sábado, 28 de maio de 2016

16ª sessão: dia 31 de Maio (Terça-Feira), às 21h30


E o mais belo e aflito filme do enorme realizador alemão Douglas Sirk, The Tarnished Angels, chega a Braga na próxima Terça-Feira, dia 31. Filme em que não é possível esquecer a arrebatada, desesperada e comovente personagem de Burke Devlin, interpretada por Rock Hudson. É ele quem se vai interessar pelos perdidos com causa que se entregam às mais indizíveis paixões, sacrificando tudo pela redenção absoluta e assim com vista para o abismo mais fundo. Um dos mais belos personagens de todo o cinema.

O filme será antecedido por uma apresentação em vídeo por Mário Jorge Torres, grande especialista em Sirk e literatura americana, gravada especialmente para a ocasião.

Sirk, quando questionado por Jon Halliday em Sirk on Sirk sobre a origem do título do filme, respondeu que "foi pensado por alguém no meio do departamento de vendas da Universal. É bom. Pylon não funciona como título. Eu lembro-me que quando o andava a mostrar por aí, as pessoas diziam sempre, 'O que é este título Pylon? Soa a qualquer coisa relacionada com electricidade.' Zugsmith (o produtor) queria chamar-lhe Sex in the Air - embora quando Zuckerman (o argumentista) lhe disse que se ia chamar The Tarnished Angels, a primeira reacção de Zugsmith foi 'As camas são na terra, não no céu.'"

Tag Gallagher, crítico americano conhecido principalmente pelos seus livros sobre John Ford e Roberto Rossellini, mas que também se debruçou sobre as obras de Edgar G. Ulmer, Samuel Fuller, King Vidor ou Max Ophüls, escreveu que "só há dois temas em Sirk: personagens que impõem com sucesso as suas Vontades apesar da dor (melodrama branco), e personagens que são dominadas pelas suas Vontades, que como Fausto se vendem à ânsia (melodrama negro)." E que "o melodrama branco e o negro colidem em The Tarnished Angels. O seu trio faustiano ambulante trocou as almas por uma espécie de cio permanente, um delírio de estar com o cio: Jiggs (Jack Carson) a perseguir LaVerne (Dorothy Malone) a perseguir Roger (Robert Stack) a perseguir a própria ânsia, sentindo-se todos culpados e rejeitados. LaVerne está viciada em fazer o que não quer fazer: saltos de pára-quedas. Quando Roger (“Um homem conquistado pela máquina voadora, um homem sem sangue nas veias”) se auto-destrói (como Kyle e Fedor, mas imitando um herói), o impulso de imitação de LaVerne é atirar-se a si mesma para as mãos de Satanás."

"Mas agora Burke (Rock Hudson), o repórter alcoólico quase engolido pela orgia negra deles, canaliza a sua ânsia por LaVerne para desejos mais nobres. Confrontado com as contínuas rejeições de LaVerne e as afrontas ao seu orgulho e à sua pessoa, Burke re-afirma persistentemente o triunfo da Vontade, como Dean Hess ou Thérèse. Graças a ele The Tarnished Angels, que como There's Always Tomorrow (1956) e Summer Storm pareciam ser sobre um homem incerto que anda em círculos, acaba por ser a parábola duma mulher que encontra outra vez a sua Vontade pelo bem. "No crime como no amor só existem os que fazem e os que não se atrevem."

E Rainer Werner Fassbinder, o realizador alemão mais próximo de Sirk e que tinha por ele a mais profunda das admirações, escreveu que "The Tarnished Angels (1958) é o único Sirk a preto e branco que consegui ver. É o filme em que teve mais liberdade. Um filme incrivelmente pessimista. É baseado numa história de Faulkner que infelizmente não conheço. Aparentemente Sirk profanou-a, o que lhe fica bem.

"O filme, como La Strada, mostra uma profissão moribunda, só que não de uma forma tão pretensiosa. Robert Stack foi piloto na Primeira Grande Guerra. Nunca quis fazer mais nada senão voar, e por isso é que agora participa em festivais aéreos onde circunda pilones. Dorothy Malone é a mulher dele; ela faz demonstrações de saltos de pára-quedas. Mal conseguem viver. Robert é corajoso mas não sabe nada sobre máquinas, portanto tem um mecânico, Jiggs, o terceiro na equipa deles, que está apaixonado por Dorothy. Robert e Dorothy têm um filho, que Rock Hudson conhece quando está a ser gozado pelos outros aviadores: 'Quem é o teu pai hoje, miúdo? Jiggs ou . . . .' Rock Hudson é um jornalista que quer escrever uma obra fantástica sobre estes ciganos do ar que têm gasóleo de cárter nas veias em vez de sangue. Acontece que os Shumanns não têm sítio nenhum onde ficar portanto Rock Hudson convida-os para sua casa. Durante a noite Dorothy e Rock conhecem-se um ao outro. Temos a sensação que estes dois teriam muita coisa a dizer um ao outro. Rock perde o trabalho dele, um dos aviadores despenha-se na corrida, é suposto Dorothy prostituir-se a si própria por um avião uma vez que o de Robert avariou. Rock e Dorothy afinal não têm assim tanta coisa para dizer um ao outro, Jiggs repara um avião avariado, Robert vai nele para cima e morre.

"Mais nada a não ser derrotas. Este filme não é nada senão uma acumulação de derrotas. Dorothy está apaixonada por Robert, Robert está apaixonado por voar, Jiggs também está apaixonado por Robert, ou é Dorothy e Rock? Rock não está apaixonado por Dorothy e Dorothy não está apaixonada por Rock. Quando o filme nos faz acreditar por um momento que estão, na melhor das hipóteses é uma mentira, mesmo quando ambos pensam por alguns segundos, talvez . . . ? Então perto do fim Robert diz a Dorothy que depois desta corrida vai desistir de voar. Claro que isso é exactamente quando morre. Seria inconcebível que Robert se pudesse envolver com Dorothy em vez da morte.

"A câmara está sempre em movimento no filme; exactamente como as pessoas andam às voltas, finge que está mesmo alguma coisa a acontecer. Na verdade está tudo tão acabado que mais valia desistir toda a gente e deixarem-se enterrar. Os travellings no filme, os planos de grua, as panorâmicas! Douglas Sirk olha para estes corpos com tanta ternura e brilho que começamos a pensar que alguma coisa deve estar errada por estas pessoas serem tão perturbadas e, ainda assim, tão gentis. O que está errado prende-se com o medo e a solidão. Raramente senti tanto o medo e a solidão como neste filme. O público senta-se no cinema como o filho dos Shumanns no carrossel: podemos ver o que está a acontecer, queremos chegar-nos à frente e ajudar, mas, pensando no assunto, o que é que um miúdo pequeno pode fazer perante um avião em queda livre? São todos culpados pela morte de Robert. É por isso que Dorothy Malone fica tão histérica, depois. Porque sabia. E Rock Hudson, que queria um furo. Logo que o consegue começa a gritar com os seus colegas. E Jiggs, que não devia ter reparado o avião, senta-se a perguntar 'Onde é que está toda a gente?' Pena que nunca tenha notado que nunca houve mesmo ninguém. Estes filmes são sobre a maneira como as pessoas se enganam a si próprias. E porque é que tens de te enganar a ti próprio. Dorothy viu Robert pela primeira vez numa fotografia, um poster dele como piloto corajoso, e apaixonou-se por ele. Claro que Robert não era nada como a fotografia dele. O que é que se pode fazer? Enganares-te a ti próprio. Aí está. Dizemos a nós próprios, e queremos dizer-lhe a ela, que não tem obrigação de continuar, que o amor dela por Robert não é mesmo amor. Qual seria o objectivo? A solidão é mais fácil de aguentar se mantivermos as nossas ilusões.

"Aí está. Eu acho que o filme mostra que isto não é assim. Sirk fez um filme em que há acção contínua, em que está sempre qualquer coisa a acontecer, a câmara está sempre em movimento, percebemos imenso sobre a solidão e como ela nos faz mentir. E quão errado é que mintamos, e quão estúpido."

Até Terça-Feira!

quarta-feira, 25 de maio de 2016

Apresentação de Cidade nas Trevas, por Francis Vogner dos Reis

While the City Sleeps (1956) de Fritz Lang


por João Palhares

Sabe-se que Fritz Lang, tal como Alfred Hitchcock (e não é a única coisa que os aproxima), coleccionava recortes de jornais como forma de inspiração e busca de material e temas para os seus filmes. Quando Peter Bogdanovich, no seu livro de entrevistas ao realizador austríaco (Fritz Lang in America) lhe perguntou porque é que gostava de trabalhar a partir de jornais, Lang respondeu-lhe que “Eu penso que os filmes são não apenas a arte deste século, mas, para impôr uma palavra de Abraham Lincoln, a arte ‘do povo, para o povo, pelo povo.’ Foi inventada mesmo na altura certa – quando as pessoas estavam prontas para uma arte das massas. (Sabe, por acaso, o que é que fazia mesmo propaganda ao modo de vida americano? Filmes americanos. Goebbels percebeu o enorme poder dos filmes como propaganda, e eu temo que mesmo hoje as pessoas não saibam que meio de propaganda tremendo os filmes podem ser.) Mas de qualquer maneira, onde é que vamos buscar o nosso conhecimento da vida? Aos factos, não à ficção. Naturalmente, podem-se aprender uma data de coisas em romances e em peças, mas é sempre visto através dos olhos doutro homem. Não se esqueça que nesses dias não havia televisão: hoje quando há um motim, nós vêmo-lo; Pelo Vietname, podemos ver o que é uma guerra na selva. Antes disso, as actualidades levavam bastante tempo a chegar aos cinemas, e só os jornais é que eram notícia fresca. 

“Um realizador devia saber tudo. Um realizador devia-se sentir em casa num bordel – o que é muito fácil – mas também se devia sentir em casa na Bolsa – o que já é um bocado mais difícil. Devia saber como se comporta o duque de Edimburgo, como se comporta um trabalhador e como se comporta um gangster. Agora, eu diria que é impossível aprender isto tudo por experiência. Mas a melhor coisa a seguir a isso é ler jornais – mesmo se não forem objectivos, pode-se aprender a separar as coisas objectivas das subjectivas.” 

Não é fácil saber se o que se passa em While the City Sleeps é tudo verdade, se é mesmo um documento dos processos e dos canais do chamado quarto poder, que não temos capacidade para o julgar. O que é verdade é que tem essa ambição e pinta um quadro imenso da nossa sociedade, de uma enorme abrangência e que se pode comparar, por exemplo, ao que Otto Preminger fez poucos anos depois em Advise & Consent e The Cardinal ou o que fez Jean- Claude Brisseau em Choses Secrètes, de 2002. Quatro filmes sobre o poder a uma grande escala e que testemunham o interesse do cinema no que Jean-Luc Godard chamou de “os grandes temas”, na investigação e na compreensão do presente, da teia complexa dos processos e instituições que nos rodeiam e nos regem e que, afinal, conhecemos apenas pela rama. Em tempos de especializações nada mais salutar do que almejar ao impossível e tentar compreender o mundo por inteiro. 

Mas o filme de Lang não quer saber só disso e ainda bem. Precisa de mostrar o que faz o mundo ao interior do homem, de perguntar se não o corrói por dentro e se não o transforma. Se o olhar de um pivot de telejornal quando vê o trinco da porta da namorada não é igual ao de um assassino a fazer o mesmo quando entrega as compras a uma mulher que não conhece e, a seguir, a mata. Se essa cena serve para a personagem de Dana Andrews descobrir como é que essa primeira morte aconteceu, o relevo dado ao olhar de Andrews não pode ser inocente. Como nada é inocente neste filme tão perverso e que vai fundo na tão difícil missão de saber o que vai na cabeça dos homens quando caem nas ciladas da ambição. Talvez seja essa a mais difícil das missões.

quinta-feira, 19 de maio de 2016

15ª sessão: dia 24 de Maio (Terça-Feira), às 21h30


E Fritz Lang, um dos maiores entre os maiores do século XX, chega ao nosso cineclube com um dos seus filmes menos vistos e discutidos, While the City Sleeps, que segundo o grande João Bénard da Costa, "é o filme mais perverso da obra de Lang. Com o seu plano mais sombrio: Vincent Price e os pinhões."

Francis Vogner dos Reis, crítico de cinema, argumentista e mestre em Meios e Processos Audiovisuais na ECA-USP, colaborador de uma série de revistas brasileiras e outros países, curador de mostras de cineastas como Jerry Lewis e Jacques Rivette, que fez parte da equipa de curadoria/programação das mostras da Universo Produção: Mostra de Cinema de Tiradentes, CineOP e CineBH, gravou o vídeo de apresentação que antecederá esta sessão.

Jacques Lourcelles, possuído pelo filme, dedicou-lhe um longuíssimo e apaixonado texto no seu Dictionnaire du Cinéma: "Penúltimo filme americano de Lang. Um dos pontos mais altos da sua carreira; na nossa opinião, o seu melhor filme. Baseado num romance, mas sobretudo baseado em relatos de notícias variadas recortadas de jornais e que ele tinha o hábito – mantido até ao fim da sua vida, embora já não trabalhasse mais - de coleccionar, Lang escreveu o guião minuciosamente com Casey Robinson e será um dos mais sofisticados da sua carreira. A preparação não menos minuciosa da rodagem e que permitiu manter, sendo o orçamento do filme bastante razoável, os intérpretes prestigiosos reunidos no conjunto (George Sanders, Ida Lupino, Thomas Mitchell, Rhonda Fleming, etc.) só quatro ou cinco dias cada um, quando temos a impressão de os ver presentes ao longo de toda a intriga. (Só a Dana Andrews foi concedido um número de dias ligeiramente superior.) A ambição do filme é imensa, a perfeição do seu estilo, cujos elementos desdenham dar nas vistas, sóbria e eficaz. Lang quer dar a ver um panorama bastante vasto da sociedade americana, fundada aos seus olhos na competição e no crime. Como a competição e o crime se tornaram indissoluvelmente ligados, é este o seu tema, a partir do qual surgem as características do seu estilo, obedecendo todas a uma estética da necessidade que nenhum outro cineasta levou tão longe. Criador solitário e exigente, Lang não está totalmente à parte da corrente americana mais inovadora. While the City Sleeps integra e até interioriza de alguma maneira a revolução trazida no ano anterior ao relato policial por Kiss Me Deadly. Doravante já não há bons nem maus nos enredos. A ferocidade da competição trouxe todas as personalidades ao mesmo nível, o grau zero da moral e da consideração pelos outros. Se examinarmos à lupa (é o que faz o filme) o comportamento de cada uma das personagens envolvidas na acção, vemos ou que eles não têm ideia nenhuma do que lhes poderia servir de moral, ou então – e ainda é pior – que eles sacrificam à sua ambição quaisquer escrúpulos que pudessem ter, comportamento considerado como normal na sociedade em que estão inseridas. A partir daí, o criminoso que os jornalistas procuram com tanto ardor para conseguir um cargo torna-se não só a sua presa, mas também o seu reflexo. Às vezes é mais digno de piedade do que eles. Lang leva aqui a um grau de perfeição absoluta a sua arte das ligações necessárias ou mesmo fatais entre as sequências. Seja por um elemento de diálogo, por um elemento visual, por uma personagem ou pelo efeito de uma causa dramática específica, as sequências encadeiam-se umas às outras a um ritmo e a uma progressão lógica que parece obedecer a alguma fatalidade, que na verdade não é senão a consequência das acções cruzadas de cada um dos protagonistas ocupados em suplantar, a usar ou a destruir o próximo – grande teia de aranha onde por fim todos se encontram presos. Requinte supremo da mise en scène: aquelas divisórias de vidro que, dentro dos escritórios do jornal, separam as personagens permitindo-as verem-se umas às outras e dão à história a possibilidade de executar várias sequências frontais, ligadas numa interacção permanente. Este entrelaçado magistral é visto na luz soberba de uma chapa metálica cortada a bisturi. Depois de muitos avatares e metamorfoses, redesenhados através da experiência e do estilo de um cineasta meticuloso e genial, o microcosmos expressionista reaparece aqui – talvez pela última vez – lavado de todas as suas histórias, dotado de uma pureza expressiva cuja abstracção e concentração fascinam. É um pequeno pedaço de inferno onde as criaturas estão ocupadas, achando-se livres e activas, sob o olhar de um cineasta que não procura outra coisa senão ver bem e dar bem a ver a realidade, mas mantendo o ponto de vista de Sirius sobre todas as coisas.

Nota: O formato do filme coloca, como com Beyond a Reasonable Doubt, o filme seguinte de Lang, um problema complicado que só podemos resolver apelando a um ponto de vista estético. O filme, não rodado em Cinemascope, foi explorado originalmente em Superscope (formato largo utilizado na RKO e resultante de um tratamento de imagem efectuado em laboratório) e depois em formato normal. Qual é o melhor? A nosso ver, é o formato largo, o único em que, por exemplo, os movimentos de câmara ou o cenário do jornal encontram o seu impacto verdadeiro. Mesmo que o Superscope tenha sido “fabricado” em laboratório, Lang sabia que o filme ia estrear em ecrã largo e a sua mise en scène foi pensada em função disso mesmo. A mesma nota para Beyond a Reasonable Doubt em que, para citar apenas essa, a primeira sequência do condenado à morte a avançar em direcção à cadeira eléctrica, é evidentemente concebida para o formato largo. A análise de imagens do filme revela que um certo número de sequências ou fins de sequências foram suprimidos da montagem final num propósito de constrição, como evidencia de resto toda a concepção do filme. A ausência de uma dessas sequências é contudo um pouco lamentável: a do pequeno conluio entre James Craig, Rhonda Fleming e Ida Lupino (de que vemos os começos no pátio interior (palier) do apartamento de Sally Forrest) e que se situava no apartamento de James Craig. Essa lacuna torna uma das sequências seguintes um pouco enigmática (aquela em que James Craig é condescendente com Vincent Price e em que Ida Lupino anuncia a Sanders e a Mitchell que estão empatados em segundo lugar) e tira sobretudo uma pequena parte da unidade à construção geral do filme, precisando esta construção efectivamente que cada uma das personagens mais importantes tenham num momento ou noutro uma relação com todas as outras. Seria só nessa sequência que a relação Rhonda Fleming-Ida Lupino podia existir. Testemunhos amistosos e favoráveis a Lang vindos de colaboradores do seu período americano dos anos 50 são relativamente raros. O do operador Ernest Laszlo é, neste contexto, ainda mais precioso. Ele confessou a Frederick W. Ott (in “The Films of Fritz Lang”, The Citadel Press, Secausus, N.J. 1979): “Fritz Lang era o artista e o técnico completo, nesse sentido superior mesmo a William Dieterle. Eu tive claramente a impressão que ele sabia todos os aspectos da criação dos filmes. Podia ser, claro, um mestre-de-obras bem duro, mas se fizesses o teu trabalho e mostrasses entusiasmo, ele tornava-se o melhor amigo que já tiveste. Eu admirava o seu profissionalismo, como a maior parte dos intérpretes e técnicos. Houve alguns momentos difíceis, principalmente com Dana Andrews e John Barrymore, Jr., mas no essencial a rodagem correu sem conflitos”. Ver também o testemunho do montador Gene Fowler, Jr. in Alfred Eibel: “Fritz Lang”, Présence du Cinéma, 1964."

Até Terça-Feira!

quarta-feira, 18 de maio de 2016

The Man from Laramie (1955) de Anthony Mann



por José Oliveira

The Man from Laramie é o culminar de uma série de Westerns arrancados com ferros à pedra por Anthony Mann e interpretados duramente por James Stewart. No espaço mítico e desmesurado do velho Oeste a querer ser novo a mata-cavalos as perenes questões da ganância, da maldade e da justiça falam com a natureza dos seres e das suas pulsões originais, inafastáveis e de utópica alienação, palco onde a impassibilidade da natureza e de todas as coisas rodeantes serve de testemunha e de eco para a batalha e para o ajuste prometidos de longe a longe. Importa não esquecer os restantes filmes feitos pela dupla, de Thunder Bay a The Glenn Miller Story, que tanto evidenciaram as questões das guerras dormentes como das verdades intrínsecas, isto para não se ir aos filmes com Gary Cooper ou com Henry Fonda, bifurcações manejadas ou cruéis destinos. Em todos eles a paixão e os valores a serem repostos nos devidos lugares foram uma e a mesma coisa – e toda a demanda e desenlace do filme que vamos ver o provam, sem romantismos que não o estraçalhante e generoso caminho cedido ao próximo. 

Variação de King Lear e continuação da dramaturgia láctea de William Shakespeare (suprema também a importância do grande argumentista Philip Yordan que com Mankiewicz ou Dmytryk muitas vezes perguntou quem era quem), Mann coloca tudo ao nível do mineral, da poeira e dos rostos e corpos empedrados pelo sentido de missão. Will Lockhart é alguém que vem mesmo de longe pois sempre sentiu como sendo a sua casa o lugar do presente, e acompanhado pelo parceiro (Charley, por Wallace Ford, belíssima personagem e actor) que como ele pertence à terra toda e ao enleante correr do tempo, carrega consigo o indesculpável da maquinação humana. Nos seus olhos, na sua contemplação, no seu ritmo e respirar totalmente despidos, abraça a fúria irracional do amor. Chega ao Novo México, mas poderia ser ao extremo oposto, para encontrar o poder absoluto, a fenda irreparável dos seios familiares forjados a sangue e a ouro, a pertença e a conquista a preto e a branco, o mal escondido no recôndito mais sedutor - eternas contendas nas quais a fidelidade e a entrega são reversos da medalha da loucura e da ambição. 

É ditado antigo: um homem ferido de morte e com tal razão clara volve-se no mais selvagem entre mil e no mais perigoso animal à face ou nas entranhas do universo. Will Lockhart, desconfiando, só com o cheiro da ignominia e do instinto primitivo apurados para desmascarar o perfume que fede, é um desses desamarrados, muito antes de a narrativa chegar ao ecrã. E quando todos começam a perguntar o que faz mover tal raiva e tal obsessão, as figuras femininas tornam-se mulheres completas e estátuas sacras, o reino mineral a fazer-se carne e aura. São elas, a nova e a velha, ambas sedentas e pacificadas, separadas pelos séculos e unidas na fonte primordial da nascença, que vão resgatar e orientar a luz essencial – a junção sempre a tempo dos velhos ou o crepúsculo antes do The End que promete todas as primaveras que o vociferar fatalista da tragédia em explanação não permitiu experimentar. 

Fortes oposições estéticas e morais em desenvolvimento: a indiferença etérea e seca da paisagem; pinturas encarnadas e douradas do momento abissal em revelação. Na cena que incendeia irremediavelmente a cólera - passada num mar de sal entre humilhações supremas e fraternidade vilipendiada – ou naquela em que no centro do mundo e no meio do nada esse amigo imediato de Lockhart que antes lhe disse que só trocaram umas dez palavras mas que logo o conheceu e logo gostou dele o protege e se deixa proteger – cena que rima com toda a disponibilidade gratuita dos amantes – entre a infinita profundidade de campo exterior recortada sem limites e a fertilidade das salas e dos quartos onde se selam os pactos e se aproxima a temperatura do sangue, Mann, encenador sem meias medidas que estica as horizontais aos limites da perdição e o dentro ao altar de todas as ousadias, coloca geometricamente nas formas as vastas questões abstractas para elas se tornarem precisas nas respostas e no fundo. Vendo-se tudo tão bem pela lente e pelo movimento atento, liberto no espaço e dirigindo-se à matéria, chega-se à essência e ao coração. The Man from Laramie é absolutamente moderno e revolucionário, arcaico e longínquo.

sexta-feira, 13 de maio de 2016

14ª sessão: dia 17 de Maio (Terça-Feira), às 21h30


De 1950 a 1955, James Stewart e Anthony Mann colaboraram em cinco westerns essenciais para a evolução do género, re-inventando relações, personagens, paisagens e destinos.

Desse ciclo fazem parte Winchester '73, Bend of the River, The Naked Spur, The Far Country e o filme que vamos exibir para a semana, The Man from Laramie, o primeiro filme que Mann rodou em Cinemascope.

Dissertanto sobre o western numa entrevista a Christopher Wicking e Barrie Pattison publicada na revista Screen, Anthony Mann confessou que o género "te liberta, podes cavalgar nas planícies; podes captar os céus expostos ao vento; podes libertar o teu público e levá-lo a sítios que eles nunca imaginariam.

"E, mais importante - liberta as personagens. Elas podem ser mais primitivas; podem ser mais gregas, como o Édipo Rei ou a Antígona, percebe, porque se está a lidar outra vez com uma lenda ampla. É isto o que eu adoro em fazer filmes, e mesmo aquilo que eu defendo."

Sobre Mann e sobre as relações entre as suas personagens e os heróis de Shakespeare, o Rei Lear em particular, Robin Wood escreveu que "A relação entre The Man from Laramie e a peça de Shakespeare talvez não seja imediatamente óbvia, mas podem-se encontrar muitos paralelos aqui, não só na personagem de proprietário de fazenda orgulhoso e dogmático de Crisp mas também na trama e na acção, que envolve dois filhos, um adoptado e de confiança só até certo ponto (Arthur Kennedy), outro impiedoso, mimado, e perto da psicopatia (Alex Nicol), que o enganam e que o traem. Mas este Lear também vira cego, como o duque de Gloucester, e a própria cegueira de Gloucester na peça é então transferida, inequivocamente, para o disparo à queima roupa da mão de James Stewart pelo filho psicopata (a cena segue Shakespeare de muito perto: a mão é mantida no sítio por “criados”/trabalhadores de fazenda, que ficam depois chocados com o que foram obrigados a fazer; logo que Nicol vira as costas e se vai embora, dois deles ajudam Stewart a montar no cavalo, como Gloucester foi ajudado por criados compreensivos). O Lear de Crisp também tem a sua leal Cordélia, aqui uma fazendeira de meia idade (Aline MacMahon) que o leva embora no fim, cego e dependente, humilhado."

Jacques Lourcelles, no Dictionnaire du Cinéma, escreveu: "Último dos cinco westerns de Anthony Mann interpretados por James Stewart. Mann conclui aqui uma fabulosa série de filmes sintetizando-a, mas sobretudo acentuando algumas das suas linhas de força e, entre elas, principalmente duas: a violência selvagem, mesmo sádica, que caracteriza as relações entre certas personagens, o aspecto neurótico do herói encarnado por James Stewart. A bem dizer, a neurose de Will Lockhart é gerada tanto pelo seu destino como pelo seu carácter, e o essencial da acção do filme vai consistir em mostrar os esforços desta personagem em cumprir o seu destino, para depois se libertar renunciando à sua vocação de vingador. Diferença essencial em relação aos outros filmes do ciclo: a ausência da noção de itinerário, no sentido espacial do termo, na aventura individual da personagem. Ele chega ao local quando a intriga começa e Mann faz o espectador assistir à última fase do seu percurso. Última etapa do ciclo começado com Winchester 73, O Homem que Veio de Longe também abre o caminho, pela sua tensão extrema, à descida aos infernos que será O Homem do Oeste. Além da evolução individual do seu herói, O Homem que Veio de Longe deve a sua muito grande riqueza a um conjunto de personagens dominado pelo velho Alec Waggoman. As três personagens mais jovens da intriga são apresentadas numa relação pai-filho com ele: Dave é o filho real que ele se arrepende de ter, Hansbro é o filho substituto no qual ele deposita esperanças quiméricas, Lockhart é o filho ideal que ele teria desejado e que nunca terá, próximo dele pelo carácter e pela obstinação. Para Anthony Mann, Alec Waggoman (interpretado pelo admirável Donald Crisp) corresponde a uma interpretação livre do Rei Lear, transposto para o universo do western. Sob o plano visual, o sentido dos cortes, a participação íntima do cenário e das paisagens na acção, elementos essenciais da mise en scène de Anthony Mann, são como que renovados e engrandecidos pelo uso extraordinário do Cinemascope, aqui utilizado por Mann pela primeira vez.

Nota: O filme foi rodado em vinte e oito dias numa vintena de espaços naturais do Novo México com uma extensa busca por autenticidade no detalhe (decoração de interiores, armas, etc.). James Stewart delegou a si próprio a execução da maior parte das stunts."

Até Terça-Feira!

quarta-feira, 11 de maio de 2016

East of Eden (1955) de Elia Kazan



por José Oliveira

East Of Eden pela pena de John Stenbeick é uma saga cósmica que ecoa das profundezas do tempo e se desenrola na realidade em causa. Combina os escritos bíblicos com os pioneiros americanos e dá voz a todos os viventes e a toda a manifestação livre da natureza e das coisas. Expõe as lutas particulares e tacteia nos segredos universais. Plenitude coral que atinge o sagrado numa respiração total. East Of Eden por Elia Kazan é uma condensação que prova que o instante ou a reverberação podem conter toda a abrangência e toda a memória. É o ponto decisivo da obra de Kazan pois o lirismo e o realismo são uma e a mesma coisa em corpos indomáveis, percorrendo as flores dos campos e os rostos desejosos. Como Rembrandt, o documento nunca é mera captação indistinta mas vive com o dramatismo rodeante. Como nos grandes românticos, de Goethe a Emiliano Zapata, a loucura só é loucura pela clareza que cega, tal como o escuro suga. 

Kazan arranca quando o romance de Stenbeick já caminha para o final, mas tanto se pode dizer que o filme existe num ápice decisivo como se perceber que todas as gerações, dilúvios e apocalipses elididos aparecem inteiros nas marcas concretas dos protagonistas e na sua tormenta comum; tanto se percebe isso pelo que se diz e se confessa, como pela central personagem de Abra (Julie Harris) que anuncia o calvário e a aceitação de Cal (James Dean). Kazan começa com Cal a leste do Paraíso, consumindo-se este pela falta de amor do pai para consigo e com a prova do seu carácter e da sua falha através da Mãe, rodando a narrativa num vórtice entre os ciúmes ao irmão e o espelhamento nas mulheres, lados negros e radiantes que encaminham para o definhamento de um dos opostos em direcção a uma possibilidade de pacificação derradeira. Ecos a baterem em ecos, projecções a estilhaçarem-se derrapantes, continuações e negações desfasadas – falemos no grande escritor americano ou no grande cineasta, é o medo que orienta a deriva, ficando qualquer análise cerebral ridicularizada. 

«At a time when the prevailing American voice was bland and glib, this poetic realist, this angry romantic, always spoke fervently to our most basic conflicts between races and religions, classes and generations, men and women.» foi o discurso de Martin Scorsese na entrega do oscar honorario a Kazan, decorria o ano de 1999. E jamais tudo foi tão bem definido e ligado ao seu óbvio continuador: um poeta realista, um romântico zangado, aparentes paradoxos que só assim perfazem os trilhos presentes da eternidade. Scorsese tudo apreendeu e nada no seu grande cinema é fogo-de- vista, sim confrontação entre real e compreensão, abalando-se os travellings, as panorâmicas e a sutura, precisamente, na sua impossibilidade inaugural. 

Poeta realista e romântico zangado, cinema e o que o possibilita em constante ajuste. Assim, apenas quatro pontos sobre a justeza da posta em cena da imemorial batalha: 

a) O Cinemascope: na primeira vez que Dean aparece no mesmo plano com o seu Pai e com o negociador Will, entre outros olhares envergonhados, fica-se imediatamente a saber da tensão e da incontável distância uterina, tema do filme e tema da humanidade, a busca do amor e a tragédia subsequente. Kazan não usa o formato largo para humilhar a televisão nem para o grande espectáculo se fazer fim em si, mas para na união e na pressão revelar o lamento. 

b) O desequilíbrio: quando o Pai faz o filho ler a bíblia, momento supremo e terrorífico onde a palavra de Deus e a moral terrena chocam com a prática e a compreensão, ficando a superação numa via-sacra longínqua que será a luz a resgatar. 

c) Como Adão e Eva num Paraíso florido e proibido: quando Abra e Cal se decidem a olhar acatando o medo, descobrem a alma. Nesse palco, onde as crostas das peles vão para lá do nítido e o idealismo partilha esse primeiro plano, fogo telúrico traçado a alta esquadria, as correspondências e o encontro constantemente pressagiado explode revolucionariamente. Compressão e libertação num fôlego. 

d) Morte e ressurreição: tanto na cena da árvore onde cada um se mata e purifica, como no leito de morte que insufla vida. Nas raízes da terra ou no calor do sangue, só da morte surge a vida e só vendo a treva se encontra a luz; com a ordem inserida nesse segredo perpétuo. 

À imagem da feira popular e da roda onde a paixão se consuma, subidas e descidas, paragens e acelerações, brilhos e abismos. O mundo, o teatro, o actors studio e a ontologia, com o cinema fixando e resvalando, de tudo nos foi deixado, de nada kazan abriu mão. East of Eden é o mais barroco dos filmes, e o mais límpido, olhando com o medo.

domingo, 8 de maio de 2016

13ª sessão: dia 10 de Maio (Terça-Feira), às 21h30


E chegamos a Elia Kazan, James Dean e ao Método do Actors Studio, adaptado do Sistema de Stanislavski e escola decisiva e revolucionária para os actores e para o cinema americano que se segue a East of Eden, no corpo de gigantes como James Dean, Marlon Brando, Montgomery Clift ou Paul Newman.

Sobre o filme e sobre Dean disse Elia Kazan que "penso que ele (Dean) tinha um rosto muito poético, um rosto belo e doloroso. Nos grandes planos, apercebemo-nos dessa tão grande dor. Temos tanta pena dele, quando o vemos em grande plano. Mas também me dei conta que o seu corpo tinha imensas qualidades: era mais expressivo, na liberdade de movimentos, que o de Brando, porque transpirava tensão. Brando é terrivelmente tenso, mas tem uma imensa capacidade de ficar imóvel. Tem movimentos magníficos - Brando é um génio. Mas Dean tinha um corpo muito mais animado de que tirei grande partido nos planos afastados. O cinemascope acentuava a sua pequena estatura. Quando corre no campo de feijões, há essa imensa extensão que Dean atravessa a correr, como uma criança. Gosto muito da cena debaixo da árvore: é um salgueiro cujos ramos pendem, cobrindo Dean e Julie. É um sonho de adolescência: cerrar-se, debaixo da árvore, contra uma rapariga e ficar sozinho no mundo".

Já Jacques Lourcelles diz: "Primeiro dos três filmes com James Dean como protagonista. Adaptado de Steinbeck, é uma variação sobre a história de Abel e Caim, revista e corrigida pela psicanálise e uma nova moral. O ponto de vista adoptado e defendido na história é constantemente o de Caim. Todas as personagens gravitam em torno dele, à excepção de Abram, são responsáveis pelos seus complexos, pelo seu desequilíbrio e por essa sede insatisfeita de amor e de estima que evidenciam a maior parte das suas acções. A investigação psicológica e psicanalítica aqui conduzida não procura nem a objectividade nem o realismo. Ela resulta pelo contrário em que o mundo seja visto através do olhar de uma só personagem cujos sofrimentos, as alternativas de esperança e de desespero geram, como ondas, os movimentos líricos da acção. Aliado ao emprego da cor e do Cinemascope que Kazan utiliza pela primeira vez, este lirismo inaugura uma nova direcção na sua obra, de agora em diante mais aberta à auto-biografia, mais poética e mais liberta das regras da dramaturgia clássica. Kazan valoriza sobretudo os momentos fortes: cenas do aniversário do pai a recusar o presente do seu filho, a cena em que Cal arrasta o seu irmão para o pé da mãe deles. O filme inteiro tende portanto a tornar-se uma sucessão de tensões e de paroxismos no seio de uma trajectória um pouco simplista que elimina da acção as nuances, as transições e as sombras. Mas A Leste do Paraíso ficará sobretudo como um retrato de James Dean como adolescente atormentado, infinitamente sedutor, ainda totalmente mergulhado na infância e a afastar-se para longe, muito longe – a anos luz de distância – da autonomia e da maturidade da idade adulta."

Até terça!

quarta-feira, 4 de maio de 2016

Apresentação de Companheiros da Morte, por Mário Fernandes

The Deadly Companions (1961) de Sam Peckinpah



por Mário Fernandes


Sam Peckinpah tem sido o realizador mais importante na minha vida. Durante anos, sempre que chegava bêbedo a casa (o que acontecia com frequência), punha-me a ver o Wild Bunch ou o Pat Garrett e Billy The Kid. Eram altas horas da noite, a vizinhança tocava à campainha com sermões de “respeito por quem trabalha”, eu respondia aumentando o volume no “Let’s go” do Pike[1] ou no “Knock Knock on Heaven’s Door”. Ao fim de algum tempo, circulou um abaixo-assinado para me expulsar do prédio, alegando tiroteios a horas impróprias. Guardei temporariamente o arsenal debaixo da cama e passei a chegar mais tarde a casa para não incomodar os vizinhos. 

Nessas noites peckinpanianas - uma garrafa de whisky mini-preço onde nadavam meia dúzia de sardinhas da Mouraria – conheci o Manuel Pike de los Mozos, um fígado que bebia a tempo inteiro sem se queixar, pistoleiro da quadrilha selvagem que ora desarmava partilhando um bife ou um vinho generoso com um estranho, ora enchia de chumbo o melhor amigo – “a essência do western é matar quem mais amamos” dizia ele, antes de gritar para um taxista na praça da alegria: BRING ME THE HEAD OF ALFREDO GARCIA[2]! 

Manuel de los Mozos escreveu o melhor texto sobre “uma montanha chamada Peckinpah”, depois há o Miguel Marías sobre o Pat Garrett, o “caminho da última vez” de Bruno Andrade e a balada Billy the Kid de Ruy Belo (“Para onde há-de ir Billy the kid?/Billy não sabe para onde há-de ir/Persegue a morte na pessoa dos outros/quando era nele que a devia perseguir/Mata inimigos e mata amigos/Viver é para ele matar/Procura um refúgio mas nunca sabe/Onde se há-de refugiar/Sabeis qual é o seu maior inimigo?/É ele o seu maior inimigo.”) Quanto a bibliografia estamos conversados, boas leituras. 

Deadly Companions, o filme programado pelo melhor cineclube do mundo, é hoje o meu “Sam” favorito. Nada tem de apoteótico, nada há de muito digno, nada de exaltação da tragédia humana como no orgiástico final de Wild Bunch; desengane-se pois quem conhece outros filmes de Peckinpah[3], aqui não há vómitos de sangue em slow motion nem máquinas trituradoras de planos, nem grandes movimentos de câmara, nem combates ganhos apesar de perdidos. 

Comove-me, desde logo, o companheiro mortal Brian Keith, o genial actor tantas vezes esquecido, a quem John Milius dedicou o último filme-romance total feito na América – falo de Rough Riders[4] (para mim tão importante e violentamente nostálgico como Heaven’s Gate ou Once Upon a Time in America), derradeira participação de Keith antes do suicídio em 1997. Mais cedo ou mais tarde, todos acordamos numa casa com fotografias a preto e branco. 

Foi Brian Keith quem escolheu Peckinpah para a realização de Deadly Companions em 1961, após profícua colaboração nos 13 episódios da série televisiva The Westerner (concluída em 1960), concebida por Sam Peckinpah e protagonizada por Brian Keith, este acompanhado pelo cão Brown que nem sempre era o melhor amigo do homem. No final de cada episódio, Brian Keith olhava para trás enquanto o cavalo galopava em frente com o cão fiel/infiel ao lado. Difícil encontrar imagem mais adequada para a vida cinematográfica de Peckinpah, terminada em 1984 depois de milhares de whiskys inoculados, centenas de putas fodidas, crianças contratadas para compra ilegal de drogas, alguns divórcios[5] (o primeiro mal terminou a rodagem do seu primeiro filme, justamente Deadly Companions[6]) e pelo menos uma filha adorável – Lupita Peckinpah. Acabou a sua curta mas intensa carreira a realizar videoclips (Too Late for Goodbyes), as paisagens que “pintou” no seu rosto arruinado, profundo, cavado, como um romântico intransigente isolado do mundo pela sua própria violência; as cinzas voaram para o mar em 1985, “smell of death on you”. Além de episódios e filmes feitos para televisão por tuta e meia, foi lançado no meio pelo B- MAN Don Siegel, foi assistente de Jacques Tourneur em Wichita, foi argumentista e co-realizador não creditado de One-Eyed Jacks de Marlon Brando, esse corpanzil decadente montado num cavalo estafado, que puxava a coice a diligência do cinema clássico americano e se lançava contra o mar na última fronteira. 

O Brian Keith de The Westerner foi recuperado em Deadly Companions, cara de chapéu cinzento enrugado, abas despenteadas puxadas para os olhos, lento de movimentos pouco naturais, ligeiramente curvado por um qualquer peso morto, experiências passageiras com mulheres levianas ou comprometidas, amargo, trágico, ridículo Yellowleg que recusa tirar o chapéu para esconder uma cicatriz de 5 anos. 

Yellowleg, já agora, é o nome com que baptizei um dos meus melhores amigos - o meu carro-, casa móvel em tantas viagens sentimentais, funcionais ou puramente absurdas, meu expedicionário nos arquipélagos das insónias, inventor de mapas (efémeros como todos os mapas), cartógrafo de relações perdidas, tantas vezes o maior peso é o vazio da paisagem que nos cerca (uma insipidez quase abstracta), folha de outono resistindo à passagem do temporal, sempre viajando, de imobilidade em imobilidade, protagonista anónimo de vidas e filmes, meu companheiro mortal cheio de cicatrizes por contar, acolhendo na barriga o doce sono da Loukia sob as estrelas incendiárias do São João, o velho e bondoso Yellowleg, noites ligando e desligando as luzes dos teus olhos como num jogo de lanterna mágica. 

II 

A conflituosa relação de Peckinpah com os produtores começou logo neste seu primeiro filme, de orçamento baixíssimo e apenas 19 dias de rodagem num “scope” que Peckinpah de todo desconhecia. Charles Fitzsimons, produtor e irmão da protagonista Maureen O’Hara, apostado em repetir o sucesso de The Parent Trap (1960) com a mesma dupla Keith/O’Hara, disse aos membros da equipa para não darem ouvidos a Peckinpah e proibiu o próprio realizador de falar ou se aproximar da diva Maureen O’Hara. Como também não o deixavam tocar no guião, Peckinpah ensaiava com Brian Keith às escondidas do produtor. O filme seria ainda desvirtuado na sala de montagem e algumas cenas refeitas pelo produtor, que fez, por exemplo, Turk disparar sobre as costas de Billy (na versão de Peckinpah era Yellowleg quem matava Billy a sangue frio). Talvez por tudo isso Peckinpah tenha considerado este filme “uma boa merda” e ainda hoje Deadly Companions é visto pela esmagadora maioria dos críticos como um falhanço. 

O que me surpreende mais é como todas estas tensões e difíceis circunstâncias são corpo presente no filme. Apesar dos esforços do irmão-produtor para afastar a Morte de Peckinpah da Beleza de O’Hara, não será este o primeiro papel “mortal” de O’Hara, antes de Mclintock em 1963 e de Big Jake em 1971, ambos com o inseparável John Wayne? Não é Peckinpah quem dispara em Maureen O’Hara na cena em que esta dá as costas à câmara e esse belo e longo “escalpe” de ruiva estremece em campo com o tiro fora de campo de Yellowleg sobre o cavalo, letalmente mordido por uma cobra? E não passam todas as personagens do filme a dar as costas umas às outras (“matamo-lo pelas costas?”, pergunta Billy a Turk mais do que uma vez) ou à câmara de Peckinpah? Não será este um dos filmes menos frontais jamais feitos[7]? Não será o filme, por momentos, um absurdo campo-contra campo entre o chapéu de Yellowleg e o rabo de cabelo de Maureen O’Hara? Mas se o erotismo e a sensualidade de O’Hara são despertados sempre que Billy entra em cena (“nunca levo armas quando sou sociável”), não serão anulados na presença de Brian Keith que vê nesse “rabo” mais a lembrança do próprio “escalpe” do que o desejo amoroso[8]? E que será da candura erótica e sagrada de Maureen O’Hara nas mãos de Borzage ou Ford, quando a vemos colher flores doentes às quais já não bate a luz ou, como puta viúva ou viúva puta, procura em vão o marido morto entre as dezenas de lápides do cemitério, ela que tanta certeza tinha quanto à sua localização? Não soa a canção de O’Hara mais a crepúsculo dos deuses que a sonhos de amor? Não sairá deste filme a imortal Maureen O’Hara mais mortal do que nunca? 

Contada a peregrinação deste filme ninguém acredita, pois não é uma mera réplica aos modelos do bandido e da prostituta em viagem, de Stagecoach de John Ford (já visto neste cineclube) a Naked Spur de Anthony Mann. Possivelmente inspirada em As I lay dying de William Faulkner, onde também se carrega uma carroça com um caixão e se empreende uma viagem longa e absurda para enterrar a pessoa no “lugar devido”, esta história de Peckinpah[9] nada tem de realismo ou verosimilhança[10]. Se viajar com a Morte é um tema recorrente na obra de Peckinpah - vejam por exemplo o episódio Going Home da série The Westerner (Brian Keith escolta o cadáver de um amigo até casa) ou Bring Me The Head of Alfredo Garcia, onde o protagonista Bennie (Warren Oates) transporta uma cabeça humana confrontando-se com moscas e afins (na altura não havia sacos térmicos) - , parece-me que essa viagem nunca foi tão absurda como neste filme[11]. Uma mãe vê o filho morto e o que mais a preocupa é provar às costureirinhas da moral que o filho tem um pai “legal” e por isso inicia esta procissão de muitos quilómetros e perigos? Não vos parece disparate transportar o caixão[12] com um miúdo numa velha charrete, menino vadio que vemos no início viver à margem[13] das outras crianças[14] (elas brincam cá em baixo, ele toca harmónica lá em cima), mas da qual nunca mais nos lembramos afectivamente ao longo do filme? Como é possível Yellowleg (o homicida “involuntário” da criança[15]) se tornar o principal aliado e futuro amante de Kit nesta missão, ele um ressabiado sem raízes, obcecado com uma escaramuça de há 5 anos? Porque começa Yellowleg por salvar a vida do homem que desejou morto, o também cicatrizado Turk[16]? Porque adiará sempre a vingança[17]? E podemos multiplicar os exemplos ad absurdum. Porque recusa Yellowleg que o doutor lhe tire a bala, preferindo continuar limitado fisicamente? Porque Billy e Turk não matam Yellowleg pelas costas? Porque Turk dispara nas costas de Billy depois de já ter sido atingido e caído? Porque as setas dos índios falham sempre o alvo Kit e Yellowleg? Porque o ataque dos índios, que vemos bêbedos e decadentes, nos parece tão forçado? Porque Turk, um desertor, quer criar uma república no deserto, oferecer uniformes a torto e a direito e reconstituir um exército a partir de escravos índios, corolário louco da mitomania de todos os personagens? E não são Yellowleg e Turk estranhamente obcecados por chapéus, um recusando-se destapar a cabeça, outro tirando do bolso o chapéu de general, de um exército que só nos sonhos mais tresloucados dirigirá? Porque insiste Yellowleg em vestir o uniforme yankee quando a guerra já terminou? Porque Kit só se dá ares de Antígona para salvar a sua reputação e jamais chora a morte do filho, e quando Yellowleg lhe atira isso à cara a resposta é uma chibatada? Porque Billy sai do bar aos tiros sem se passar nada que o justifique e dispara sobre o seu reflexo no espelho? Porque prefere trocar todas as riquezas por um momento com Kit? E porque, quando tem essa oportunidade, deixa Yellowleg e Kit a sós para partilharem as suas cicatrizes? Resumindo, porque é este filme um acumular de episódios absurdos e totalmente inverosímeis[18]? Porque armam todo este teatro[19] beckettiano de “fim de partida”? Porque a Morte não está no caixão mas cavalga dentro de Kit e Yellowleg? Serão personagens dramáticas num filme sem drama? Personagens de duelo num filme sem duelos (os que vão morrer caem que nem tordos e o duelo final é, na versão de Peckinpah ou do produtor, totalmente desritualizado)? Mitómanos num mundo sem mitos? “Heróis de tempos sem heroísmo” (Bruno Andrade sobre Junior Bonner)? Obcecados por uma eternidade perdida que os condena a uma existência absurda? Atiradores atirados contra a paisagem? Caçadores caçados? Disparadores disparatados? Autores de papéis trágicos que já não conseguem interpretar (o “it’s gettin’ dark[20]” de Bob Dylan[21] é dito pela primeira vez pelo aleijado Yellowleg “I can’t shoot anymore”)? Como passar a viver na história quando se viveu na lenda? Como resistir o Western à Realidade when the legends die? Será que quanto mais se olha para trás, mais se pinta de sangue o crepúsculo à nossa frente? Será uma grandeza impossível que auto-destrói tantos personagens de Peckinpah? Será que só uma violência forçada/teatralizada os readmitirá no paraíso? Uma mitologia pessoal que os resgate do castigo primordial da mortalidade? 

O que dói neste filme ridículo e trágico é que Yellowleg não consumará a vingança (ele que viveu em função desse mito, entranhado como a bala que carrega dentro dele[22]), O’Hara findará a peregrinação enterrando os seus mortos numa cidade fantasma, Siringo vazia de vida (porventura um antigo palco de guerra, agora teatro de ruínas) e, na ânsia desmesurada de afecto, se abraçarão como mantos esfarrapados, toda a fatal ternura e aceitação, não da redenção, mas da expulsão do paraíso, mitos furados, destinos e misérias. Reparem como no final partem na direcção contrária dos “civilizados”, dando-nos as costas rumo ao oeste perdido e crepuscular, mais esvaziados do que redimidos. Será que vivemos de ódio e morremos de amor? Para onde vão Kit e Yellowleg afinal? Para o “caminho da última vez[23]” que liga este filme ao “slow west” de Two-Lane Blacktop já nos anos 70 (lembre-se que o autor de Slow Fade, Rudolph Wurlitzer, é argumentista tanto de Pat Garrett e Billy the Kid[24] como de Two-Lane Blacktop[25])? Serão deuses dançando num vulcão extinto ou protagonistas de um road movie em estradas febris de cansaços? Passado o alcatrão por cima dos mortos, espera-os a lentidão de uma vida sem peripécias[26] ou, como dirá Pat Garrett, “uma vida em que já não se quer saber o que seguirá”? Serão atropelados pelo progresso como Cable Hogue ou irão para uma vida mais mortal que a Morte[27]? E a mobilidade épica não esmaecerá na imobilidade de uma paisagem cujo único incêndio é uma outonal melancolia[28], o galope não se fará trote? Tombarão como tantos pistoleiros de Peckinpah à medida que desaparecem no horizonte, ou aguentarão, na sua dignidade alcoólica, mais uns tempos em cima do cavalo? Viverão nessa harmonia calada que se dissolve no whisky de Yellowleg (curvado sobre o balcão com vergonha de mostrar a cara)[29]? Ou viverão no slow motion do touro que fecha a boca para estancar a corrente de sangue, a fim de prolongar a vida para uma última cornada?[30] 

Como as silhuetas negras, recortadas no lusco-fusco, que pontualmente ocupam o ecrã, parece-me cada vez mais que estas duas personagens se enterram na luz moribunda do derradeiro crepúsculo[31]. “Com a beleza habita a beleza que morre”, escreveu John Keats. 

Brian Keith e Maureen O’Hara, Yellowleg e Kit, companheiros mortais. 

Notas:

[1] Peckinpah: “Let’s go, i’ve got a fuckin’ movie to make.” 

[2] Como única disciplina a indisciplina da vida. 

[3] Àqueles que ainda acham que o cinema de Peckinpah é acção pela acção (cliché de uma estupidez atroz), o melhor é dar a palavra ao realizador: “a acção não funciona sem pessoas, sem personagens. A acção só porque sim é uma merda.” 

[4] Último grande filme americano a emoldurar com a matéria intemporal do mito o retrato mortal dos guerreiros. 

[5] Chegou a ser baptizado numa pia de vodka para se poder casar com uma actriz mexicana. 

[6] Peckinpah: “em vez de dizer "este é um filme para o museu", digo "este filme sou eu."” (...) “não quero saber do estilo, só quero lá pôr a minha verdade.” Existem realizadores temerários (entre as minhas preferências, Fuller, Peckinpah e Carax) que não estão à procura de soluções artísticas para contornar problemas, mas fortemente empenhados em pegar o touro pelos cornos- nem que me foda, nem que o filme se foda, nem que leve tudo para o inferno. Muito mais do que uma obra para o museu, o cinema é uma experiência existencial. Quando se sonha com Peckinpah, o importante é acordar a cuspir sangue. Without movies we have no guts. 

[7] As costas chumbadas de Brian Keith, as costas banhadas de Maureen O’Hara, as costas alvejadas de Billy. 

[8] Será por acaso que, no ataque sexual a Kit, Billy desce as armas e Yellowleg deixa cair o chapéu que logo recupera para conservar a sua assexuada armadura? E, no início, não prefere Yellowleg o bar e Billy o bordel onde trabalha Kit (não há domingo sem missa, não há sábado sem piça)? E não “foge” Yellowleg da gruta de O’Hara? 

[9] Sabe-se hoje que o livro Yellowleg de Fleischman foi uma adaptação do filme e não o contrário. 

[10] Miguel Marías sobre Patt Garrett e Billy the Kid: "a verosimilhança naturalista nunca interessou a Peckinpah, mas tudo aqui é comentário, reflexão, mito.” 

[11] Os filmes de Peckinpah estão repletos de fragmentadas, desordenadas e contraditórias expedições: Ride the High Country, Major Dundee, Cross of Iron, etc.. 

[12] A maior indústria do cinema americano é a fabricação de caixões, por isso se corta logo para o homem da funerária com a caixa de pinho. 

[13] Reparem como Turk e Billy se integram minimamente na comunidade tirando o chapéu às respeitáveis e “irrespeitáveis” da Igreja. Os únicos totalmente marginalizados neste filme são o miúdo (gozado pelos colegas), a mãe vista pelas ratas de sacristia como uma puta com um filho “ilegítimo” (diz o pequeno “se elas vão para o céu, eu não quero ir”) e Yellowleg que prefere abandonar a Igreja-Bar a tirar o chapéu. 

[14] Os filmes de Peckinpah são povoados por crianças terríveis: baloiçam nas cordas do enforcado, fritam escorpiões e insectos, exercitam esgrima, brincam com o fogo, correm à pedrada os protagonistas ou são amamentadas a pólvora pelo coldre das mães. 

[15] À miséria física de Yellowleg junta-se a miséria moral. É, no entanto, a morte dessa criança que estranhamente aproximará estes dois escorraçados contraditórios (O ́Hara tanto lhe aponta a espingarda como lhe agradece a companhia), escoltados pelos perdidos Turk (ex-confederado) e Billy. Apesar de serem quatro os viajantes, os companheiros mortais são sobretudo Yellowleg e Kit, os únicos que Peckinpah enquadra no mesmo buraco, cavando a mesma sepultura adiada. Como o cinema de Peckinpah consagra o direito de cada Homem cavar a sua sepultura, "Deadly Companions" serão também Gil, Steve, Cable, Pike, Deke, Pat, Billy, Junior, Bennie, Rolf, Duck, etc.. Sam Peckinpah, por sua vez, será o realizador-cangalheiro de todos eles em Pat Garrett e Billy the Kid

[16] Veja-se como a câmara sobe das pernas dos vivaços até ao pescoço do sentenciado. É numa breve acumulação de detalhes, entres eles a cicatriz na mão de Turk (dentada de Yellowleg para defender o “escalpe”), que Yellowleg se torna Actor no filme. 

[17] Estará a resposta na história que Yellowleg conta sobre um homem (ele próprio) que viveu 5 anos habitado pelo ódio e desejo de vingança e quando saciou esse desejo descobriu que não havia mais motivos para viver? Será um forçado romanesco de Yellowleg para mistificar a sua razão que logo desaparecerá ao desistir da vingança e partir mortalmente com Kit? 

[18] Miguel Marías sobre Pat Garrett e Billy the Kid: “acumulação pausada e monótona (sem sentido pejorativo) de situações que não fazem progredir a acção” (...) “amontoar de patéticos testemunhos de decadência ou desintegração.” 

[19] Recorde-se que Peckinpah recusou a carreira de advogado, licenciado-se em teatro com um trabalho final sobre como filmar peças de teatro. 

[20] A cena do Pat Garrett e Billy the Kid em que entra o “Knock Knock on Heavens door” terá ficado demasiado escura para desespero de Sam Peckinpah, o que o levou a mijar no ecrã e a despedir imensa gente por incompetência. Ironicamente, a imagem casa melhor com o “too dark to see” de Bob Dylan. Essa luz que só queima e não ilumina nunca mais deixará Sam. 

[21] Para quem não sabe, Bob Dylan e Kris Kristofferson, durante as rodagens em que participaram, tocavam todas as noites várias músicas para os amigos na casa de Sam. Segundo vários testemunhos, Peckinpah trabalhou toda a vida com os mesmos gajos, não pelo talento que tinham, mas pela amizade, cumplicidade e confiança que lhe inspiravam. 

[22] É essa bala alojada na carne, que ele recusa extrair, a responsável por falhar o alvo e matar o filho de Kit. Nesse acto falhado, não matará Yellowleg a sua juventude como Pat Garrett a matará disparando em the Kid

[23] Bruno Andrade: “epopeia transformada lentamente em epitáfio.” 

[24] Não será esse western uma marcha lenta para a morte, à espera de um tiro do melhor amigo/inimigo de estimação? 

[25] Personagens esvaziando-se na duração de viagens em ponto morto até ao fim. O sangue não esbirra mas empapa como mancha de ferrugem. 

[26] “Another shitty day in Paradise”, na expressão de Steve McQueen, apanhada pelo genial repórter Grover Lewis, na rodagem de The Getaway

[27] John Wayne: “You fight, that ́s life. You stop fighting, that’s death.” (Big Trail, 1930) 

[28] O filme seguinte de Peckinpah, Ride the High Country (1962), será o melhor exemplo. O Outono, em delicado e sereno desespero, coincide com a existência crepuscular dos “velhos” Randolph Scott e Joel McCrea, dois ícones do Western, numa última missão. 

[29] Inesquecível o plano da harmónica no pó que Yellowleg recolherá mais tarde como eco da sua própria morte. Harmonias perdidas também no 2o episódio da série The Westerner, brilhantemente dirigido por André De Toth, quando uma caixinha de música toca para dois mortos estatelados no chão e para o vivo Dave Blassingame (Brian Keith). 

[30] Cabem neste filme todas as dúvidas, contradições, incoerências, assim exige a complexidade e ambiguidade de todas as personagens de Peckinpah. Confuso? Irregular? Mal polido? Inverosímil? Violento? Tudo pedras que os garotos da crítica ainda hoje atiram contra Peckinpah. Para mim o fundamental é a procura – diz Brian Keith que há “coisas em mim que nunca vou entender” – e perder a cabeça nessa louca e endiabrada viagem, pois “não me fio em ninguém que não perca a cabeça de vez em quando” (Turk à entrada do filme). 

[31] O primeiro filme de Peckinpah é já terminal. Peckinpah, de resto, começa quando tudo está a acabar. Entrou no cinema como o miúdo que chega atrasado, já no fim, à festa mais aguardada da sua vida. Mas, ao invés do choradinho, o nosso cowboy tardio crescerá no confronto permanente, a morte a morder no dedo do gatilho. Embora mais psicológico do que pictórico, Peckinpah - como vários pintores barrocos de crepúsculos (por exemplo Claude Lorrain) - , construiu uma obra integrando as ruínas do classicismo, suas personagens como folhas caídas num templo abandonado. As constelações de valores humanistas e os códigos de honra e lealdade ainda passam, mas já através de todas as brechas de um cimento a esfarelar-se. Perdida a casa, derrubadas as pontes, rios de corrente incerta, talvez só se possa defender Ford e Hawks morrendo – heróica e absurdamente – como um pistoleiro da quadrilha selvagem. Por tudo isso está o Homem que tanto amou e tanto se entregou àquilo que o destruiu, poeta numa época que não lhe pertence, escarrador de risos com os pés para a cova, bêbedo sanguinário disposto a fazer filmes – bons, maus, assim- assim – até ao fim da vida. Dizia Peckinpah com amarga ironia: “Sou uma puta, faço o que me mandam. Mas não sou tão boa se não me pagarem.”

Em Maio, no Lucky Star