assistem sorriem em adoração: são totalmente sinceras, tanto quanto elas sabem estão mesmo a sentir alguma coisa pelo homem. E a extensão da ilusão própria de Val é sugerida pelo seu prazer evidente pelo tributo: está tão preso aos valores monetários como qualquer pessoa. 

"(...) O clímax de The Chase dá uma imagem aterradora de colapso social em que todos os fios variados do filme se unem. O cenário do 'cemitério' de carros avariados leva-nos de volta a Mickey One e à ‘morte total’, mas aqui ganha força por ser usado de forma dramática quando no filme anterior era exclusivamente simbólico. Val aparece para salvar Jake, depois aparecem os convidados da festa dos Stewarts, depois os adolescentes, à medida que se espalham as notícias sobre o paradeiro de Bubber. Quando a violência ubíqua explode (literalmente, com fogo-de-artifício e pneus em chamas) em todo o lado, vemos Val a perder cada vez mais o controlo: por fim, o poder do dinheiro evapora enquando os impulsos instintivos frustrados se satisfazem com a destruição. O tratamento da cena é tão convincente em termos de personagens que é só depois que uma pessoa se apercebe de quão perto estamos, aqui, da alegoria. A condenação da sociedade está implícita na ambivalência confusa das reacções dos adolescentes: Bubber torna-se metade herói-popular, metade bode expiatório, enaltecido e perseguido, ao mesmo tempo símbolo de revolta e vítima necessária em quem a violência pode ser desencadeada pelo menos com alguma demonstração de justiça social. Eles não o podem ver é como um ser humano, como um deles. Vemos os começos de um mito Bubber Reeves (‘Lembras-te da minha irmã?’ chama uma rapariga ansiosamente pela janela do carro enquanto ele é levado para a prisão) a que se prende um dos temas favoritos de Penn. Só aqui, no momento em que Bubber parece estar em perigo de desaparecer sob a sua própria lenda, é que descobrimos que ele tem um nome (Charlie) além da alcunha infantil; quase imediatamente depois do qual é abatido nos degraus da cadeia. O sentido da violência como uma epidemia que se espalha a velocidade alarmante e inatingível é bastante reforçado pelo facto do assassino de Bubber ser um homem que até esse momento tinha ficado na periferia dos acontecimentos, mais espectador do que participante, aparentemente um dos menos dados à violência activa. 

"Inacreditavelmente, alguns críticos atacaram The Chase quando saiu em Inglaterra pela sua ênfase na violência. A violência é um tema que um artista que está vivo intuitiva e intelectualmente para o mundo em que vive dificilmente pode evitar hoje; e se há um tratamento mais responsável dela algures no cinema, ainda não o vi. Ao insistir na actualidade do filme, estou a pensar em mais do que na clara referência à morte de Lee Harvey Oswald no tiroteio de Bubber Reeves. Embora tudo em The Chase seja tão vividamente pormenorizado, seria um erro vê-lo só como um retrato de uma sociedade localizada. (Se é um retrato fiel do Texas contemporâneo ou não é uma questão bem fora da minha competência, e além disso parece-me de importância trivial. A sociedade de The Chase pode ser totalmente tomada como fictícia: a relação dele com as realidades fundamentais da civilização moderna permanecem não afectados.) Parece-me que faz um comentário trágico ao espírito actual do mundo: a sensação de que os valores tradicionais da civilização ocidental foram tão desgastados que já não são capazes de segurar as forças que tornaram mais explosivas por as suprimir. O filme capta enervantemente esse sentimento de violência latente ou em erupção que tem indubitavelmente uma importância especial para o Sul Profundo mas que em alguma medida está no ar que todos nós respiramos."

Até Terça-feira!

quarta-feira, 20 de julho de 2016

Apresentação de Inferno para a Eternidade, por Mário Fernandes

Hell to Eternity (1960) de Phil Karlson



por José Oliveira

Vale sempre recordar a doutrina de Phil Karlson, homem do lixo dos passeios comuns e de muitos palcos baixos e altos, cineasta, artilheiro da chamada série-b do cinema clássico americano, fascinante e atormentado artesão: veracidade, natureza, osso, implicação. Trabalhando com nada ou com milhões, o que lhe interessou foi a forma certa a cada caso, a cada enquadramento ou respirar, sempre a rasgar normas, sempre novo. Fez os mais acossados noirs, acompanhado e protegido pela sombra dura e magnética de John Payne, como 99 River Street; filmes de género variado, tipo assalto: 5 Against the House, obliqua aventura pelos mecanismos dos anseios e dos brilhos sem moral ou com ela dinamitada; Westerns não pretos e brancos: Gunman's Walk é um dos becos da luta entre o incondicional e o imperdoável; ou as vinganças finais já nos anos 70 (o companheiro já é o arcanjo e mostrengo Joe Don Baker, ainda vivo, façam retrospectivas!) que puseram em sentido as revoluções e as ruínas da nova Hollywood, como que apelando aos velhos escritos e ao inaceitável. E foi, como tinha de ir, compulsão sem escape, à guerra. 

Na abertura de Hell to Eternity, o paraíso, crianças à bulha no pátio da escola, nostalgia. Paraíso que configura e adivinha a vida adulta – americanos no seu país contra um mexicano nascido americano que é amigo de Japoneses. A situação evidentemente que se resolve, as tragédias “normais” batem à porta ou estalam os dedos - Guy Gabaldon (Jeffrey Hunter como o aço de Payne), o herói que iremos seguir fica com a casa vazia, sem pai e com a mãe às portas da morte – e outra girândola do destino voa sem lógica alguma: o miúdo perdido é recebido de braços abertos pela família japonesa e logo se torna um deles, aprendendo a língua alheia e ensinando a sua. É a felicidade clássica, essa ordem arrancada à dor que se impõe e mantém, mesmo no aparentemente extraordinário. No diálogo fundamental desta odisseia, Mama-San, estátua vigilante e criadora, transmite ao filho adoptado que o cimento das gerações é o mais alto a alcançar. Os velhos devem cimentar os novos para depois os novos cimentarem os seus, e deixando-o boquiaberto ainda lhe abre os olhos para o ilógico natural da humanidade – fazendo-o ver a guerra como mais uma coisa de entre tudo o que a nossa raça criou, sem espanto. Diálogo que abraça com a história ancestral do amor e da falta dele que uns reconhecem e outros não. Todas as coisas se vão transformando no seu semelhante, serenamente, todas as coisas que são coisas. 

América contra Japão ou vice-versa, Pearl Harbor. A mão da tragédia a virar-se, os velhos acomodados e anafados a matarem os novos e os esqueléticos, uma relação de corpo-a-corpo ou de amor entre um soldado sem terra nem língua esventrada pelos campos de batalha esmifrados a grão descarnado de película de cinema e pela montagem mais do que dialéctica, corpos a caírem ao deus-dará, sem rosto ou fala, e uma das panorâmicas (fundida a ferro escaldante com o bailado Wagneriano de Apocalipse Now) mais cruéis e lúcidas de todo o cinema: vejam bem o que os irmãos ou simplesmente o que homens fazem uns aos outros, carne da mesma carne, sem irmos à alma, estátuas petrificadas no mesmo solo dos cadáveres em estertor, sangrados, logo descansados. Todos iguais no lado de lá e no lado de cá. Para o drama perene se rasgar e complexificar ainda mais: o soldado Gabaldon que ama os japoneses na sua casa a ter de enganar e matar os mesmos Japoneses na ilha do diabo, para os salvar a seguir, lhes indicar o caminho e ver o suicídio em prática fatal. Os americanos que têm um japonês no seu grupo a dependerem dele e do seu suposto heroísmo. Na guerra é matar ou morrer, diz um deles, contando com instinto e contradição, sabendo que aquele jogo indefinível jamais os irá definir. 

Sem comentários. Gabaldon a ler uma carta da sua mamã, palavras impressas que no inferno metem a tal ordem de cepa na ordem do dia. Tudo continua e há missões como valores que resistem a todos os números e actos oficiosos. No crepúsculo o dito americano ou mexicano amado e criado por japoneses pega numa criança pelos braços para de certeza a oferecer a Mama-San e para cimentar os alicerces genuinamente humanos como devem ser cimentados. Hell to Eternity é um petardo universal e aglutinador, onde perfeições cavam pelas vias do inferno, aparecendo japoneses estúpidos como americanos estúpidos, americanos mais do que perfeitos e japoneses como esses. Em Hell to Eternity pode-se amar e detestar sem lei, credo ou religião a servir de cobarde caução, conforme justiças e paixões, ordens e atalhos superiores, animalidade e beleza, tal como na bulha infantil ou na argamassa da composição final. Catártica e silenciosa oração para o purgatório da violência aleatória dos campos de batalha sem campo de hoje.

sábado, 16 de julho de 2016

23ª sessão: dia 19 de Julho (Terça-Feira), às 21h30


A próxima sessão do Lucky Star, Hell to Eternity, foi sugerida por Mário Fernandes, aventureiro e bandoleiro cinéfilo que nos mostrou em Maio o primeiro filme de Sam Peckinpah, The Deadly Companions.

Foi Mário Fernandes que disse que "quando chegarem a 1960, não te esqueças de programar Hell to Eternity do poeta experimental Phil Karlson. O gajo que filma 15 minutos de strip-tease, corta para as detonações na ilha do inferno Japonês e emudece o filme para o cortejo fúnebre - a pouco e pouco ouvimos passos e o último estalar dos dedos de um soldado. É foda. Abraço." E preparou um vídeo que vai anteceder a sessão de dia 19.

Phil Karlson, artilheiro da chamada série-b do cinema clássico americano, fascinante e atormentado artesão, foi irmão de armas de Richard Fleischer, Anthony Mann, Edgar G. Ulmer, Joseph H. Lewis, Jack Arnold e Budd Boetticher, e sobre o seu Hell to Eternity, disse que, "apesar de tudo, eles não sabiam o bem que me estavam a fazer, porque eu estava a experimentar com tudo o que fazia, a tentar apanhar os meus troços de verdade aqui e acolá, que tentava esgueirar nestas coisas de que eles nem sequer estavam conscientes. Na verdade, eles eram mesmo o oposto. Eram os tipos de ala-direita mais conservadores que se pudesse ver. Não faziam ideia do que se estava a passar no que dizia respeito ao verdadeiro conteúdo. Mais tarde, com o Steve Broidy, depois do Trem Carr ter saído, e começámos a ter lá os Mirisches, comecei então a fazer estes filmes que realmente diziam qualquer coisa. 

"Todos os filmes bem sucedidos que eu fiz foram baseados em factos. Claro, entra lá muita ficção, mas a ideia base é verdadeira. O último filme que eu fiz para a Allied Artists, há treze anos, foi Hell to Eternity [1960], e Hell to Eternity é um dos filmes mais importantes que hei-de fazer porque era a história verdadeira dos Nisei, do que aconteceu neste país. Mas a Allied Artists, mesmo nessa altura, olhou para ele como uma grande história de guerra que se podia fazer por um preço. Não faziam ideia do que eu estava a fazer. Mas quando o filme teve tanto sucesso, começaram a ver coisas nele que nunca tinham visto antes. Esqueçam o facto de que usei cinco mil japoneses e cinco mil fuzileiros que estávamos a arranjar por dinheiro nenhum. Eu filmei-o em Okinawa no Japão por menos que $800,000. Desafio qualquer companhia a fazer esse filme por $5,000,000, hoje."

Deixemos então Bill Krohn apresentar-nos Phil Karlson: "Nascido em Chicago em 1908, Philip Karlson, nascido Karlstein, era metade-judeu e metade-irlandês (cf. There Goes Kelly). A mãe dele era uma actriz dos Abbey Players em Dublin que se tornou uma estrela nos palcos Yiddish da América. Ele herdou a veia artística dela e estudou pintura no Art Institute de Chicago, mas o pai dele insistiu que ele se licenciasse em Direito pela Universidade da Califórnia. Fazendo uns biscates na Universal enquanto estudava, subiu na hierarquia ajudando em filmes que iam desde comédias de Abbot e Costello a filmes importantes com Marlene Dietrich.

"Perdemos-lhe o rasto entre 1941 e 1944, quando volta a aparecer com A Wave, a Wac and a Marine, o primeiro filme dele como realizador e o primeiro de quinze filmes que fez para a Monogram, a companhia de série-B a que Godard dedicou À Bout de Souffle. Produzido anonimamente por Lou Costello, o espectáculo carnavalesco brechtiano de Karlson sobre a relação entre Hollywood e a guerra pairou sobre as cabeças do público rural da Monogram. Portanto, em vez de fazer um The Best Years of Our Lives ou um Detective Story, ele fazia Kilroy Was Here, sobre um homem assombrado por um fantasma ridículo da guerra, e The Missing Lady, uma brincadeira porca borguesiana em que as personagens às vezes usam a câmara como um espelho para verificar as suas aparências.

"A Monogram usou o nome Allied Artists pela primeira vez para distribuir Black Gold, que Karlson filmou durante um ano em exteriores entre rodagens de filmes baratos em Hollywood para conseguir as cores certas das estações. A companhia usou o nome outra vez para lançar Phenix City Story, tornando-se uma casa independente portentosa depois desse sucesso, e depois outra história real, Hell to Eternity, em 1960. Só o estúdio em que Karlson aprendeu a atirar um número burlesco para impedir o segundo acto de murchar poderia lançar um filme em que o primeiro Acto é o internamento de Japoneses-Americanos, o segundo Acto uma orgia em Honolulu, e o terceiro Acto o suicídio em massa de soldados japoneses em Iwo Jima. Durante o segundo Acto a câmara de Karlson, no meio da guerra, acompanha, num quarto, as correntes libidinosas como faria John Cassavetes em Faces."

Até Terça!

quarta-feira, 13 de julho de 2016

Apresentação de Marnie, por Jean Douchet

Marnie (1964) de Alfred Hitchcock



por José Oliveira

Marnie, para muitos o último grande filme de Alfred Hitchcock, para tantos outros ou mais, o princípio do fim, causou sobretudo estupefacção por não se reconhecer o esperado em Hitch, a sua marca de génio, a mais valia de mercado. Ainda hoje é uma obra difícil pois para ela os chavões e a teoria feita não chegam, muito menos as expectativas. Tal e qual como aconteceu com o John Ford de Donovan's Reef ou o Nicholas Ray de We Can't Go Home Again. Manter quem gostamos ou simplesmente apreciamos na rota reconfortante ou nas temperaturas mornas é uma boa maneira de não exigirmos de nós grande coisa. Só que Marnie está construído e respira sobre perigosas temperaturas e em altas tensões, carregado de materiais opacos e desconhecidos, em solos não fiáveis e não legalizados. 

Sobre a grande questão da psicanálise e da sua utilidade – o remédio do mal e o mal do remédio – o grande Jean Douchet - muito para além da crítica: de uma só vez cruamente vândalo, poeta, padre falhado e aristocrata belo – já nos disse tudo o que há para dizer, deixando em elipse ou em irrisão um outro tanto perturbador que está dentro de cada qual. Na sequência capitular do filme – esse flashback a dilatar-se para a tela em extracção das entranhas e dos fundos da menina atormentada – o vermelho da tormenta evidencia-se a cor do sexo, do sangue e da morte. E o sexo, o sangue e a morte são assim as três entidades da negação do amor. Depois de tudo ser rememorado, vomitado entre raios e trovões, a menina pode finalmente tornar-se mulher. Largando a mãe, saindo de casa, virando as costas às criancinhas e à sua cantilena persistente, tornando-se indecente, nova ou acabada. E foi esse o trilho do filme, a sua via-sacra, que corresponde e é imagem da perda da inocência e da assunção do desejo. A menina decente que era uma fraude, uma mentirosa e uma ladra morre para entender que todo o amor comporta no seu âmago os monstros que o vermelho lhe escondia. Que todo o amor é necessariamente daquela cor, sem chance de coloração. O agigantamento da bocarra da morte e a entrada nela como em visita guiada sempre foi a base da fábula, do melodrama ou dos quintos dos infernos. 

Assim, o cabelo que a criança passa o tempo a pintar, os roubos substitutos, as associações imediatas, a ambivalência protectora e sugadora do cavalo de estimação, a literatura escandalosa e o niilismo do marido, a sua perdição também, estão interligados com o trabalho de câmara com que Hitchcock segue e perscruta a impossibilidade da compartimentação do sexo, do sangue, da morte e do amor; com a partitura com que Bernard Herrmann cria as distâncias do medo e o combate dos tempos; tudo na batalha principal e primordial que está no rosto de Tippi Hedren, sempre a extravasar para o mundo e para a construção social ou reconfortante, resumindo: puramente humana – o fogo e o gelo, o amor e a morte. Com as cores neutras e desbotadas do respeito sempre a trabalharem no apagamento, no disfarce, no travestir do encarnado garrido, delirante e sem regra, pobre água na fervura. 

Trilho e posta em cena dessa aceitação ou do suicido imediato é o resumo e o peso incomensurável deste arco-íris da existência onde o famoso suspense do mestre não chega de nenhum super-estilo da aventura extraordinária que os homens ousam e inventam melhor do que qualquer argumentista, mas sim do interior em escavações e em revelação antediluviana: da fixidez de um rosto e da paisagem perfeitamente vectorizada manifestam-se os incêndios e os naufrágios que se querem nas sombras. E são essas sombras que proporcionam um suspense raramente sentido porque raramente olhado: o terror do início e o terror do fim. Delirante estilo que em pouco mais de duas horas ousa filmar o que não se pode ver, o que não se deve ver. Atingindo a claridade das claridades: é o plano final. Cristalino e indecente. Boa viagem pelo mais torcido dos mapas, o ápice do grande mestre.

domingo, 10 de julho de 2016

22ª sessão: dia 12 de Julho (Terça-Feira), às 21h30


Marnie é um dos momentos sublimes da carreira de Alfred Hitchcock, um dos seus filmes mais misteriosos e ambíguos. É também um dos mais discutidos, amado entusiasticamente por uns e mal-amado por outros. Ou seja, imperdível. É a próxima sessão do Lucky Star.

Jean Douchet, uma das autoridades máximas em Hitchcock (tendo-o mesmo conhecido) e autor dum livro sobre o realizador, vai dizer-nos o porquê num vídeo gravado na Cinemateca Portuguesa, com a ajuda de Rita Azevedo Gomes. 

Foi Douchet quem escreveu que "Os últimos Hitchcock são apaixonantes. Tenho Marnie como uma das obras-primas de Hitchcock, faz parte da grande série Vertigo, Intriga Internacional, Psico, Os Pássaros. Marnie vai ser um choque para Hitchcock. Existe certamente o episódio com Tippi Hedren, muito traumático, mas sobretudo, o filme não tem sucesso. Hitchcock dá-se conta de que quanto mais sério quer ser, mais dificuldades tem em convencer o público. Como ele trabalha sobretudo sobre o espectador, a quem dá o lugar principal por herói interposto, o que está no ecrã é uma figura : falta carácter, densidade e força às suas personagens, para que o espectador se projecte melhor. Com Marnie, ele tenta criar personagens mais consistentes, mantendo a fórmula anterior­ em especial a figura da mulher arqui-etérea… Eu acho que ele teve um choque ao descobrir que isso não funcionava com o público : o lado sério matou o lado da fantasia.

"Mas não é um filme doente, é um filme sobre doenças como se a neurose se tivesse espalhado como uma praga pela humanidade. O filme conta-nos isso, tentando prender o público, como sempre em Hitchcock. Portanto ele precisa de um ingrediente explicativo : aqui, a psicanálise. Em vez de brincar com a psicanálise como em A Casa Encantada, Hitchcock vai mostrar que a psicanálise é aproveitada por uma sociedade do dinheiro que usa para eliminar os problemas sociais. E a psicanálise acentua a neurose. O filme é construído assim : falsa abertura, a psicanálise é realmente a chave que fecha um pouco mais. Não se trata portanto de peso explicativo. A última imagem do filme não se entende doutra forma : o encerramento é total. O barco esmaga não só as personagens, mas também a pequena rua proletária que nos é apresentada. Se, nessa última sequência, Hitchcock mostra uma tela pintada é porque é um artifício assumido de bom grado : “Está numa representação teatral, num plano fechado, não pode sair.” Senão, teria arranjado um cenário real.

"Conta-se (especialmente os técnicos) que depois do affaire Hedren, Hitchcock se desinteressou pela rodagem e pelos efeitos especiais. Talvez, mas nesse caso, porquê todas as transparências no sistema hitchcockiano (cenários filmados em que desfilam actores em segundo plano) ? As transparências dele são sempre muito flagrantes. De resto, hoje em dia isso incomoda os jovens espectadores. Ele utilizava esses processos enquanto processos, isso fazia parte do seu sistema de representação.

"Quando me encontrei com Hitchcock em Hollywood em 1963, era claro que a questão sexual o consumia e que já estava obcecado por Tippi Hedren. Ele disse sem dúvida a seu respeito “Essa pequena Cinderela de quem fiz uma princesa vai-me mostrar um pouco de gratidão”. E, obrigatoriamente, Marnie é uma personagem totalmente modelada à Hollywood daí, no início, a mudança de cabelo do preto para o loiro. E esse loiro, o mais radiante e manequim de todo o Hitchcock, assim como o seu olhar, tão radiante e vazio, fazem dela uma heroína alienada pelo sistema da aparência e da sedução sexual, que é definitivamente o ganha-pão dela. E esse tema de Marnie é o próprio tema do cinema : é “O que é que se passa no espírito de uma star ? Toda a star está condenada tornar-se louca”. Se Marnie não é mais belo, plasticamente, que Vertigo, é tanto como. O primeiro plano, no entanto, que esplendor, com aquela linha que corta o ecrã em dois, tipicamente hitchcockiano… Graficamente, o filme é explêndido de fio a pavio. Que não me venham falar em segunda hora mal conseguida : Há apenas uma primeira hora sublime que dura duas horas !"

E fiquemos com João Bénard da Costa e o seu texto sobre Marnie:

"Mother, Mother, I am ill 
Send for the doctor over the hill 
Mother, Mother, I feel worse 
Send for the lady with the alligator purse 

 (canção dos miúdos, no final de Marnie) 

"A concepção de Marnie, estreado um ano depois de The Birds, coincide com a desse filme e foi desenvolvida em simultaneidade com ele. Hitchcock parece até, a certa altura, ter pensado em rodar primeiro Marnie e depois The Birds, com a ideia num come back de Grace Kelly (já então Princesa do Mónaco) para o papel de protagonista. A coisa chegou a ser encarada a sério, houve até uma espécie de plebiscito entre a minúscula população de Monte Carlo para saber como os súbditos de Grace reagiriam à hipótese de ver a soberana de novo nas telas, mas perante reacções negativas, a actriz de To Catch a Thief desistiu. Hitch descobriu então Tippi Hedren (a sua loura mais próxima de Grace) e decidiu fazer com ela The Birds e Marnie.

Tippi Hedren viria a ser aliás a última das suas famosas e frígidas louras, num filme que sintomaticamente marca o fim de outras colaborações capitais: foi o seu último filme fotografado por Robert Burks (operador de todas as suas obras a partir de Strangers on a Train, com a excepção de Psycho), foi o seu último filme com música de Bernard Herrmann (compositor de todas as suas obras, a partir de The Trouble With Harry), foi o seu último filme montado por Tomasini (montador de todas as suas obras a partir de Rear Window, com excepção de The Trouble With Harry).

Sublinhemos tantas despedidas. Não será inteiramente gratuito ver nelas o sinal do fim duma fase da carreira de Hitchcock (dos inícios dos anos 50 aos inícios dos anos 60) que, para muitos, corresponde ao período áureo do realizador e a passagem à fase final da sua carreira, com quatro filmes bastante dispersos no tempo e em “corte” sensível com a produção anterior. E note-se, para terminar a introdução, que Sean Connery (o então celebérrimo 007) é o último dos seus heróis da família que tem por arquétipo Cary Grant e se prolonga nas imagens paralelas de James Stewart, Ray Milland, John Forsythe, Henry Fonda, John Gavin e Rod Taylor.

A questão que divide a crítica é a de saber se Marnie é a última das grandes obras-primas ou o primeiro dos específicos e insólitos filmes finais. Quanto ao público, Marnie nunca foi um favorito, desconcertando sensivelmente as audiências que só reconheceram a “mão do mestre” na saborosa sequência do roubo do cofre com a mulher-a-dias surda.

Na sua muito citada obra sobre Hitch, Robin Wood faz o inventário dos defeitos que a crítica da época mais assacou a Marnie: clamorosos lapsos técnicos (cenários pintados da rua de Mrs. Edgar, a mãe de Marnie, transparências óbvias na caçada e na cavalgada subsequente da protagonista, o uso do zoom na última tentativa de roubo de Marnie, efeitos fáceis e de gosto duvidoso como os flashes encarnados de cada vez que a protagonista colapsa); ingenuidade ou esquematismo na abordagem do caso psicanalítico (Hitch teria reforçado clichês da psicanálise, como já teria sucedido em Spellbound); incoerência até no argumento (várias vezes Marnie “passaria sinais vermelhos” sem reagir). Não tenho espaço para discutir esses supostos lapsos técnicos e de argumento e por isso recomendo a leitura da brilhante análise de Robin Wood a quem deseje aprofundar essas questões.

Quanto à questão da psicanálise ela é fulcral porque mais uma vez os críticos não repararam que só superficialmente esse é o tema do filme. Tal como em Spellbound ou em Psycho, a explicação psicanalítica é abordada por Hitch com evidente ironia (pense-se mais uma vez no ar desenvolto e triunfante do psiquiatra de Psycho em tão flagrante contraste com o que se vira antes, com o que se verá depois - a sequência final de Perkins - e com a própria situação), o que está expressamente sublinhado no filme pelo episódio da associação de ideias, pela impossibilidade de leitura unívoca do flash-back e pelas conotações sobre o tipo de informação que Mark tenta encontrar (o livro Sexual Aberrations of the Criminal Female) e até pela própria ironia de Marnie (“You Freud, Me Jane”).

Tanto quanto Spellbound, Marnie não é um filme sobre a psicanálise, mas sobre o desejo sexual, correlativo, no universo católico que formou e informou Hitchcock, do tema da culpa. Neste sentido, se The Birds é o ponto limite da interrogação de Hitch sobre a culpa, Marnie é o seu equivalente sobre o tema do desejo, com a desmontagem do MacGuffin que é a culpada associação desse desejo ao Mal. E a psicanálise é só a chave falsa para abertura dessa sempre cerrada porta.

Vejamos mais de perto: é evidente que Hitch multiplica neste filme associações com conotação psicanalítica conhecida, na maior parte dos casos vindas de obras anteriores: associação roubo-sexo (Marnie prolongando To Catch a Thief); recordação traumática-lapsos ou ausências (Marnie na linhagem de Spellbound); comportamento sexual “aberrante” - imagens maternas e paternas (correspondências da mãe de Marnie com Mrs. Bates de Psycho); a carga sexual do cavalo (esboçada em Suspicion, Under Capricorn e em Vertigo e notar-se-ão as semelhanças da sequência da estrebaria com a sequência análoga de Vertigo); amor fetichista (o fetichismo é a caracterização suprema de Sean Connery, como Hitchcock disse “um homem que quer ir para a cama com uma ladra porque ela é ladra, tal como outros querem ir para a cama com uma chinesa ou uma negra”); relação água-sexo (tentativa de suicídio de Marnie na piscina - paralela à tentativa de afogamento de Madeleine no Vertigo - após a inadjectivável sequência em que a protagonista é despida pelo marido). Mas todas essas associações (e outras mais) não explicam nem Marnie nem Mark, nem a atracção que os leva um para o outro (ou um contra o outro) e são precisamente outras tantas ocultações do inexplicável dessa atracção e do sufocante desejo a ela ligado.

Detenho-me em três momentos do filme, para me aproximar da extrema vertigem desta obra que, pessoalmente, não hesito em colocar entre os máximos filmes de Hitchcock:

a) Uma vez mais, na obra de Hitch, o início e o fim do filme nos dão chaves fundamentais. Após as páginas do livro a desfolharem-se (desejo fundo de Marnie de ser aberta, com o espantoso equivalente futuro na sua relação com o cavalo - “Oh Forio, if you want to bite somebody, bite me”), destacam-se no silêncio os passos de Marnie, que vemos levar na mão duas malas, uma cinzenta, outra amarela, esta captada depois em grande plano. Tem-se reparado que essas duas cores acompanham a protagonista ao longo de todo o filme, mas há mais do que isso. Este termina com a cantilena das crianças e com as referências à “lady with the alligator purse” (“a senhora da mala de crocodilo”), chamada em vez do médico, quando tudo ficou pior. A referência é obscura mas não será muito ousado ver nessa lady uma metáfora da morte. Desde o início, a imagem da mulher e daquela mulher vem pois marcada pela correlativa ideia do inacessível e do mortal. A carga que transporta é uma carga de morte, que não se aniquila ao longo do filme, nem se destrói com o flash-back catártico, pois regressa explicitamente no final, esclarecendo os primeiros planos do filme.

Logo a seguir, o inquietante Rutland (que regressará na fundamental sequência da festa, quando Mark incorpora Marnie em todo o seu passado) descreve a ladra em termos muito próximos da descrição dum cavalo (gaba-lhe as pernas e os dentes) e associa imediatamente esse tema ao da frigidez (“always pulling her skirt down over her knees as if they were a national treasure”). É essa descrição, e essa alusão que fazem nascer (associadas ao roubo) o desejo de Sean Connery. Futuramente o desejo de Marnie só explode com o cavalo (mata-o com as mesmas palavras que proferiu quando matou o marinheiro) e a frigidez é a máscara desse desejo (ou a forma suprema da voracidade sexual da protagonista, como transparece na já citada sequência em que é despida). É tanto pelo roubo como pela frigidez que atrai Mark e o prende a ela, nas muitas noites brancas do filme (e que essa anulação do sexo seja eroticamente superior à sua evidência é o que demonstra o personagem contrapolar e aberto da cunhada de Mark).

b) Quando Marnie confessa a Mark a sua frigidez, este objecta-lhe com os beijos passados que nada disso tinham. Esses beijos tínhamo-los visto na cavalariça e sobretudo - e talvez seja o mais belo beijo da obra de Hitch - no fabuloso grande plano da tarde da tempestade no escritório de Mark, quando este lhe fala da supressão do passado. O que a tempestade significa sabemo-lo no final, tornando mais duplamente sintomático que seja durante ela que Marnie se entregue assim a Mark. A importância desse beijo é fulcral porque, como quando é despida, o que nos é dado a ver ultrapassa tudo quanto pude dizer. Ela que escolhera a permanente aparência de loura quando, como a mãe lhe diz, “too blond hair always looks like girl trying to attract men”.

c) Finalmente, nunca será demais sublinhar neste filme a ausência de um ponto de vista identificador. Já se disse que se o espectador fosse chamado a identificar-se com Mark, este filme seria uma espécie de recapitulação do Vertigo. Mas se não nos identificamos com o inquietante e fetichista Mark também não nos identificamos com Marnie, cujo ponto de vista raramente é o do filme. Estamos sempre descentrados, o que é, de certo modo, novo na obra de Hitch (e talvez daí a perplexidade do espectador). Só que esse descentramento é capital, porque a fissura entre a total assunção do desejo e a sua total recusa, a coincidência entre uma e outra atitude (ou seja a anulação da fissura) só pode dar-se quanto estamos entre, ou melhor dito quando nenhum dos pontos de vista é suficiente para esgotar a vertigem e o mistério do desejo recusado e entregado.

"Para desejarmos totalmente temos que totalmente nos reter. A explicação nada explica. A palavra nada liberta. As únicas coisas que amamos, como diz a mãe, são aquelas que nunca conseguimos dizer. Nesse indizível do sexo e do desejo, é difícil ir mais longe do que esta obra cerrada."

Até Terça-Feira!

quarta-feira, 6 de julho de 2016

Apresentação de A Carga da Brigada Azul, por Luiz Carlos Oliveira, Jr.

A Distant Trumpet (1964) de Raoul Walsh



por João Palhares

É mais ou menos a meio de Along the Great Divide, de 1951, que o pequeno grupo encabeçado por Kirk Douglas é atacado por um bando de fazendeiros que querem vingança pela morte do filho de um deles – e que é quem os lidera. Querem que Douglas lhes dê Walter Brennan para o poderem enforcar. O irmão do fazendeiro abatido tenta surpreender o grupo de Douglas e Brennan por trás, por uma ravina, mas Douglas vê-o e vai ao seu encontro. Walsh filma os contornos e as medidas à ravina de tal maneira que percebemos perfeitamente o que está em jogo, no que é de resto uma situação com percursos e pontos de vista muito complexos mas que Walsh consegue descrever de forma agudamente pragmática. Em Distant Drums, Objective, Burma! e The Naked and the Dead o nosso interesse, a nossa empatia pelas personagens e pelos seus destinos só podem resultar deste talento para tornar movimentos, demandas e missões perfeitamente visíveis e palpáveis. Demonstráveis. É o que não falta nas grandes sequências de embates entre índios e o exército em A Distant Trumpet, reflexo de uma enorme vontade de ilustrar (tentando ser o mais fiel possível) às grandes aventuras por espaços abertos que aparecem nos anais da nossa história. Quando lhe pediram para explicar como conseguia coordenar toda esta gente em todo este espaço, Walsh respondeu modesta e elipticamente (característica que partilhava com John Ford e Howard Hawks) que “I come from a large family”.

Walsh sempre gostou dos espaços abertos e de filmar o máximo possível bem longe dos estúdios, que era outra maneira de fugir ao policiamento dos produtores e dos investidores e desfrutar da liberdade de olhar para os céus e para as montanhas cumprindo e alcançando os horizontes dos seus próprios desejos. Mas era também - como disse o recentemente falecido, eterno (e tão próximo de Raoul Walsh, como viu muito bem Jacques Lourcelles) Michael Cimino a Bill Krohn em 1982 - porque “há uma corrente que flui quando se filma em exteriores que não se consegue atingir facilmente num estúdio: sais à noite para ir para casa, não trabalhas aos fins de semana, é quase trabalho de secretária. Algumas pessoas gostam disso; eu, eu gosto de me sentir longe de casa, satisfaz-me; consegue-se qualidades daí, texturas, que são duas vezes mais difíceis de conseguir em estúdio. E depois, em estúdio, não tens pessoas reais, tens figurantes profissionais, o que é completamente diferente. Em cada um dos meus filmes, usámos muitos locais e um número reduzido de actores. O estado de espírito das pessoas que vivem lá nunca foi mesmo mostrado nos filmes. Trouxeram uma característica excepcional ao filme. Por exemplo, na cena do casamento em The Deer Hunter, aqueles são os verdadeiros paroquianos; era muito difícil encontrar essa corrente, essa vida, de pessoas que tinham os hábitos de um figurante; podia-se obter um resultado perfeitamente satisfatório, mas não o mesmo resultado. Aquelas pessoas eram mesmo russo-americanos, que falavam mesmo a língua, dançavam mesmo aquelas danças, que passaram as vidas deles todas naquela comunidade, tinham certas expressões faciais. Não podias criar isso com figurantes profissionais.”

Como soube Cimino e também Abbas Kiarostami (que esta semana o acompanhou na descoberta do segredo eterno), como souberam os nossos conhecidos John Ford, Budd Boetticher e Anthony Mann e como, claro, soube Raoul Walsh, nas palavras de Victor Hugo sobre as ofensivas e contra-ofensivas de Quatrevingt-treize, imenso fresco sobre a Revolução Francesa, “a configuração do solo aconselha ao homem muitas acções. Ela é mais cúmplice do que se julga. Em presença de certas paisagens ferozes sente-se a tentação de desculpar o homem e de incriminar a criação, sente- se uma surda provocação da natureza; por vezes o deserto é nocivo para a consciência, sobretudo para a consciência pouco esclarecida (...), as matas sombrias, as silvas, os espinhos, os pântanos parados sob os ramos, têm nela uma influência fatal – ela sofre nesses lugares a misteriosa infiltração das más persuasões. As ilusões de óptica, as miragens incompreendidas, os desnorteamentos da hora ou do lugar, produzem no homem essa espécie de terror, meio religioso, meio bestial, do qual brota, em tempos comuns, a superstição, e nas épocas de violência a brutalidade. As alucinações contêm o facho que ilumina o caminho do assassino. Há a vertigem do bandido. Há nos prodígios da natureza um duplo sentido que deslumbra os grandes espíritos e cega as almas entorpecidas. Quando o homem é ignorante e o deserto é visionário, a obscuridade da solidão junta-se à obscuridade da inteligência – e produz abismos no homem. Certos rochedos, certas ravinas, certos taludes, certas clareiras sinistras ao entardecer, impelem o homem às acções loucas e atrozes. Quase se podia dizer que há lugares celerados.”

Pode-se ver isto tudo na descida e elevação desesperada de Joel McCrea, dando as mãos a Virginia Mayo nessa aventura impossível, quimérica e belíssima que é Colorado Territory, quando as autoridades lhe fecham as saídas e o cercam no sopé da montanha que lhe dita o destino. Ou no final de The Big Trail, em que as grandes sequoias do Oregon que selam o amor de Wayne e Marguerite Churchill se sucedem ao gelado e abismal confronto daquele com as personagens de Charles Stevens e Tyrone Power, Sr. na floresta sombria. Como nos vales que recebem as movimentações de gado de The Tall Men ou nos verdes montes tosquiados pelo vento e percorridos pelos soldados atormentados de The Naked and the Dead...

Mas insistir demais nisto, por muito fascinante que seja, pode eclipsar bastantes das outras coisas que atestam a genialidade de A Distant Trumpet: uma história que ao contrário do que se disse, e infelizmente ainda se repete, não tem nada de banal e arrisca intercalar destinos pessoais com movimentos em massa, situando-os e contextualizando-os nas grandes mudanças e transições históricas dos Estados Unidos da América; a bela cena na gruta, depois do resgate de Kitty pela mão do tenente Hazard, em que este cuida dela e ambos descobrem através desse isolamento temporário que no forte e na vida estão sozinhos a tempo inteiro; a flor que cresce no deserto (“a gentle reminder that life can exist in this god-forsaken place”) e é tantas vezes tema de conversa e é por tanta gente regada e tratada, como se ao fazê-lo estivessem antes a tratar de si mesmas e das suas próprias vidas, supersticiosamente; as conversas à noite no cimo do forte e sob as estrelas, lembrando o dito wildiano de Lady Windermere's Fan tão caro a Walsh e citado abertamente em The Man I Love (“We are all in the gutter, but some of us are looking at the stars”), em que Hazard e Kitty se vão dando por inteiro um ao outro; a extraordinária música de Max Steiner, irmão de armas de Raoul Walsh desde os tempos áureos da Warner, e os achados de imagem fabulosos de Walsh e William H. Clothier; a personagem de James Gregory, mentor, profeta, declamador de Virgílio, Tácito e Cícero que, com esse latim, inscreve esta aventura em quadros épicos...

O cinema diz-nos que um horizonte é uma coisa bela mas só se houver alguém que o atravesse e passe por grandes provações para o alcançar e para o merecer. Walsh, Cimino e Kiarostami mostraram-no e são agora parte dos elementos e dos astros que nos regem e velam por nós. “Kindred of the Dust”... “Espíritos do sol”... “O Vento Levar-nos-á”...

sábado, 2 de julho de 2016

21ª sessão: dia 5 de Julho (Terça-Feira), às 21h30


O nosso cineclube chega a Raoul Walsh, cineasta americano que foi discípulo e colaborador do fundador D. W. Griffith e que antes disso viveu no México, aprendendo não só os mais variados ofícios (medicina, condução de gado) como também a viver a vida. Em Hollywood, realizou mais de uma centena de filmes, do épico mudo (The Thief of Bagdad) aos filmes de guerra (Objective, Burma!, The Naked and the Dead), da comédia (Me and My Gal) aos grandes frescos históricos (The Big Trail, Band of Angels), dos filmes de gangsters (The Roaring Twenties, White Heat) aos filmes de aventuras (Captain Horatio Hornblower, The World in His Arms), da biografia (Gentleman Jim) aos westerns (Pursued, Colorado Territory), do musical (The Strawberry Blonde) ao melodrama (The Revolt of Mamie Stover). Tudo filmes que ultrapassam e superam os seus géneros fazendo portanto parte de uma obra perfeitamente coesa, mas também solta e fascinante e que termina com A Distant Trumpet, que é a nossa próxima sessão.

A anteceder o filme teremos uma apresentação em vídeo por Luiz Carlos Oliveira, Jr., crítico e professor de cinema brasileiro que já colaborou para as revistas FOCO, Interlúdio e Paisà, curou as mostras de cinema "Vincente Minelli - Cinema de Música e Drama" (em 2011) e "Jacques Rivette - Já não Somos Inocentes" (em 2013), escreveu o livro A mise en scène no cinema: do clássico ao cinema de fluxo (também em 2013) e escreveu e realizou ainda uma curta-metragem em 35 mm, O Dia em que não matei Bertrand, baseada no conto homónimo de Sérgio Santanna.

Em 1963, durante a rodagem de Trumpet, Raoul Walsh contou a história a Louis Skorecki e falou-lhe das suas ambições para o filme. Ouçamos: "Pois bem, vejamos. Sabe, é uma história muito longa para contar. É a história de um jovem tenente, saído recentemente de West Point, e que enviam para o Arizona profundo, para o Fort Discovery, um posto muito avançado, em pleno território Apache. Estes Apaches atravessam a região inteira, roubam o gado, pilham os ranchos e matam as pessoas. Ele chega lá e encontra um forte em péssimo estado. E, portanto, resolve pôr tudo em ordem. A primeira coisa que faz, a primeira missão é trazer madeira para o forte para reparar os danos mais graves. Enquanto corta essa madeira na floresta, os Apaches atacam-lhe a colónia, roubam as carroças: há muito pânico, os seus soldados fogem. Ele vê-se sozinho, e parte. Depois de um ou dois dias a cavalo, encontra uma diligência desgovernada, cujo motorista foi morto pelos Índios. Dentro da diligência, há só um passageiro: uma jovem mulher que deixou o forte. Ela era casada com um tenente, e ele já tinha estado com ele. Vai em socorro dela e leva-a pelas montanhas, enquanto os Índios perseguem a diligência e os cavalos que querem recuperar. Ele passa um dia inteiro e uma noite com essa mulher. Depois, no caminho de volta para o forte, são surpreendidos por uma tempestade terrível. Procuram refúgio numa caverna, e é aí que têm uma grande cena de amor. Já no forte, o tenente escreve uma denúncia sobre a deserção dos seus homens e decide acabar de uma vez por todas com aquela desordem. Quer fazer deles verdadeiros soldados: e portanto começa a treiná-los. A pé, a cavalo, fá-los fazer uma série de exercícios tão puxados, que ao fim mal têm forças para se manter em pé.

"A cena de amor entre o tenente e a rapariga - que de resto ainda não filmei - é a cena mais importante do filme. Como em todos os meus filmes, toda a história gira à volta dessa cena... Este western que estou a fazer vai ser, acho eu, um óptimo filme. Tenho tudo o que preciso: centenas de índios e soldados, uma boa história, grande tela e tudo o resto... Espero muito dele.

"Sabe, o que é preciso tentar fazer no cinema, é apresentar uma grande variedade de elementos diferentes num filme, fazê-los entrar em acordo entre si, para que o filme seja construído um bocado como uma peça de música, uma sinfonia.

"Também gosto muito do trabalho de William Clothier neste filme. É o primeiro filme que faço com ele e é um excelente director de fotografia, especialmente em exteriores. Muitos dos nossos directores de fotografia são pessoas que não sabem trabalhar sem ser no estúdio. Ele, pelo contrário, é um homem duro. Adora trabalhar em exteriores e é por causa disso que a iluminação que fez para este filme é tão sensacional. O Lucien Ballard, por exemplo, também fazia uma fotografia a cores muito boa, mas sobretudo em interiores. A sua arte é notável particularmente nas mulheres. Quanto a Sid Hickox, que trabalhou muito comigo durante uns quinze anos, fazia um preto e branco muito bom, e tínhamos uma colaboração muito próxima."

Olhando para trás, para Walsh, para Distant Trumpet e para si próprio em Raoul Walsh et moi, Skorecki escreveu que "Na cantina, um chefe índio com nariz de courgette madura empanturra-se de beringelas ainda mais maduras e carne de lombo. Noutra mesa um cavalheiro californiano finge remover o pedaço de algodão que tapa desajeitadamente o seu olho morto. É um tique nervoso, apenas um tique. De vez em quando, Raoul Walsh, porque é dele que se trata, põe-se a esfregar freneticamente esse olho cego como se o quisesse arrancar da sua órbita invisível. Estamos a 13 de Agosto de 1963, no plateau da Warner, na rodagem de A Distant Trumpet, esse belo western intemporal que será o melhor dos últimos filmes dos cinco hollywoodianos de um só olho (dizemos isto, mas alguns dias, é Lang ou Ford que preferimos, noutros pensamos que é Tex Avery; por André de Toth ninguém se levanta).

"– Horatio, tens a certeza que foi em 1963?

"– Escuta Mamie, apesar de seres uma Stover estás a confundir 1964, o ano da estreia de Distant Trumpet, com a data da sua rodagem, nove meses antes, em 1963.

"– É verdade que ele não dirigia os actores dele, meu Hornblower querido?

"– Sim e não. Fingia não se preocupar com nada, como se fosse só um realizador qualquer encarregado de vigiar o bom caminho das operações. Sabia o que era um western, ele, e como nós não sabíamos que mais fazer, víamo-lo como um contramestre, se quiseres.

"– Horatio, exageras como sempre!

"– Estou abaixo da verdade verdadeira, queres dizer.

"– E Troy Donahue? E Suzanne Pleshette? Não foi ele próprio, se bem me lembro, de resto, que contratou esse casal de adolescentes que arrulhavam longe dos holofotes?

"– Aí, enganas-te outra vez. Ele dizia que eram dignos de Errol Flynn e de Virginia Mayo, tinha um ar sincero.

"– E se isso fosse apenas para desempenhar o papel de contramestre, para ser regulamentar com os seus patrões da Warner?

"– Aí, Mamie, acertaste no alvo. Mesmo aos sete anos, em 1963, eu achava suspeito esse entusiasmo que ele tinha pelo louro efeminado de Troy. Na verdade, ele só gostava do grande índio com o enorme nariz. Esse, não parava de o mostrar, tinha orgulho de o ter encontrado."

Até Terça-Feira!