quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

The Bells of St. Mary's (1945) de Leo McCarey



por João Palhares

Quando fez Os Sinos de Santa Maria, Leo McCarey já tinha em seu nome várias curtas com Stan Laurel e Oliver Hardy, dupla formada pelo próprio McCarey e conhecida entre nós como Bucha e Estica (algumas dessas curtas são Sugar Daddies, 1927; Should Marry Men Go Home?, Habeas Corpus e We Faw Down, de 1928; Liberdade, Wrong Again e Big Business, de 1929), um dos melhores filmes com os irmãos Marx (Duck Soup, 1933), um conjunto invejável de comédias bem sérias e bem subversivas (Ruggles of Red Gap, 1935; The Awful Truth, 1937; Once Upon a Honeymoon, 1942), um melodrama que se tornou a base para todos os chamados "filmes românticos" a partir dos anos sessenta (Love Affair, 1939) e um dos mais belos filmes do mundo (Make Way for Tomorrow, 1938). Também já tinha ganho rios de dinheiro e de Óscares com Going My Way (1944), primeira aventura do padre O'Malley interpretado por Bing Crosby, que cantava com os miúdos desse filme que "if you don't care a feather or a fig, you may grow up to be a pig." E foi ainda com o dinheiro de Going My Way que McCarey fundou a Rainbow Productions, que usou para produzir e fazer soar Os Sinos de Santa Maria (1945), continuação encantadora e arrebatadora do filme do ano anterior. E o filme que hoje vamos ver. 

“Se se produz uma coisa, outra coisa se desencadeia, inevitavelmente,” disse McCarey aos Cahiers. “Tal como o dia e a noite se sucedem, também os acontecimentos se encadeiam, e é sempre assim que desenvolvo uma história, com uma série de incidentes e de acontecimentos que se sucedem e se provocam.” A citação pode parecer uma tautologia, coisa em que qualquer realizador acredite e que ponha sempre em prática, motivação criadora para qualquer filme (e se se disser “qualquer bom filme”, talvez haja um fundo de verdade nisso), mas ganha maior sentido quando se sabe que McCarey começou em comédia ainda no estúdio de Mack Sennett, como supervisor de continuidade das histórias, tornando-se depois escritor de gags para Hal Roach. Como se sabe, o trabalho no estúdio de Mack Sennett (por onde passaram também Charles Chaplin, Roscoe Arbuckle ou Frank Capra) era feito em exteriores e a velocidade relâmpago, aproveitando tudo o que acontecesse na cidade durante o dia (entre corridas de carros, procissões comemorativas ou movimentações em massa variadas) com a construção de uma história à volta das imagens que se captassem. Os resultados nem sempre eram os melhores, na Keystone, mas ajudaram McCarey (como Chaplin, também, que cristalizou esses ensinamentos num método completamente livre e impensável quase para qualquer outro cineasta) a perceber que não era a trama de um filme que lhe interessava mas sim o encadeamento lógico da acção. Trabalhar as consequências do mais pequeno gesto, pegar numa dada situação e tentar descobrir o filme a partir das possibilidades que ela oferece, sem metas ou ideias preconcebidas. 

"Não se sabe nada sobre uma história até se começar a filmar," disse McCarey a Frank Nugent (o jornalista e crítico de cinema da revista Time que foi contratado pelos estúdios para deixar de dizer mal de filmes na imprensa, como acabou por descobrir quando viu que o deixavam num escritório sem nada para fazer). Vários dos actores que trabalharam com McCarey confessaram, numa altura ou noutra, não saber o que estavam a fazer durante a rodagem, dizendo também que havia constantes mudanças de diálogos, reescritas no dia anterior, e interrupções de trabalho quando o realizador chegava a um impasse criativo. Como com Chaplin, esses impasses eram interrompidos pelas grandes revelações, resultando certamente nos maiores cumes dramáticos dos seus filmes, cenas como a despedida dos Cooper na estação de comboios em Make Way for Tomorrow, a recitação do eterno “Gettysburg Address” de Abraham Lincoln por Charles Laughton em Ruggles of Red Gap, a descoberta do destino de Deborah Kerr por Cary Grant entre lembranças e atenção a recusas bizarras mas inevitáveis em An Affair to Remember, noutra milagrosa véspera de Natal. Além de serem tratados absolutos de realização, decididamente com os ângulos de câmara e o encadeamento de planos certos, estas cenas fazem-nos mergulhar num profundo oceano de ambivalências, tornando às vezes insuportável a sua revisão. Como escreveu Tag Gallagher no seu texto sobre Going My Way, “McCarey serve-se da câmara para registar o que não pode ver.” O impronunciável, acrescentaríamos. 

O mundo da igreja, das escolas paroquiais e os problemas quotidianos de padres e freiras dirão pouco a muita gente, além de não serem o que faz de Sinos de Santa Maria um filme fabuloso, por si. Não, o que o torna um filme fabuloso é a atenção que McCarey presta aos seus actores, mais uma vez, enquadrados longa e deliberadamente (e as palavras valeriam também para Liberdade, Ruggles of Red Gap, Make Way for Tomorrow, Once Upon a Honeymoon, Going My Way e An Affair to Remember) para nos revelarem de forma permanentemente renovável (e o efeito não esmorece em revisões) as consequências e as implicações de uma troca de olhares, para nos fazer entender pequenos mal-entendidos (o gato dentro do chapéu no princípio do filme), para nos tornar cúmplices de avanços e recuos ditados pela consciência. A interpretação e o percurso da enorme Ingrid Bergman neste filme é exemplar, nesse sentido. Podemos ver grande parte do filme iludidos, presos ao que sentimos em relação a certas fardas e uniformes, a certas movimentações e exercícios ordenados aos hábitos e aos votos de alguns, à austeridade que representam; mas quando a irmã Mary-Benedict desce as escadas para abandonar a escola, num plano muito longo e pausado que nos permite participar das suas hesitações e dos seus receios, o véu institucional cai irreparavelmente e situa-nos na mais simples e tocante das histórias e das relações entre seres humanos. Com o grande plano também muito longo e muito revelador sobre o padre O'Malley de Bing Crosby, onde se intersectam todos os grandes e pequenos gestos deste grandioso filme, impelindo-o ao gesto que dá sentido a toda esta aventura, dá-se o milagre. 

Hoje pode-se chamar-lhe "um milagre de Natal".

quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

72ª sessão: dia 19 de Dezembro (Terça-Feira), às 21h30


Durante o grande ciclo do cinema americano, falhámos um dos seus grandes vultos, Leo McCarey. Também falhamos Friedrich Murnau, Allan Dwan, Andre De Toth, Michael Curtiz, Billy Wilder, William A. Wellman, George Cukor, Jean Renoir, Josef von Sternberg, Barbara Loden, Charles Laughton, William Wyler, Victor Sjöström, Joseph L. Mankiewicz, Tod Browning, Edgar G. Ulmer, Hugo Fregonese, James Whale, Rouben Mamoulian, Ida Lupino, Edward Ludwig, Max Ophüls, Richard Brooks, John M. Stahl, Stanley Donen e Blake Edwards, para nos ficarmos só pelos mais sonantes, mas faremos justiça a McCarey com a exibição de The Bells of St. Mary's, que será a nossa próxima sessão.

Bells of St. Mary's (Os Sinos de Santa Maria, entre nós) é a continuação de Going My Way, filme da glória de McCarey e primeira aventura do Padre O'Malley de Bing Crosby. Nele se contemplam as vidas e os desafios quotidianos de padres e madres superioras, com uma atenção e um carinho que nunca deixa de nos tocar nem de nos surpreender. A prova suprema para um grande cineasta é fazer com que os seus espectadores se interessem por mundos por que não sentem grande afinidade, despojar as instituições dos seus símbolos e apresentar os seus representantes como seres de carne e osso. Como nós, caso o tenhamos esquecido. Aposta ganha: o feitiço é lançado e ficamos convertidos. "So proudly ring out, while we sing out, hail, hail, hail!"

Robin Wood, que tanto nos continua a inspirar, era um grande admirador do realizador americano e escreveu no St. James Film Directors Encyclopedia organizado por Andrew Sarris que "os anos de formação de McCarey como artista foram passados a trabalhar com os grandes palhaços do período do mudo tardio/sonoro inicial: Harold Lloyd, Mae West, W.C. Fields, os irmãos Marx e (especialmente) Laurel e Hardy, de quem foi "supervising manager" durante muitos anos, realizando pessoalmente duas das suas melhores curtas (Liberty e Wrong Again). A sua carreira posterior abrange (com igual successo) a extensão inteira da comédia americana, da screwball (The Awful Truth) à romântica (An Affair to Remember). A característica própria do realizador parece ter sido um compromisso para com uma anarquia espontânea e individualista que nunca abandonou inteiramente, acompanhado por um ceptismo consistente em relação a instituições e formas de organização social restritivas, um cepticismo que produz atrito e contradições até dentro dos projectos aparentemente mais inócuos e conservadores. Normalmente, Going My Way e The Bells of St. Mary's são totalmente rejeitados pela intelligentsia como pios e sentimentais, simplesmente, mas a representação deles do Catolicismo não é nem simples, nem fácil, nem acrítica, e é fácil de confundir qualidades como a ternura e a generosisade com sentimentalismo, em contextos em que se espera encontrá-lo de qualquer forma (como filmes de Hollywood sobre padres cantores). Claro que a celebração do individualismo é uma força motriz da ideologia americana, mas, empurrado longe o suficiente em certas direcções, pode expor contradições dentro dessa ideologia: a sua resposta opressiva a muitas formas de individualidade, por exemplo."

Louis Skorecki, que entrevistou McCarey durante a sua digressão com Serge Daney pela América, escreveu para o Libération sobre o realizador e o filme da nossa próxima sessão (e foram duas coisas que o ocuparam bastante, como podemos ver aqui): "Menos conhecido que Frank Capra (em quem a sua carreira faz muitas vezes pensar), Leo McCarey é sem dúvida o maior experimentador, em termos de comédias e de melodramas, da história do cinema. Temos mais uma prova disso com estes fabulosos Sinos de Santa Maria de 1945, em que a religião se mistura alegremente ao mais radical humanismo. Antigo assistente do subvalorizado Tod Browning entre 1918 e 1923, McCarey inventa a parelha Laurel e Hardy, supervisiona o seu genial Putting Pants on Philip (1929), assina o melhor filme dos irmãos Marx, Duck Soup (1933), antes de realizar, de Ruggles of Red Gap (1935) a An Affair to Remember (1957), passando por Good Sam (1948), vinte obras-primas absolutas que juntam inextricavelmente o riso às lágrimas.

"Voltando a pegar na bela personagem do Padre O'Malley, esse padre cantor que vai tão bem a Bing Crosby e tinha lançado com sucesso em Going My Way, dois anos antes, McCarey confronta-o com a intransigência de um promotor imobiliário e com a ingenuidade de uma freira adorável, interpretada por Ingrid Bergman, que Selznick empresta à RKO para a ocasião. O cineasta experimenta aqui com felicidade vários dos seus «truques» familiares. Lembramo-nos dessas cenas mágicas em An Affair to Remember em que os amantes, Deborah Kerr et Cary Grant, jantavam de costas um para o outro sem se darem conta, separados por uma fina divisória. Aqui, o cineasta divide o seu plano em profundidade, brincando um gatinho malicioso com o chapéu de palha de Bing Crosby, igualmente inconsciente do que se está a passar nas suas costas. Nos dois casos, é o riso da assistência que avisa, pouco a pouco, o herói da comédia que acontece sem o seu conhecimento. 

"No meio destes grupos de freiras surrealistas, McCarey instala ao mesmo tempo um clima de alegria e essa sensação de mal-estar (o desconforto admirável de que falava Noames em 1965 nos Cahiers du Cinéma) que é o centro de todos os seus filmes. Ainda como em An Affair to Remember, uma heroína promete curar, in extremis. Não por amor a um homem mas por amor a Deus. É sublime."

No Dictionnaire du Cinéma, Lourcelles escreve que "depois do triunfo imprevisto de Going My Way, (O Bom Pastor), McCarey, não encontrando argumento digno desse filme, decide dar-lhe uma continuação. Retoma a mesma personagem do padre interpretado por Bing Crosby e, desta vez, envia-o para cumprir o seu sacerdócio entre religiosas num lugar exactamente igual ao de Going My Way: um oásis de calma e serenidade situado no coração da grande cidade. Nesse eremitério, além disso ameaçado de extinção, toda a espécie de problemas humanos, que não perderam nenhuma da sua actualidade (separação dos pais, sentimento de abandono das crianças, fracasso escolar, etc.) vão procurar e encontrar uma solução pacífica e harmoniosa. Os Sinos de Santa Maria é um Going My Way menos movimentado no qual a ênfase posta sobre o aspecto feminino da vida monástica e sobre as virtudes marianas do catolicismo dá à obra uma doçura e uma limpidez extra. Uma dramaturgia versátil, invisível, superiormente hábil e inventiva, mostra a acção sob a forma de um rosário de cenas muito longas que parecem independentes umas das outras por terem a sua duração, conteúdo e emoção próprios. Na verdade, elas estão profundamente ligadas entre si pela sua inspiração e finalidade comuns : pôr em prática uma concepção sorridente da espiritualidade e da bondade como catarse permanente, como remédio providencial para todos os males físicos e morais da humanidade. Cada uma dessas cenas (o discurso inaugural de O’Malley diante de uma assembleia de freiras às quais a visão de um gato a brincar com o chapéu do padre faz rir ; a lição de boxe dada a uma criança pela irmã superiora ; a representação do Natal interpretada por bebés, etc.) parece uma improvisação genial, criada no presente puro da rodagem por um realizador cuja felicidade de expressão (e em McCarey esta fórmula encontra verdadeiramente todo o seu significado) é igualada apenas pela firmeza das convicções. Menos abundante que em Going My Way, a música, seja de inspiração religiosa ou profana, banha o filme. O padre O’Malley dirá a propósito de um personagem, exprimindo aí directamente a opinião de McCarey : «Eu amo qualquer pessoa que ame a música.» A personagem interpretada por Bergman foi inspirada numa das tias de McCarey, co-fundadora do convento do Imaculado Coração em Hollywood, e ele deu o nome dela, Benedict, à heroína. Bergman encontra aqui o seu mais belo papel, no sentido em que não se imagina ninguém capaz de o interpretar no lugar dela e de o levar a tal grau de florescência e plenitude. A cada visionamento, o filme situa o espectador nessa zona afectiva de si próprio em que o riso e as lágrimas comunicam, em que a distância entre si e as personagens é abolida, porque entra em contacto sem esforço com o que as personagens têm de melhor e mais benéfico dentro delas. De qualquer maneira, os filmes de McCarey não têm outro objectivo : «Gosto que se ria, gosto que se chore,» dizia ele, «gosto que a história conte qualquer coisa e quero que o público se sinta mais feliz à saída da sala do que estava quando entrou.» 

"Nota: Pode-se ler no fim do capítulo VIII da autobiografia de Ingrid Bergman redigida parcialmente na terceira pessoa («Ma Vie», Fayard, 1980) : «Foi um filme feliz, durante a rodagem do qual se desenrolou a tradicional entrega dos Óscares atribuídos pela Academia das Artes.» No ano anterior, ou seja, em 1943, Ingrid tinha sido designada pela sua interpretação como Maria em Por Quem os Sinos Dobram, mas tinha sido suplantada por Jennifer Jones (A Canção de Bernadette). Agora era «nomeada» por Meia Luz. Antes de ser proclamada a Melhor Actriz, Bing Crosby e Leo McCarey obtiveram respectivamente o Óscar de Melhor Actor e de Melhor Realizador por O Bom Pastor. Quando recebeu, por sua vez, o seu Óscar, Ingrid agradeceu à assembleia nestes termos : «Estou profundamente agradecida por esta recompensa. E estou particularmente feliz por a receber neste momento, porque estou agora a rodar um filme chamado Os Sinos de Santa Maria com o Sr. Crosby e o Sr. McCarey e tinha mesmo receio que ao me verem chegar ao plateau de mãos vazias, amanhã, não me dirigissem mais a palavra!»"

Até Terça-Feira!