quinta-feira, 10 de julho de 2025

O Sol do Futuro (2023) de Nanni Moretti



por António Cruz Mendes
 
A electricidade chegou, finalmente, a um bairro popular e, na sequência inicial do filme, os seus moradores reúnem-se, à espera de que, nas ruas e nas casas, as luzes se acendam. No centro dos festejos, dirigentes do PCI. A comunidade une-se em torno do partido a quem devem esse novo salto para a modernidade.
 
“O sol do futuro” é uma metáfora da utopia comunista. Como, “a nova aurora”, “os amanhãs que cantam” ou “o horizonte vermelho”. Num mundo de injustiças, de alienação, de pobreza, a vida será suportável sem o sonho de um novo mundo? E se ele se esvai depois dos acontecimentos que ensombraram a Hungria em 1956, esmagada a revolução democrática por aqueles que, até então, eram vistos como os arautos da libertação? A Ennio, dirigente do Partido Comunista de Itália, tantos anos dedicados a uma causa que agora vê traída, resta-lhe uma saída: o suicídio.
 
Este seria o tema do novo filme que Giovanni se propõe realizar. Giovanni é um alter ego de Nanni Moretti e as angústias e os dilemas do pós-comunismo tinham sido já tratadas por ele em Palombella Rosa e em A Coisa. É, portanto, um tema muito “morettiano”.
 
A acção passa-se em Itália, num município governado pelo Partido Comunista Italiano (PCI), onde a convite das autoridades locais, um circo húngaro monta o seu espectáculo... Porém, esse é apenas um filme dentro de outro filme, onde o protagonista é o próprio Giovanni e o seu tema são as dificuldades e as dúvidas que o assaltam durante a realização.
 
Todos nos lembramos de filmes que têm o próprio cinema e os seus bastidores como tema. , de Fellini, ou A Noite Americana, de Truffaut, por exemplo. Nanni Moretti retoma à sua maneira essa tradição. Ou seja, num registo habitualmente designado como comédia dramática.
 
A sua mulher e produtora quer separar-se dele, uma actriz improvisa e afasta-se do guião e até mesmo entre os animais selvagens do circo surgem incompatibilidades “nacionais”. O seu co-produtor faliu e não há dinheiro para prosseguir as filmagens. As demandas do mercado deixaram de ser compatíveis com a sua ideia de cinema. Tudo e todos parecem conspirar contra os propósitos de Giovanni. Mas, é impossível ver sem um sorriso a cena do jantar com o namorado da filha, a da entrevista com os potenciais financiadores da Netflix ou aquela onde ele intervém nas filmagens de um outro filme produzido pela sua mulher para discutir o lugar da violência no cinema.
 
As reflexões metalinguísticas estão, aliás, estão sempre presentes em O Sol do Futuro e remetem-nos para uma série de referências cinéfilas. Fala-se de Cassavetes, de S. Miguel tinha um Galo, dos Taviani, de Apoclipse Now, do Copolla... A dada altura a câmara filma uma plateia que observa, extasiada, a sequência final de La Dolce Vita. Mas, esse momento mágico, é logo interrompido pelo discurso crítico de um jovem que questiona a sua namorada acerca da natureza de classe dos seus protagonistas e da dimensão política do filme.
 
Os problemas pessoais, profissionais e artísticos de Giovanni confundem-se e tudo concorre para uma catástrofe. Mas, afinal, uma equipa de analistas ao serviço de produtores coreanos reconhece a excelência do argumento. Filmada em posição frontal, encarando os espectadores, uma jovem dá-nos o seu veredicto: “É um filme sobre a morte da arte e do comunismo. A morte do amor e da moral. É, sem dúvida, um filme sobre a morte de tudo”. “Certo”, reage Giovanni. Mas, deverá, terá de ser assim?
 
A cena final, a do suicídio de Ennio, é revista e, embora sem o timing que as regras da Netflix aconselhariam, pode dizer-se que o filme termina com um momento WTF, uma festiva manifestação onde a infidelidade à História é assumida, todos os anacronismos e inverosimilhanças são permitidos – mas a vida, a liberdade e a esperança triunfam. 
 
 

domingo, 6 de julho de 2025

406ª sessão: dia 8 de Julho (Terça-Feira), às 21h30


“O Sol do Futuro” de Nanni Moretti, esta terça no Lucky Star – Cineclube de Braga

Em Julho, o Lucky Star- Cineclube de Braga promove a alegria e a boa disposição (muito riso), com critério (muito siso), com a segunda edição do ciclo “Muito Riso, Muito Siso”, que reúne filmes clássicos e contemporâneos de comédia. As sessões deste ciclo ocorrem, como habitualmente, às terças-feiras na biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, às 21h30. 

Nesta terça-feira, 8 de Julho, o ciclo prossegue com o filme O Sol do Futuro (2023), de Nanni Moretti.
 
A narrativa do filme centra-se em Giovanni, um cineasta veterano e idealista, que está determinado a concluir o seu novo filme — uma obra sobre um grupo de comunistas italianos nos anos 1950 que luta pelos seus ideais, mas que se vê confrontado com contradições históricas e políticas. No entanto, enquanto tenta dar vida a essa narrativa utópica, sua própria vida pessoal começa a desmoronar. O seu casamento com Paola, sua produtora e parceira de longa data, entra em crise, e o próprio cinema que sempre amou parece estar em ruínas. Alternando entre a ficção do filme dentro do filme e os dilemas do presente, Giovanni confronta a difícil tarefa de conciliar a nostalgia política com as urgências do mundo atual. 

Estreado mundialmente, em 2023, no Festival de Cannes, O Sol do Futuro foi calorosamente aclamado pela crítica internacional, recebendo uma ovação ininterrupta durante 13 minutos na sua estreia oficial, a 24 de maio. O mais recente filme de Nanni Moretti — em competição pela prestigiada Palma de Ouro em 2023 — rapidamente se destacou entre os títulos europeus desse ano.

A obra foi nomeada para sete prémios David di Donatello, o equivalente italiano aos Óscares, e já arrecadou dois Nastri d'Argento: Melhor Atriz Coadjuvante para Barbora Bobuľová e o Prémio Guglielmo Biraghi, atribuído à jovem Valentina Romani. Uma confirmação do vigor criativo de Moretti, nome incontornável do cinema de autor.

O Sol do Futuro é uma comédia dramática, melancólica e autorreflexiva, em que Nanni Moretti revisita seu estilo inconfundível para questionar o passado, rir do presente e imaginar, com ternura e ironia, um futuro ainda possível.

As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva às terças-feiras, às 21h30. A entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Até terça!


quinta-feira, 3 de julho de 2025

Loucamente (2016) de Paolo Virzi



por Jessica Sérgio Ferreiro
 
Loucamente (La pazza gioia), realizado por Paolo Virzì, é um filme que se move entre a comédia dramática e o road movie. A narrativa acompanha duas mulheres, Beatrice (Valeria Bruni Tedeschi) e Donatella (Micaela Ramazzotti), internadas numa comunidade terapêutica e instituição psiquiátrica na Toscana. As duas escapam da clínica numa fuga à procura da felicidade e que rapidamente se transforma num percurso de autodescoberta.
 
Paolo Virzi constrói uma narrativa onde a linha entre loucura e normalidade é constantemente posta em causa. A escolha do realizador em não estigmatizar as personagens, mas antes em humanizá-las, dá ao filme uma dimensão crítica ao que comummente entendemos como “loucura” e “normalidade”. Beatrice, com a sua tagarelice aristocrática, delírios de grandeza e conexões políticas imaginárias, contrasta com a introspectiva, depressiva e melancólica Donatella, marcada por um passado traumático. Juntas, formam um duo improvável, cuja cumplicidade cresce à medida que os segredos de ambas vêm ao de cima.
 
Mais do que uma narrativa bem-humorada sobre a doença mental, Loucamente é uma ode à empatia e, acrescentaria, aponta para a necessidade de “políticas da vulnerabilidade”, como defendido pela filósofa Marie Garrau que vê a vulnerabilidade como uma condição comum (condição colectiva) que precisa de respostas políticas justas e inclusivas, rompendo com a ideia liberal do indivíduo (e da sua pretensa autossuficiência). É um filme que desafia preconceitos, sublinha a importância do afecto e propõe que, por vezes, é no desvio à norma que reside a lucidez.
 
Visualmente, o filme mescla as cores vivas das paisagens italianas com o realismo poético de uma aventura na estrada (road movie). A câmara de Virzi, ora agitada, ora contemplativa, parece dialogar com o próprio estado mental das protagonistas: o mundo visto por elas é simultaneamente vibrante e dissonante.
 
A clínica psiquiátrica, apesar de acolhedora em aparência, simboliza um sistema de controle. Virzi faz eco à crítica institucional patente no clássico One Flew Over the Cuckoo's Nest (1975), de Miloš Forman, e pode nos remeter para os trabalhos de Michel Foucault, tal como História da Loucura (1978 [1972]) e O Corpo Utópico, Heterotopias (2013 [1966]) e O Nascimento da Biopolítica (2023 [1979]). Nos quais a loucura é tida como construção sócio-histórica e problema social e não como defeito individual ou mácula biológica. A reforma psiquiátrica italiana de 2015 (contexto em que este filme surge) alinha-se à crítica de Foucault às heterotopias e ao poder institucional. Ao fechar as Unidades de Saúde Mental (OPGs) e substituí-las por comunidades terapêuticas, a reforma procurou desmantelar espaços fechados de exclusão e de controle (“prisões”), enfatizando a reabilitação e a dignidade humana.
 
Assim, o filme problematiza o tratamento psiquiátrico, os paradigmas epistemológicos e os preconceitos sociais que o regem, visto como mecanismo de gestão biopolítica, ou forma de controlo repressivo, que expulsa os “indesejáveis” da pólis e os confina nas margens da sociedade. Embora, Loucamente não critique diretamente a reforma psiquiátrica de 2015, aborda temas que apontam para os desafios da transição do atendimento institucional para modelos comunitários. O filme destaca as complexidades do atendimento em saúde mental, incluindo o estigma social e a necessidade de medidas de apoio que contemplem dimensões individuais, políticas e sociais, preocupações cruciais que deveriam ter sido consideradas no contexto da reforma em psiquiatria como a italiana.
 
O realizador, ao centrar a narrativa do filme em duas mulheres internadas por questões que envolvem não somente o sofrimento mental, mas também a rejeição social, toca ainda noutro ponto essencial: a “patologização” do comportamento feminino. Beatrice é “louca” porque fala demais, sonha alto, é desajustada. Donatella carrega a culpa de uma maternidade fracassada e é punida com o isolamento. Ambas encarnam figuras femininas que, em vez de serem compreendidas, foram “silenciadas” e afastadas da sociedade. O filme mostra como o diagnóstico pode ser um modo de censura e “encarceramento” do desvio ao normativo e/ou ao ideal. Assim, a “loucura”, tida como desvio, surge como o nome que se dá ao “excesso” feminino num mundo de convenções e normas patriarcais.
 
Em suma, é através da amizade improvável entre Beatrice e Donatella que o filme propõe outra cura: a empatia. Neste sentido, Loucamente afasta-se dos estigmas vulgares da loucura, construindo uma visão afectiva e política da saúde mental. Trata-se de um cinema humanista, que não nega o sofrimento, mas o inscreve dentro de uma estrutura social composta por desigualdades sociais. 
 
 

domingo, 29 de junho de 2025

405ª sessão: dia 1 de Julho (Terça-Feira), às 21h30


“Loucamente” de Paolo Virzi, esta terça no Lucky Star – Cineclube de Braga

Em Julho, o Lucky Star- Cineclube de Braga promove a alegria e a boa disposição (muito riso), com critério (muito siso), com a segunda edição do ciclo “Muito Riso, Muito Siso”, que reúne filmes de comédia clássicos e contemporâneos. As sessões deste ciclo ocorrerão, como habitualmente, às terças-feiras na biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, às 21h30. 

Nesta terça-feira, 1 de Julho, o ciclo arranca com um filme de Paolo Virzi, Loucamente (2016). A história acompanha duas mulheres internadas numa instituição psiquiátrica – Beatrice (Valeria Bruni Tedeschi), excêntrica e aristocrata, e Donatella (Micaela Ramazzotti), jovem mãe marcada por um passado traumático. Ambas decidem fugir numa viagem inesperada por Itália. Uma fuga que se revela como um grito de liberdade contra a marginalização e o estigma associados à doença mental.

Estreado na Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes em 2016, Loucamente (La pazza gioia) conquistou aplausos pela forma como alia humor, drama e crítica social. O filme valeu a Paolo Virzì o Nastro d’Argento de Melhor Realizador, além de arrecadar cinco prémios David di Donatello, incluindo Melhor Atriz (Valeria Bruni Tedeschi) e Melhor Cenografia. Em Cannes, embora fora de competição, foi calorosamente recebido pela crítica, consolidando o estatuto internacional do realizador. 

Virzì nasceu em Livorno, em 1964, e formou-se no Centro Sperimentale di Cinematografia, em Roma. A sua carreira começou como argumentista antes de se estrear na realização com La bella vita (1994). Desde então, construiu uma filmografia centrada nas tensões sociais e nas contradições da Itália contemporânea, com títulos como Ovosodo (1997), La prima cosa bella (2010) e Il capitale umano (2013), vencedor de sete David di Donatello e selecionado como candidato italiano aos Óscares.

Virzì concebeu Loucamente como um “road movie” que critica não só a reforma psiquiátrica italiana de 2015, mas também o sistema de saúde mental em geral. Para o realizador, o filme é ainda uma metáfora da “loucura essencial da Itália”, evidenciada pelo contraste entre a beleza das paisagens e a indiferença da sociedade.

As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva às terças-feiras, às 21h30. A entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre. 

Até terça-feira!

quinta-feira, 26 de junho de 2025

A Costa dos Murmúrios (2004) de Margarida Cardoso



por Rute Castro
 
O filme distingue-se por uma construção narrativa que privilegia o olhar subjetivo e a fragmentação da memória. A montagem fragmentada e o recurso a flashbacks criam uma atmosfera onírica e densa, onde a temporalidade se dilui e a verdade se apresenta como algo sempre incompleto e questionável.
 
A direção de fotografia de Lisa Hagstrand sustenta a tensão latente do filme: a luz incandescente e o calor abafado da paisagem africana reforçam o sentimento de opressão e deslocamento vivido por Evita. A câmara privilegia os rostos, os gestos e os espaços de transição — corredores, varandas, paisagens ao longe — como metáforas visuais de uma existência suspensa entre o passado e o presente, entre Portugal e África, entre o silêncio e a denúncia.
 
A Costa dos Murmúrios é, acima de tudo, um retrato intimista da desintegração de uma consciência diante do colapso de um império. O filme desmonta o mito heroico das campanhas ultramarinas portuguesas, revelando um quotidiano impregnado de racismo, violência institucional e repressão sexual. A personagem de Evita emerge como uma espécie de testemunha silenciosa que vai tomando consciência da hipocrisia e da brutalidade que sustentaram o projeto colonial português. A narrativa aposta na ambiguidade: mais do que oferecer respostas, levanta questões sobre culpa, responsabilidade histórica e os fantasmas da colonização que persistem mesmo após o fim do domínio formal.
 
Importância no cinema português: A Costa dos Murmúrios ocupa um lugar central na cinematografia portuguesa do início do século XXI, sendo um dos poucos filmes a abordar de forma explícita o legado colonial a partir de uma perspetiva feminina. O rigor formal de Margarida Cardoso, aliado à densidade histórica e emocional da obra, fazem do filme um marco no cinema de memória e uma poderosa reflexão sobre a identidade nacional. O filme tem sido amplamente estudado em contexto académico e figura frequentemente em mostras de cinema europeu e de género, pela sua abordagem sensível, mas incisiva, dos temas do pós-colonialismo e da condição feminina num contexto de guerra e dominação.
 
A componente sonora do filme é subtil, mas crucial para a construção da tensão narrativa. Os sons ambientes como o zumbido do calor, os passos em corredores vazios, o tilintar de copos são utilizados como elementos dramáticos. A música, assinada por Vasco Pimentel e Nuno Malo, surge em momentos pontuais, acentuando o desconforto, a nostalgia ou a inquietação das personagens, sem nunca se sobrepor à densidade visual e ao silêncio carregado de sentido que define o tom do filme.
 
O filme foi aclamado pela crítica portuguesa e internacional, tendo sido exibido em festivais como Veneza, São Paulo e Londres. Destacou-se a sua capacidade de tratar uma temática historicamente silenciada no cinema português com uma linguagem visual sofisticada e uma abordagem intimista, evitando simplificações ou estereótipos. A Costa dos Murmúrios continua a ser uma referência para cineastas e estudiosos interessados nas heranças do colonialismo, no papel da mulher na História e na força do cinema como instrumento de memória e questionamento. A sua importância reside não apenas no conteúdo temático, mas na ousadia estética com que foi realizado, inserindo-se num esforço mais amplo de reescrita do passado recente de Portugal a partir de vozes alternativas. 
 
 

segunda-feira, 23 de junho de 2025

403ª e 404ª sessão: dia 24 e 28 de Junho (Terça e Sábado), às 21h30 e 17h30, respectivamente




“A Costa dos Murmúrios” de Margarida Cardoso e “Andrei Rublev” de Andrei Tarkovsky, esta terça-feira e sábado 

Para o mês de junho, o Lucky Star- Cineclube de Braga propõe um ciclo intitulado “Modelo e Corpo: Subversões no Cinema Português”. O ciclo reúne três obras singulares do cinema português realizadas por mulheres que, ao longo de décadas distintas, ousaram interrogar o íntimo e o histórico através de um olhar radicalmente diferente. As sessões deste ciclo ocorrem, como habitualmente, às terças-feiras na Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, às 21h30. Ainda em junho, dá-se início ao “Cinema Fora de Portas”, exibindo-se filmes em locais ímpares de Braga. A primeira sessão ocorre este sábado 28 de junho na Fundição de Sinos de Braga, às 17h30.

Esta terça-feira, 24 de junho, inspirado no romance homónimo de Lídia Jorge, A Costa dos Murmúrios (2004) retrata a experiência de Evita, uma jovem portuguesa que, nos últimos anos da Guerra Colonial, abandona Lisboa para se casar com um oficial destacado em Moçambique. À medida que mergulha na realidade colonial, marcada pela violência e o silêncio, Evita confronta-se com a brutalidade da guerra e com o vazio da relação conjugal. Através de um olhar feminino, o filme desmonta a ficção colonial portuguesa, explorando a experiência de uma mulher deslocada que se depara com o colapso do império num território em guerra.

No sábado, 28 de junho, às 17h30, arranca o ciclo “Fora de Portas”, com o icónico filme Andrei Rublev, de 1966, de Andrei Tarkovsky. Na Rússia do século XV, devastada por guerras, a miséria e intolerância, Andrei Rublev, um monge e pintor de ícones, atravessa um país mergulhado no caos à procura de sentido para sua arte e fé. Numa jornada dividida em episódios, Tarkovsky constrói uma poderosa meditação sobre o papel do artista diante da violência do mundo e do silêncio de Deus. Andrei Rublev, mais que uma biografia, é uma experiência espiritual. Inegavelmente, um clássico importante na história do cinema. A sessão terá lugar na Fundição de Sinos de Braga – Serafim da Silva Jerónimo & Filhos, Lda., parceiro desta iniciativa.

As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva às terças-feiras, às 21h30. A entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre. As sessões do ciclo Fora de Portas têm entrada livre e ocorrem em diferentes pontos da cidade de Braga.

Até terça e sábado!


sexta-feira, 20 de junho de 2025

O Som da Terra a Tremer (1990) de de Rita Azevedo Gomes



por Estela Cosme
 
Não há forma de descrever O Som da Terra a Tremer sem parecer que estamos a narrar uma alucinação, um sonho dentro de um sonho. O filme mistura a realidade de um escritor chamado Alberto com a sua obra que escreve, sobre um marinheiro chamado Luciano, onde não se distingue a realidade da ficção, onde não se separa as vivências de um homem artístico com as fantasias da sua personagem de carne e osso. No filme não tarda muito em que, sem perder o fio à meada, os fios narrativos se entrelaçam e o espectador é lançado a um enredo que terá de decifrar por si próprio. Rita Azevedo Gomes dá-nos pistas, mas somos nós que temos de encontrar a realidade de Alberto e a ficção de Luciano enquanto flutuamos numa poesia visual soberba e esmagadora.
 
A realizadora inspirou-se em duas grandes obras para a elaboração do argumento, Paludes de André Gide (sobre um autor recluso num pântano que simboliza os intelectuais de Paris do século XIX), e Wakefield de Nathaniel Hawthorne (sobre um homem que sai de casa com o pretexto de que vai viajar, mas que se instala num quarto do outro lado da sua rua). Embora o meio literário sirva de grande inspiração, este parece ser insuficiente perante a riqueza narrativa do filme, em que as imagens visuais nem sempre correspondem com a narração e o tempo nem sempre se adapta à realidade. Afinal, onde acaba o artista e onde começa a sua obra? Onde acaba a obra e começa o artista? É possível sequer fazer a separação entre Alberto e Luciano?
 
A resposta não é definitiva, mas é sempre subjectiva, e cabe a cada um de nós interpretá-la. O filme evoca o teórico e filósofo Roland Barthes que, no seu célebre ensaio de 1967, A Morte do Autor, defende que a interpretação do leitor se deve sobrepor a tudo aquilo que conhecemos do escritor. O texto não se deve definir pelas intenções do autor pois a obra é sempre filtrada pela subjetividade atribuída pelo leitor. Sendo assim, o autor “morre” para que a narrativa passe a ser de quem lhe atribui significado. Isto implica que cada um de nós interpreta a vida de Alberto e a história de Luciano de uma forma muito individualizada. Cabe a nós definir o que é ficção e o que é realidade (e se esta existe), e onde Alberto morre e Luciano vive.
 
O filme apresenta grandes incógnitas sobre as suas personagens que, por sua vez, levam a grandes implicações. Se Alberto não pode ser definido pelas suas experiências (que podem ser inventadas) ou pelas suas relações (que podem ser imaginadas), como podemos definir tal homem? Como podemos definir a sua personagem? E, talvez o mais importante, como se define a ele próprio?
 
Se a resposta a estas questões é através da sua obra, então Alberto apenas pode ser definido pela representação de Luciano, que é tão incerta como o seu nome e como a sua própria narrativa. O escritor espelha-se na sua ficção de forma frágil e cruel, ilustrando sem rodeios a solidão e a tristeza que o persegue e atormenta. Ele cria a sua própria miséria, construindo a sua vida numa muralha de arrependimentos. Talvez o som da terra a tremer seja o som dos muros que ele próprio ergue à sua volta. 
 
 

domingo, 15 de junho de 2025

402ª sessão: dia 17 de Junho (Terça-Feira), às 21h30


“O Som da Terra a Tremer” de Rita Azevedo Gomes, esta terça-feira no Lucky Star- Cineclube de Braga

Para o mês de Junho, o Lucky Star- Cineclube de Braga propõe um ciclo intitulado “Modelo e Corpo: Subversões no Cinema Português”. O ciclo reúne três obras singulares do cinema português: Relação Fiel e Verdadeira (1987), de Margarida Gil, O Som da Terra a Tremer (1990), de Rita Azevedo Gomes, e A Costa dos Murmúrios (2004), de Margarida Cardoso. Três filmes de realizadoras portuguesas que, ao longo de décadas distintas, ousaram interrogar o íntimo e o histórico através de um olhar radicalmente diferente. As sessões deste ciclo ocorrem, como habitualmente, às terças-feiras na biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, às 21h30. 

Esta terça-feira, dia 17 de Junho, o ciclo prossegue com a exibição do filme O Som da Terra a Tremer (1990), de Rita Azevedo Gomes. Este filme é a primeira longa-metragem da cineasta. Inspirado em obras de Gide, Hawthorne, O Som da Terra a Tremer acompanha um escritor solitário (interpretado por José Mário Branco) que, encerrado no seu apartamento, tenta concluir um romance sobre um marinheiro apaixonado. À medida que a escrita avança, as fronteiras entre ficção e realidade desvanecem-se: as personagens ganham corpo, a narrativa transborda e o autor vê-se aprisionado na própria criação. Uma reflexão subtil sobre a solidão e o poder transformador da literatura.

A obra tem um carácter teatral, com cenários minimalistas e uma forte ênfase na linguagem, aproximando-se mais de uma experiência filosófica do que de uma narrativa convencional. O Som da Terra a Tremer mistura literatura, teatro e cinema de uma forma poética. O filme foi nomeado para o prémio de Melhor Longa-Metragem no Festival Internacional de Cinema Jovem de Turim.

Rita Azevedo Gomes nasceu em Lisboa, em 1952 e estudou na Escola Superior de Belas Artes de Lisboa, até à Revolução de 25 de Abril. A cineasta conta com uma importante filmografia, tendo já recebi-do o prémio de carreira no Festival Zinebi – Bilbao (2023). Presente em vários festivais internacionais, foram também nomeados os seus dois últimos filmes A Portuguesa (2018) e O Trio em Mi Bemol (2022) no Festival de Berlim.

As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva às terças-feiras, às 21h30. A entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Até terça!


quinta-feira, 5 de junho de 2025

Relação Fiel e Verdadeira (1987) de Margarida Gil



por Jessica Sérgio Ferreiro 
 
Entre cartas nunca enviadas, “tremores interiores” e murmúrios coloniais, este ciclo propõe um encontro entre três obras singulares do cinema português: Relação Fiel e Verdadeira (1987), de Margarida Gil, O Som da Terra a Tremer (1990), de Rita Azevedo Gomes, e A Costa dos Murmúrios (2004), de Margarida Cardoso. Realizados por mulheres, mas centrados tanto em sujeitos femininos como masculinos, as cineastas recusam a narrativa linear convencional, preferindo elipses temporais, anacronias várias, analepses ou a metanarrativa. Assim, diluem e moldam o tempo, recriando lugares de memória, espaços e corpos sensíveis, fora do tempo cronológico, para pôr a nu os corpos e seus modelos (o ideal ou a convenção). As três obras fílmicas baseiam-se ainda em “modelos”, ou seja, em várias obras literárias de referência que são reinterpretadas e remoldadas para a imagem em movimento.
 
Entre o íntimo e o político, o real e o imaginário, o tempo e a espera, estas são narrativas feitas de imagens que evocam e, subsequentemente, convocam o espectador. Em Relação Fiel e Verdadeira (1987), Margarida Gil reinventa o epistolar como gesto de clausura e revolta. Em O Som da Terra a Tremer (1990), de Rita Azevedo Gomes, e protagonizado por José Mário Branco, propõe um retrato masculino, filtrado por uma sensibilidade poética e distanciada, onde as personagens femininas estão fora do controlo do protagonista, desmontando o sujeito patriarcal e expondo a sua fragilidade. Já em A Costa dos Murmúrios (2004), Margarida Cardoso convoca o corpo feminino como espaço de memória colonial e trauma silenciado. As realizadoras rejeitam o modelo clássico e abraçam uma linguagem do cinema como escrita sensível da(s) história(s), não como reconstituição factual, mas como manifestação subjectiva, crítica e poética. Rejeitam o olhar dominante que fixa a mulher como objeto ou modelo (e/ou musa) e constroem, em vez disso, um cinema onde o tempo é sensível e a narrativa emerge por fragmentos — como se a própria linguagem tivesse de ser reinventada para dar lugar a outras histórias, outros corpos, outras vozes e, sobretudo, diferentes olhares e diferentes imagens.
 
Nesta primeira sessão do ciclo Modelo e Corpo: Subversões no Cinema Português, apresentamos o filme Relação Fiel e Verdadeira (1987) de Margarida Gil, que se baseia na obra Fiel e verdadeira relação que dá dos sucessos de sua vida a creatura mais ingrata a seu Criador..., escrita por Antónia Margarida de Castelo Branco, que relata os acontecimentos marcantes da sua vida conjugal. Segundo a Direcção Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas (DGLAB), Antónia Margarida uniu-se em matrimónio, em 1670, com Brás Teles de Meneses e Faro, um fidalgo boémio e arruinado pelo vício do jogo. Após oito anos de casamento marcados por sucessivos maus-tratos infligidos pelo marido, decidiu recolher-se no Mosteiro de Santos. Em março de 1679, ingressou como noviça no Convento da Madre de Deus de Xabregas, onde professou votos no dia 31 de março de 1680, adoptando o nome de soror Clara do Santíssimo Sacramento. 
 
Margarida Gil pega nesta história do conturbado período pós-Restauração e trá-la para o, não menos agitado, pós 25 de abril, quando as elites são igualmente escrutinadas (ex. quando, no filme, é dito que o pai de Brás contrabandeava diamantes das ex-colónias). Apesar do anacronismo consumado, a estória não se apresenta como anacrónica, pois a realizadora põe à mostra o carácter trans-histórico das categorias “homem” e “mulher”, fixadas ao longo do tempo. A condição da mulher antes do 25 de abril não era muito diferente da de uma mulher do século XVII, nascida para casar e manter-se fiel, ora à casa do pai, ora ao marido. Poucos ou nenhuns direitos detinha, tida como propriedade, podia ser morta sem consequências, como é referido na cena do filme em que Brás pede à Antónia que escreva num papel o seguinte: “Dou licença ao meu marido para que me mate, se ele assim o entender, e que ninguém lhe possa pedir contas da minha vida, porque ma tira com muita razão”. Cena, esta, que alude à lei vigente durante o Estado Novo e até 1975 (artigo 372.º do Código Penal), que “autorizava” o feminicídio e “aligeirava” a pena do cônjuge, condenando apenas ao “desterro para fora da comarca por seis meses ao homem casado que, achando sua mulher em adultério, a matar a ela ou ao adúltero, ou a ambos, ou lhes fizer qualquer ofensa grave (…)” e cujas “provas” da ofensa a apresentar eram irrisórias (ver artº em Diário da Républica).
 
Em suma, a violência de género arquissecular é transporta para a narrativa fílmica por Margarida Gil, como sumarizado pela realizadora à Cinemateca: “O casal é um microcosmo que permite interrogar-nos sobre os limites do amor e da dádiva, do horror e da abjeção, da tortura e do martírio a que alguém pode chegar. Como exprimem as relações de afecto a realidade das relações de poder?”
 
Relação Fiel e Verdadeira é um filme que se aproxima da História como se ela fosse um sonho mal resolvido, em que nunca se sabe o que é verdadeiro, o que foi escrito e o que ficou por dizer. Inspirando-se livremente num testemunho autobiográfico do século XVII, remete-nos também, por aproximação e oposição, para outro relato literário – Cartas Portuguesas (1669) – atribuídas a Soror Mariana Alcoforado e, por sua vez, às Novas Cartas Portuguesas (1972) de Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa, livro proibido pela censura e cujas autoras foram levadas a tribunal por “atentado ao pudor” e não como mulheres com agência política. Estas obras aventuram-se pelos mistérios do íntimo feminino sem nunca realmente os desvelar, pois remetem-nos sempre para a performance, ou seja, para a escrita, o epistolar e/ou a narrativa criativa. De forma análoga, Margarida Gil rasga o véu da reconstituição factual, o que  interessa não é o passado como documento, mas como fantasma ou como sombra. A câmara não se ocupa de confirmar datas ou rever figurinos, mas procura ecoar os passos de Antónia Margarida, figura trágica e difusa, mas atemporal, mais presença do que personagem.
 
O filme é uma contradição viva: inscreve-se no cinema de época, mas com uma recusa declarada do naturalismo. Carros circulam por entre torres setecentistas e jogos de cartas ocorrem sob luz fluorescente (cena em que é possível ver João César Monteiro e João Bénard da Costa enquanto jogadores de póquer). Há uma liberdade plástica — quase iconoclasta — que rompe com qualquer vontade de “verosimilhança”. Estamos num tempo outro, simultaneamente barroco e contemporâneo, onde a “verdade” não é reconstituída, mas intuída.
 
Margarida Gil explora o silêncio não como ausência, mas como forma de espera. A montagem, descontinuada e por vezes abrupta, lembra-nos que não estamos num fluxo narrativo, mas numa arqueologia subjectiva. Antónia — interpretada por Catarina Alves Costa (também realizadora) — não é apenas uma mulher. É um espaço, uma ruína. Um testemunho gravado a lume lento no corpo de uma atriz que nunca parece representar, apenas habitar.
 
Tal como no diário pessoal, o tempo não é cronológico. Há repetições, avanços bruscos, zonas de sombra. Brás, o marido, mais figura de um “masculino” do que homem, torna-se espelho de uma violência insidiosa, regular e quotidiana. Brás acusa Antónia de ser mentirosa, de não ser verdadeira (apesar de fiel), perplexo frente aos mistérios do feminino e por Antónia nunca revelar o seu íntimo, nunca expressar o que sente ou se realmente o ama ou despreza. O silêncio e o insondável expressam, aqui, a resignação ou a resistência? A “relação” do título é dupla: o relato e o vínculo, e talvez ambos sejam, paradoxalmente, infiéis. Por fim, Margarida Gil mantém-se fiel ao cinema como arte e àquilo que não se pode dizer, deixando para o espectador significar e ressignificar. 
 
 

domingo, 1 de junho de 2025

401ª sessão: dia 3 de Junho (Terça-Feira), às 21h30


“Relação Fiel e Verdadeira” de Margarida Gil, esta terça-feira no Lucky Star- Cineclube de Braga

 
Para o mês de Junho, o Lucky Star- Cineclube de Braga propõe um ciclo intitulado “Modelo e Corpo: Subversões no Cinema Português”. O ciclo reúne três obras singulares do cinema português: Relação Fiel e Verdadeira (1987), de Margarida Gil, O Som da Terra a Tremer (1990), de Rita Azevedo Gomes, e A Costa dos Murmúrios (2004), de Margarida Cardoso. Três filmes de realizadoras portuguesas que, ao longo de décadas distintas, ousaram interrogar o íntimo e o histórico através de um olhar radicalmente diferente. As sessões deste ciclo ocorrem, como habitualmente, às terças-feiras na biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, às 21h30. 

Esta terça-feira, dia 3 de Junho iniciamos o ciclo com Relação Fiel e Verdadeira (1987), de Margarida Gil. O filme é uma adaptação da autobiografia manuscrita de Antónia Margarida de Castelo Branco, intitulada “Fiel e verdadeira relação que dá dos sucessos de sua vida a creatura mais ingrata a seu Criador...”, escrita em 1685. O título “Relação Fiel e Verdadeira” joga com o duplo sentido da palavra “relação”, referindo-se tanto ao relato autobiográfico quanto ao relacionamento conjugal retratado no filme. O filme foi apresentado no Festival Internacional de Cinema de Veneza.

Relação Fiel e Verdadeira retrata o quotidiano opressivo de um casamento entre membros da aristocracia rural do Norte de Portugal. Apesar da violência, num ambiente marcado por estruturas de poder patriarcal, a protagonista, submissa e lacerada entre dever e desejo, esforça-se por manter-se fiel ao marido. À medida que a relação se torna insustentável, encontra no recolhimento do convento a possibilidade de resistência e libertação interior. Um retrato austero e intimista da clausura feminina que antecipa o olhar singular da realizadora sobre o universo das mulheres.

Margarida Gil é uma importante cineasta portuguesa após o 25 de abril, tendo sido, ainda, assistente de realização em diversas obras do realizador João César Monteiro. Juntos fundaram a produtora Monteiro & Gil, cuja primeira produção fílmica foi “Relação Fiel e Verdadeira”, também primeira longa-metragem de ficção de Margarida Gil.

As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva às terças-feiras, às 21h30. A entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Até terça-feira!


quinta-feira, 29 de maio de 2025

Noite de Estreia (1978) de John Cassavetes



por António Cruz Mendes
 
Com Noite de Estreia, encerramos o ciclo que dedicamos a John Cassavetes. Do realizador, já nos deu conta Jessica Ferreiro na Folha de Sala que redigiu para Sombras, onde nos chama a atenção para o lugar ocupado por ele no chamado “cinema independente” americano: os seus filmes são de baixo orçamento, dispensam grandes recursos técnicos e afastam-se dos cânones dominantes em Hollywood para nos oferecer uma imagem crua da vida de pessoas comuns. Um pequeno grupo de actores e de figurantes repete-se em várias das suas obras, o que contribui também para que todas elas compartilhem um evidente “ar de família”.
 
O filme que apresentamos hoje debruça-se sobre o mundo do teatro, da vida das pessoas que lhe dão forma – dramaturgos, encenadores, actores e daqueles que mais de perto os acompanham. Algumas cenas decorrem no palco. A câmara, fixa e em posição frontal, oferece-nos então a perspectiva do espectador. Outras vezes, perscruta os bastidores, aproxima-se das personagens e sonda o seu multifacetado mundo interior.
 
Mas, aqui, queria sobretudo destacar o papel de Gena Rowlands, que morreu há dez meses com 94 anos de idade e que foi uma atriz excepcional. Neste ciclo que dedicamos a Cassavetes pudemos vê-la em Rostos e em Uma mulher sob influência e, agora, podemos comprovar de novo a sua excelência em mais um filme do seu marido.
 
Em Noite de estreia, Gena Rowlans interpreta um duplo papel, como Virgínia e como Myrtle Gordon. Virgínia é a personagem central de uma peça de teatro, “A segunda mulher”, escrita por Sarah Goode e encenada por Many Victor. É ela que, vendo arrefecer a paixão que já sentiu pelo seu companheiro, decide visitar o seu primeiro marido, agora casado com uma outra mulher, de quem teve vários filhos. A presença de Myrtle no boçal e confuso meio doméstico onde é introduzida é patética. A sua juventude e as suas paixões inscrevem-se num passado que ela percebe já não ser recuperável. E a mesma intuição está presente em Myrtle que, na peça, contracena com Maurice, o seu próprio marido. Ficção e realidade confundem-se. Quando se ensaia a cena em que ele a esbofeteia, quem é que a agride de facto?
 
Sabemos da importância do Actors Studio na formação de muitos actores, nos Estados Unidos. Inspirado no “método” de Stanislavski, aí desenvolvido por Lee Strasberg, pretende-se que os actores não se limitem a “representar”, usando técnicas convencionais, mas se fundam com a personagem que interpretam, descobrindo neles próprios o tipo de afinidades que as caracterizam. Myrtle sabe que, interpretando Virgínia, é a perda da sua própria juventude que terá de assumir. Virgínia colar-se-á à sua própria pele e mostrá-la-á aos olhos do seu público como a “velha” que Sarah Goode já é e que ela recusa com todas as suas forças poder vir a ser. Assim, a sua interpretação torna-se impraticável, os ensaios decorrem de uma forma caótica, a tensão entre a actriz, a autora e o encenador evolui num crescendo e, à medida que se aproxima da noite de estreia, adivinha-se um estrondoso fracasso.
 
O acidente que vitima uma sua admiradora vai potenciar esta situação. O fantasma da jovem atropelada surge à actriz sob a forma da jovem Myrtle e, por fim, tudo se decide num combate mortal entre as duas. Só assassinando esse fantasma Myrtle poderá encarnar Virgínia.
 
Finalmente, chega a noite de estreia. Myrtle chega ao teatro destroçada, mas, com a ajuda de muito café, consegue recompor-se. No palco, ela e Maurice improvisam. Perante o desconforto de Sarah Goode e o olhar irónico de Many Victor, afastam-se do guião e transformam “A segunda mulher” numa comédia. O público reage efusivamente. O teatro que, afinal, é fingimento, venceu. 
 
 

domingo, 25 de maio de 2025

399ª e 400ª sessão: dia 27 e 29 de Maio (Terça e Quinta-feira), às 21h30 e 20h30, respectivamente


“Noite de Estreia” de John Cassavetes e “Bom Povo Português” de Rui Simões, esta semana no Lucky Star- Cineclube de Braga

Para o mês de Maio, o Lucky Star- Cineclube de Braga programou uma pequena retrospectiva do realizador estadunidense John Cassavetes, importante propulsor do cinema independente. As sessões deste ciclo ocorrem, como habitualmente, às terças-feiras na biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, às 21h30.
 
Ainda em Maio, realizar-se-ão duas sessões especiais de “Cinema em Revolução”, em parceria com a associação cultural Terminal Complex e no âmbito da exposição “Somos Todos Capitães – 50 anos em Liberdade”. Estas sessões ocorrem no gnration nas duas últimas quintas-feiras do mês, às 20h30.

Esta terça-feira 27 de maio, encerra-se a retrospectiva de John Cassavetes com o filme Noite de Estreia (1977), e na quinta-feira, 29 de maio, no gnration, será exibido o filme Bom Povo Português (1980) de Rui Simões. Esta sessão contará com a presentação do realizador.

Em Noite de Estreia, uma atriz veterana sente as pressões do trabalho e vê a sua vida a desmoronar-se diante dos olhos do público e dos colegas, na véspera da estreia de uma peça de teatro. Com uma performance magistral de Gena Rowlands, a narrativa explora o “ser mulher” no mundo artístico e as aflições existênciais emaranhadas no ofício, através de um retrato imersivo e angustiante dos bastidores do teatro, onde a linha entre a realidade e a performance se desfaz.
 
Bom Povo Português é um documento único sobre a agitação social e política durante o PREC – Período Revolucionário em Curso, de 25 de Abril de 1974 até 25 de novembro de 1975. Recorrendo a material de arquivo de diversas fontes visuais e sonoras, “Bom Povo Português” juntamente com “Deus Pátria Autoridade” (1975) são o díptico incontornável no cinema português que retrata a passagem de um regime fascista para a democracia através da utopia de um processo revolucionário em que o povo foi protagonista. O filme revela as tensões entre a tradição e a modernidade, o conservadorismo e o desejo de mudança, oferecendo uma reflexão profunda sobre os caminhos futuros de Portugal.

As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva às terças-feiras, às 21h30. A entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre. As sessões especiais no gnration ocorrem às quintas-feiras, às 20h30, e a entrada é gratuita.
 
Até terça e quinta-feira!

quinta-feira, 22 de maio de 2025

Uma Mulher Sob Influência (1974) de John Cassavetes



por Catarina Bernardo 

Uma Mulher sob Influência não é apenas um drama sobre saúde mental, mas também é um retrato devastador da fragilidade humana diante das expectativas sociais. Sobre como a sociedade não consegue lidar com aqueles que fogem aos padrões vigentes.
 
O filme leva-nos a conhecer Mabel, uma mulher incompreendida por aqueles que a rodeiam, que tenta corresponder ao papel de esposa e mãe ideal, construídos socialmente. Ao longo do filme, a protagonista sente-se cada vez mais sufocada por um ambiente que exige contenção, normalidade e obediência.
 
Cassavetes tentou criar um retrato humano e autêntico de uma mulher vista como “louca” por aqueles que lhe são próximos. Na verdade, é uma mulher sensível, generosa e amorosa, cuja instabilidade emocional é uma consequência das pressões sociais e que piora, ao longo do filme, devido à falta de compreensão e sensibilidade da sua família.
 
O realizador mostra-nos como as emoções e as relações humanas são complexas e não lineares, compostas por sentimentos contraditórios, gestos ambíguos e com falhas frequentes de comunicação. A forma como os personagens ao redor de Mabel (incluindo o marido, Nick) lidam com a sua saúde mental, revela a profunda falta de ferramentas emocionais com que muitas pessoas enfrentam a diferença. Nick ama Mabel, mas a sua reação é marcada pela impulsividade, censura ou repreensão e, por vezes, violência emocional. O filme mostra que a verdadeira "doença" pode estar numa sociedade incapaz de escutar, acolher e aceitar a fragilidade do outro.
 
Quanto a instabilidade emocional de Mabel se acentua, é internada num hospital psiquiátrico durante seis meses, não apenas como medida terapêutica (ineficaz), mas também como gesto de silenciamento por parte de sua família. O internamento não consegue ajudar Mabel, nem as suas dificuldades são compreendidas pelos demais. Este serve apenas para afastá-la, de modo a preservar, de certa forma, a imagem da família. O realizador retrata este aspecto para fazer uma crítica ao modo como as instituições, as pessoas e a sociedade, em geral, encara a doença psiquiátrica, sendo, por isso, incapaz de compreender, oferecer apoio e ajudar ativamente. As soluções simplistas e desumanizadoras, como o confinamento, parecem servir apenas para afastar a pessoa com doença psiquiátrica para não perturbar a convivência familiar e em sociedade.
 
A crítica proposta pelo diretor ressalta a tendência da sociedade em excluir ou reprimir o indivíduo, ao invés de enfrentarem as questões emocionais e psicológicas de maneira saudável. Esse afastamento reflete a recusa em lidar com a complexidade da saúde mental em prol de um padrão normativo estabelecido que define o que é ser “normal”.
 
No desfecho do filme, ao retornar do hospital psiquiátrico, Mabel emerge sem a espontaneidade que anteriormente a definia. Sua identidade foi gradualmente apagada durante o período de internação, levando-a a uma condição de subordinação. Essa transformação simboliza a perda da autenticidade e da liberdade emocional, resultante da tentativa de controlo e exclusão promovida pela sua família.
 
Cassavetes optou por uma mise-en-scène naturalista, trazendo um estilo mais cru e realista que resulta numa autenticidade emocional que se distancia do típico filme clássico de Hollywood. O filme tem aparência documental devido ao uso de câmara à mão e do recurso aos planos longos. O facto de utilizar bastante luz natural nas cenas, transmite uma sensação claustrofóbica e íntima do ambiente doméstico. A proximidade da câmara nos rostos dos atores, uma característica marcante nos filmes de Cassavetes, contribui para intensificar essa sensação de intimidade e desconforto.
 
Inicialmente, John Cassavetes tinha escrito e idealizado esta obra para ser uma peça de teatro, que seria interpretado por sua esposa, Gena Rowlands. No entanto, ela considerou que não seria uma boa ideia, pois a carga emocional da personagem Mabel seria tão intensa que se tornaria desgastante ter de interpretá-la diariamente. A própria atriz chegou a comentar que, após as gravações do filme, precisou de uma pausa para recuperar do impacto emocional causado pelo papel.
 
Apesar do filme parecer improvisado em algumas partes, os atores seguiram o guião. No entanto, os gestos, o silêncio e as pausas ao longo do filme transmitem uma sensação de improvisação e uma profunda sensibilidade emocional. 
 
 

domingo, 18 de maio de 2025

397ª e 398ª sessão: dia 20 e 22 de Maio (Terça e Quinta-feira), às 21h30 e 20h30, respectivamente


“Uma Mulher Sob Influência” de John Cassavetes e “Aqueles Que Ficaram (Em Toda a Parte Todo o Mundo Tem)” de Marianela Valverde, esta terça e quinta
 

Para o mês de Maio, o Lucky Star- Cineclube de Braga programou uma pequena retrospectiva do realizador estadunidense John Cassavetes, importante propulsor do cinema independente. As sessões deste ciclo ocorrerão, como habitualmente, às terças-feiras na biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, às 21h30. Ainda em Maio, realizar-se-ão duas sessões especiais de “Cinema em Revolução”, em parceria com a associação cultural Terminal Complex e no âmbito da exposição “Somos Todos Capitães – 50 anos em Liberdade”. Estas sessões irão ocorrer no gnration nas duas últimas quintas-feiras do mês, às 20h30.

Esta terça-feira 20 de maio, exibimos o filme Uma Mulher Sob Influência (1974), de John Cassavetes e no dia 22 de maio, quinta-feira, será exibido o filme Aqueles Que Ficaram Em Toda a Parte Todo o Mundo Tem (2024) de Marianela Valverde.

Em Uma Mulher Sob Influência, Mabel (Gena Rowlands) é uma dona de casa em constante batalha com seus demónios internos e com o peso simbólico de ser mulher, enquanto o seu marido, Nick (Peter Falk), tenta lidar com as consequências da sua saúde mental fragilizada. Nesta trama visceral e sensível, Cassavetes explora os limites do amor, da sanidade e da família, oferecendo um retrato cru e imersivo das relações humanas no contexto doméstico. O filme é notável pela improvisação dos diálogos e pela performance de Gena Rowlands, bem como pela abordagem inovadora e realista, sem recorrer a artifícios cinematográficos convencionais.

Com um olhar intimista e profundamente humano, Aqueles Que Ficaram Em Toda a Parte Todo o Mundo Tem explora as marcas deixadas pela ditadura do Estado Novo em Portugal. Através de relatos de 28 familiares, filhos e filhas de opositores políticos, o filme investiga o legado de uma época de repressão e como as histórias pessoais se entrelaçam com a memória coletiva. Uma reflexão poderosa sobre resistência, identidade e os ecos do passado no presente. A sessão contará com a presença da realizadora e investigadora Marianela Valverde.

As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva às terças-feiras, às 21h30. A entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre. As sessões especiais, no gnration ocorrem às quintas, às 20h30, e têm entrada livre.

Até a próxima terça e quinta-feira!


quarta-feira, 14 de maio de 2025

Rostos (1968) de John Cassavetes



por Alexandra Barros
 
Segundo a sabedoria popular, quem vê caras não vê corações. Neste filme, porém, é através dos rostos que Cassavetes procura captar e revelar o que se passa nos corações. O que querem mostrar as suas personagens e o que querem elas que não se veja?
 
Pertencentes à classe média da América dos anos 60, vivem em casas grandes, profusamente decoradas e perfeitamente apetrechadas com os objetos e equipamentos vinculados ao “greatAmerican Way of Life. Têm bons carros, conforto material e financeiro e, nalguns casos, cargos sonantes. Procuram projetar uma imagem de sucesso através da “qualidade de vida” que alcançaram. Bebem muito, cantam, dançam e riem espalhafatosamente, ostensivamente. Mas as risadas hiperbólicas são, em grande medida, auto-ilusões. Richard, Jeannie, Maria e os que os rodeiam, não riem porque estão felizes. Riem para não se confrontarem com o facto de se sentirem inadequados, inseguros, incapazes de comunicar, receosos de amar, sós. Tendo crescido numa sociedade dominada pelo consumismo, terão acreditado que a felicidade lhes seria proporcionada pelos bens materiais que o poderoso marketing se vai encarregando de impor.
 
O que lhes falta então? Estar bem consigo próprios, com os outros e com a vida, em geral. Querem ser acarinhados, desejados, admirados, mas começam a aperceber-se que aquilo que alcançaram ao longo da vida de pouco lhes serve para obter o que realmente desejam. São estes desejos, angústias e conflitos interiores que interessam a Cassavetes. Para os revelar, procura registar com a câmara os trejeitos involuntários, as micro-expressões, tudo o que não pode deixar de irromper na superfície das personas que todos criamos para interagir com os outros nas mais variadas circunstâncias: no trabalho, em eventos sociais ou mesmo na intimidade. Hoje, esta dissociação entre quem queremos parecer e quem realmente somos está mais exposta do que nunca nas redes sociais, com curadoria cuidada de perfis e publicações, para transformar os seus utilizadores nas pessoas sensíveis, engajadas, divertidas, corajosas, informadas, inteligentes, ou seja lá o que for que dê likes e aprovação.
 
Acerca de Cassavetes, diz-se muito que amava os atores. Sendo um realizador devotado à exploração da natureza humana, Cassavetes procurava obter performances que fossem, de alguma forma, reveladoras. O que lhe interessava era, essencialmente, o que os atores, através das personagens que encarnavam, lhe poderiam dar, e como é que ele, por sua vez, poderia transmitir essas revelações aos espectadores. Por isso, os atores tinham liberdade para improvisar e interpretar as personagens como entendessem. Por isso, os seguia com a câmara na mão e, tantas vezes, preenchia o ecrã com os seus rostos. Neste filme, esses grandes planos estão provavelmente mais presentes do que em qualquer outro. O título do filme evoca, aliás, a importância destes close-ups. Cada rosto é simultaneamente um “palco” para a imagem que a personagem quer projetar e uma janela (mais ou menos) mal fechada para o que lhe vai na alma.
 
Richard e Maria formam o casal que está no centro do filme. Estão perdidos individualmente e estão perdidos um para o outro, cada um acantonado nos seus egoísmos e nos seus descontentamentos. Farto do seu dia vazio fora de casa, Richard quer-se deitar e quer, principalmente, o consolo da intimidade física. Maria, farta do seu dia vazio em casa, quer sair para ver um filme: “Hoje há um filme de Bergman aqui perto.”, ao que Richard responde: “Esta noite não me apetece ficar deprimido”. Instantes depois confrontar-se-á com uma evidência: ele e Maria estão tão deprimidos quanto as personagens dos filmes de Bergman.
 
Esta referência a Bergman num filme que é ele próprio bergmaniano não é o único momento de metacinema de Rostos. Richard, presidente de administração de uma empresa de investimentos financeiros, é responsável por selecionar filmes em que vale a pena investir. No início do filme, ele e outros membros da indústria do cinema preparam-se para ver um filme, que será submetido ao seu julgamento. Quando o visionamento arranca, o título Rostos enche o (nosso) ecrã, criando uma justaposição ambígua entre o filme a que estamos a assistir e o filme-dentro-do-filme, sujeito à avaliação de Richard. Esta inside joke evoca os problemas que o próprio Cassavetes teve com os estúdios de Hollywood, nomeadamente a proscrição após os confrontos com o produtor do seu filme anterior. 
 
Produzido pelo próprio realizador e amigos, e com baixo orçamento, Rostos foi feito graças à dedicação e boa vontade dos atores e técnicos que nele trabalharam. Foi aclamado pela crítica e recebeu vários prémios em festivais de cinema, tendo até sido nomeado para três Óscares, os prémios mais importantes do sistema que o rejeitara. É unanimemente considerado um dos mais icónicos filmes de Cassavetes e, em 2011, foi selecionado para preservação no National Film Registry dos EUA, pela sua relevância cultural, histórica e estética. 
 
 

domingo, 11 de maio de 2025

396ª sessão: dia 13 de Maio (Terça-Feira), às 21h30


“Rostos” de John Cassavetes, esta terça-feira
 
Para o mês de Maio, o Lucky Star - Cineclube de Braga programou uma pequena retrospectiva do realizador estadunidense John Cassavetes, importante propulsor do cinema independente. As sessões deste ciclo ocorrerão, como habitualmente, às terças-feiras na biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, às 21h30.
 
Ainda em Maio, realizar-se-ão duas sessões especiais de “Cinema em Revolução”, em parceria com a associação Terminal Complex e no âmbito da exposição “Somos Todos Capitães – 50 anos em Liberdade”. Estas sessões irão ocorrer no gnration, nas duas últimas quintas-feiras do mês, às 20h30.

Esta terça-feira, 13 de maio, exibimos o filme Rostos (1968), de Cassavetes. Num bar, Richard e Freddie conhecem Jeannie, uma call-girl que os leva para sua casa. Ao retornar, Richard tem uma discussão com sua esposa, Maria, e decide voltar para Jeannie. Maria, por sua vez, resolve também passar a noite fora. Assim, inicia-se uma noite carregada de tensão emocional e revelações íntimas sobre os limites do amor e do casamento. A narrativa acompanha a desintegração do relacionamento do casal através de confrontos e diálogos intensos.

A partir de experiências que testemunhou, Cassavetes retrata a inquietação que muitos casamentos da classe média americana da época exalavam, fruto da incapacidade das pessoas comunicarem genuinamente e estabelecerem ligações emocionais profundas. Cassavetes afirmou que o propósito fundamental da obra era expor o quão raramente os seres humanos escutam e conversam de forma autêntica.

O filme foi rodado em 16mm, com todo o cenário iluminado de modo a permitir maior liberdade de movimento aos actores. Na maioria das cenas, optou-se pela utilização de microfones de lapela para evitar o recurso a equipamentos sonoros mais intrusivos que poderiam comprometer a espontaneidade das interpretações.
 
As filmagens prolongaram-se por seis meses, enquanto a montagem e edição levaram cerca de três anos a ser concluídas. No total, Cassavetes registou perto de 237 mil metros de película. Rostos foi distinguido com três nomeações para os Óscares: Melhor Argumento Original, Melhor Actor Secundário para Seymour Cassel e Melhor Actriz Secundária para Lynn Carlin.

As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva às terças-feiras, às 21h30. A entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Até terça!


quarta-feira, 7 de maio de 2025

Sombras (1959) de John Cassavetes



por Jessica Sérgio Ferreiro
 
O filme Sombras, primeira longa-metragem do então actor John Cassavetes, não foi, nem é, apenas um primeiro filme, foi um gesto inaugural que rompeu com a gramática clássica de Hollywood e demarcou o “cinema de autor” nos Estados Unidos, propulsionando o cinema independente norte-americano. Produzido com escasso financiamento e limitações técnicas, a sua originalidade e estética resulta destes obstáculos e da vontade de fazer filme sobre “pessoas reais”, como proferido por Cassavetes. Filmado com câmara à mão de 16mm (portátil), Sombras rompe com o formalismo convencional do cinema produzido pelos grandes estúdios e deriva para uma abordagem improvisada, crua e intimista que, influenciado pelo neorrealismo italiano e pela estética documental, remete-nos, ainda, para o Direct Cinema americano e, em certa medida, para o Cinema Verité.
 
Poder-se-á deduzir que a experiência de John Cassavetes enquanto actor terá tido, também, um profundo impacto na forma como realizava e orientava as narrativas fílmicas. Ao dar liberdade aos actores para improvisarem os seus diálogos, a narrativa materializa-se e sedimenta-se na relação, ou seja, na interação espontânea e improvisada entre os actores e as suas personagens, como acontece na vida real. Esta espontaneidade acrescenta profundidade e complexidade às personagens interpretadas, bem como ao emaranhado de relações que compõem a sua realidade social – pequenos mundos interiores oprimidos e conspurcados, mas também impelidos e estimulados pelo exterior e pelo “outro”.
 
Assim, num gesto de resistência, Cassavetes optou pelo risco em vez da convenção: preferiu uma narrativa aberta com personagens em constante transformação (os actores não são profissionais e recorrem à improvisação), em vez de uma história formulaica, baseada em arquétipos, lugares-comuns e clichés. Escolheu a imperfeição deliberada em detrimento de uma produção polida e tecnicamente irrepreensível. A versão final de 1959 resultou da regravação de algumas cenas e de uma nova montagem, após o próprio Cassavetes rejeitar a primeira versão — um processo que procurava reflectir o real e a “verdade” emocional, procurando encaixar a individualidade, suas idiossincrasias e fluidez, em contextos socioculturais determinantes e igualmente complexos, marca central de toda a sua obra cinematográfica.
 
A história do filme gira em torno de três irmãos afro-americanos (dois deles de pele clara) que vivem em Manhattan, nos anos 50: Hugh, um cantor de jazz desiludido; Ben, um jovem irreverente e boémio; Lelia, a irmã mais nova que se envolve com um homem branco que desconhece a sua origem racial. A revelação desencadeia uma crise que expõe o preconceito latente na sociedade, mesmo nas camadas mais liberais. A trama não é linear, é construída em torno de episódios e encontros que exploram temas como identificação/pertença e alienação. A dimensão racial é tratada com ambiguidade: os protagonistas, de pele clara, experienciam crises identitárias que põem em causa os próprios limites da perceção social e racial. 
 
 O filme destaca-se, assim, por abordar o racismo e as complexas dinâmicas interpessoais num país ainda imerso na segregação racial, antes da promulgação do Civil Rights Act de 1964, mas numa época em que a luta contra a segregação já pulsava com força e urgência. Sombras consegue aludir a isto tudo numa narrativa fragmentada, com personagens não unidimensionais e sem rigidez identitária, mas profundamente influenciadas pelo seu contexto, (con)vivências com o “outro” e, ainda, submetidas às imagens dominantes do “ideal” (exemplo: cartaz de Brigitte Bardot que a personagem Lelia observa atentamente).
 
O impacto de Sombras reside tanto na sua forma quanto no seu conteúdo. Do ponto de vista formal, o uso do improviso — especialmente nos diálogos — torna os personagens instáveis, emocionalmente imprevisíveis e, sobretudo, vivas. A câmara à mão, também instável, segue esses impulsos com a fluidez quase documental. No plano temático, o filme propõe uma abordagem subtil e provocadora da questão racial, sobretudo através da performance ambígua da personagem Lelia, à qual se sobrepõe, ainda, a categoria de “mulher”, sua condição, derivas e subversões. O desajuste e o mal-estar em Ben são também gritantes, limitando-se, por vezes, a reagir de forma impulsiva e/ou agressiva ou simplesmente resigna-se à apatia. Hugh, seguro quanto à sua pertença “racial”, esforça-se por corresponder a um ideal de figura paternal e ser capaz de dar suporte emocional, moral e financeiro aos mais novos. Contudo, tem dificuldades em vingar no mundo artístico, devido ao racismo e à cultura de consumo, superficial e chauvinista, que prefere exibições de mulheres seminuas do que à sua performance musical.
 
Assim, as três personagens transitam entre mundos sem verdadeiramente se encaixarem em algum. A crise racial, mas sobretudo existencial, corresponde a crises “identitárias” — pessoal, social e até cinematográfica –, expressadas ou exteriorizadas nos seus constantes reajustes, ou seja, nos reposicionamentos individuais. Em suma, as identidades expressas são meras “sombras”, são situacionais e relacionais, não dependem de uma essência fixa (essa sim “ficcionada”, imaginada, imposta e projectada), mas sim de um âmago em constante construção.
 
Cassavetes rejeita o “panfleto propagandístico” e prefere o incómodo. O racismo não é um “tema” meramente discursivo, é uma presença fantasmática que emerge nos momentos mais mundanos, no quotidiano das personagens. Esse desconforto é amplificado pela estrutura episódica e pela recusa de uma resolução clássica. Sombras termina como começou, com incerteza. O jazz, omnipresente na banda sonora (música de Charles Mingus), não é mero acompanhamento: é a matriz estética do filme. A estrutura narrativa é jazzística — feita de improviso, de rupturas, de variações sobre uma mesma “melodia”. Este estilo musical, que também quebra convenções e privilegia o improviso, faz par e harmonia com os diálogos inventados e com a movimentação da câmara irrequieta, livre e próxima, quase voyeurista, que acompanha os actores sem filtros ou orientações, sem conhecer, ainda, o seu devir. 
 
 

domingo, 4 de maio de 2025

395ª sessão: dia 6 de Maio (Terça-Feira), às 21h30


“Sombras” de John Cassavetes, esta terça-feira no Lucky Star- Cineclube de Braga
 
Para o mês de Maio, o Lucky Star- Cineclube de Braga programou uma pequena retrospectiva do realizador estadunidense John Cassavetes, importante propulsor do cinema independente. As sessões deste ciclo ocorrerão, como habitualmente, às terças-feiras na biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, às 21h30.
 
Ainda em Maio, realizar-se-ão duas sessões especiais de “Cinema em Revolução”, em parceria com a associação Terminal Complex e no âmbito da exposição “Somos Todos Capitães – 50 anos em Liberdade”. Estas sessões irão ocorrer no gnration, nas duas últimas quintas-feiras do mês, às 20h30.

John Nicholas Cassavetes foi um actor e realizador estadunidense que ficou conhecido como o “pai do cinema independente dos Estados Unidos”. Esta terça-feira, 6 de maio, iniciamos o ciclo com a exibição do filme Sombras (1959).
 
Esta primeira longa-metragem de Cassavetes foi filmada nas ruas de Nova York com uma câmara portátil de 16 mm. A equipa de filmagens era composta maioritariamente por colegas do realizador e voluntários que se ofereceram para ajudar no projeto. As filmagens decorreram na cidade de Nova Iorque, sem autorização para gravar em espaços públicos, o que obrigou toda a equipa e elenco a apressarem-se para captar as cenas antes de serem expulsos pela polícia.
 
Sombras foi incluído no Registo Nacional de Filmes dos Estados Unidos em 1993, pela Biblioteca do Congresso, por ser “cultural, histórica e esteticamente significante”. Devido ao sucesso do filme, o realizador John Cassavetes recebeu várias ofertas de grandes estúdios, o que resultou na realização de dois filmes de estúdio, Too Late Blues (1961) e A Child is Waiting (1963).
 
Com diálogos improvisados, actores não profissionais e uma câmara inquieta, Sombras marca o nascimento do cinema independente americano. John Cassavetes rompe com os padrões de Hollywood para criar um retrato cru e íntimo das relações humanas na Nova Iorque dos anos 1950. Ao som do jazz de Charles Mingus, Sombras mergulha na vida de três irmãos que enfrentam dilemas raciais, afectivos e de identidade. Entre notas dissonantes e silêncios reveladores, Cassavetes constrói um filme tão improvisado quanto a música que o acompanha.

As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva às terças-feiras, às 21h30. A entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Até terça-feira!


quinta-feira, 1 de maio de 2025

A História de Souleymane (2024) de Boris Lojkine



por António Cruz Mendes

Todo o cinema tem uma dimensão política na medida em que nos propõe uma visão do mundo que reflecte interesses, valores e crenças, e recorre a processos retóricos que visam convencer-nos da sua justeza. Apenas existem filmes cuja mensagem política é mais ou menos subliminar e outros onde ela é explícita. Isso pode revelar-se, desde logo, no assunto tratado. É esse o caso de A História de Souleymane. O seu tema é o da imigração, ou melhor, o da condição imigrante e, sobre isso, confrontamo-nos todos os dias com posicionamentos políticos diferentes.

Vivemos todos num mundo cada vez mais pequeno. Chamamos a isso “a globalização”. Sabemos que ela pode assumir diferentes aspectos. Quando falamos de globalização, podemos estar a falar da livre circulação de capitais, de mercadorias ou de ideias. Os meios tecnológicos de que dispomos permitem que ela se faça com uma facilidade e uma rapidez cada vez maior. Mas, podemos estar a falar também dos grandes movimentos migratórios que põem em contacto povos com diferentes costumes e tradições. Confrontamo-nos com as suas consequências, com a forma como ela nos afecta e com as diferentes reacções que suscita. As respostas que lhe damos são necessariamente políticas.

A História de Souleymane é um filme político desde logo pelo seu tema, mas é-o também noutro sentido. O seu final aberto obriga-nos a tomar uma posição: expostas as verdadeiras razões que levaram Souleymane Sangaré a emigrar clandestinamente para França, nós, espectadores, gostaríamos que as autoridades francesas lhe concedessem asilo ou não?

Podemos entender grande parte do filme como um preâmbulo à emocionante cena final onde se vai decidir o seu futuro. Afinal, todas as sequências anteriores, que nos descrevem a violência e a vulnerabilidade da condição do imigrante clandestino e, neste caso, daqueles que trabalham nas plataformas de distribuição da uber (será difícil continuarmos a olhar para essas pessoas com os mesmos olhos depois de temos visto este filme), permanentemente dependentes da boa ou da má vontade de desconhecidos, são uma demonstração prática da força das razões que levam muitas pessoas a suportar essa experiência.

A personagem de Souleymane Sangaré não é interpretada por um actor profissional, mas por alguém que viveu de facto os acontecimentos de que o filme dá conta. Vemo-lo praticamente em todas as cenas. O seu quotidiano decorre num ritmo frenético, a pedalar no meio dos carros, na urgência dos seus contactos com clientes e fornecedores, na corrida para o autocarro que o há-de conduzir ao albergue onde pode dormir, nas fugazes relações que mantém com outros imigrantes ou com Emmanuel, que lhe “aluga” a sua licença de trabalho... O tempo voa, aproxima-se a hora da entrevista com a agente da OFRA e ele tem de memorizar a “história” que lhe poderá dar direito à condição de refugiado.

Entretanto, ficamos a saber dos perigos que enfrentou para poder chegar a França e assistimos à ruptura da sua relação com Kadiatou, a namorada que deixou na Guiné. Depois de conhecida a história de Souleymane, das condições da sua “(sobre)vivência num mundo inóspito” (o tema do ciclo que com este filme se encerra) poderíamos concluir com uma afirmação muito ouvida nos filmes “de tribunal”: “that’s the case”. Cumpre-nos a nós, agora, decidir: Quem merece ser condenado, quem merece o nosso reconhecimento? 

 

 Folha de Sala