A electricidade chegou, finalmente, a um bairro popular e, na sequência inicial do filme, os seus moradores reúnem-se, à espera de que, nas ruas e nas casas, as luzes se acendam. No centro dos festejos, dirigentes do PCI. A comunidade une-se em torno do partido a quem devem esse novo salto para a modernidade.
“O sol do futuro” é uma metáfora da utopia comunista. Como, “a nova aurora”, “os amanhãs que cantam” ou “o horizonte vermelho”. Num mundo de injustiças, de alienação, de pobreza, a vida será suportável sem o sonho de um novo mundo? E se ele se esvai depois dos acontecimentos que ensombraram a Hungria em 1956, esmagada a revolução democrática por aqueles que, até então, eram vistos como os arautos da libertação? A Ennio, dirigente do Partido Comunista de Itália, tantos anos dedicados a uma causa que agora vê traída, resta-lhe uma saída: o suicídio.
Este seria o tema do novo filme que Giovanni se propõe realizar. Giovanni é um alter ego de Nanni Moretti e as angústias e os dilemas do pós-comunismo tinham sido já tratadas por ele em Palombella Rosa e em A Coisa. É, portanto, um tema muito “morettiano”.
A acção passa-se em Itália, num município governado pelo Partido Comunista Italiano (PCI), onde a convite das autoridades locais, um circo húngaro monta o seu espectáculo... Porém, esse é apenas um filme dentro de outro filme, onde o protagonista é o próprio Giovanni e o seu tema são as dificuldades e as dúvidas que o assaltam durante a realização.
Todos nos lembramos de filmes que têm o próprio cinema e os seus bastidores como tema. 8½, de Fellini, ou A Noite Americana, de Truffaut, por exemplo. Nanni Moretti retoma à sua maneira essa tradição. Ou seja, num registo habitualmente designado como comédia dramática.
A sua mulher e produtora quer separar-se dele, uma actriz improvisa e afasta-se do guião e até mesmo entre os animais selvagens do circo surgem incompatibilidades “nacionais”. O seu co-produtor faliu e não há dinheiro para prosseguir as filmagens. As demandas do mercado deixaram de ser compatíveis com a sua ideia de cinema. Tudo e todos parecem conspirar contra os propósitos de Giovanni. Mas, é impossível ver sem um sorriso a cena do jantar com o namorado da filha, a da entrevista com os potenciais financiadores da Netflix ou aquela onde ele intervém nas filmagens de um outro filme produzido pela sua mulher para discutir o lugar da violência no cinema.
As reflexões metalinguísticas estão, aliás, estão sempre presentes em O Sol do Futuro e remetem-nos para uma série de referências cinéfilas. Fala-se de Cassavetes, de S. Miguel tinha um Galo, dos Taviani, de Apoclipse Now, do Copolla... A dada altura a câmara filma uma plateia que observa, extasiada, a sequência final de La Dolce Vita. Mas, esse momento mágico, é logo interrompido pelo discurso crítico de um jovem que questiona a sua namorada acerca da natureza de classe dos seus protagonistas e da dimensão política do filme.
Os problemas pessoais, profissionais e artísticos de Giovanni confundem-se e tudo concorre para uma catástrofe. Mas, afinal, uma equipa de analistas ao serviço de produtores coreanos reconhece a excelência do argumento. Filmada em posição frontal, encarando os espectadores, uma jovem dá-nos o seu veredicto: “É um filme sobre a morte da arte e do comunismo. A morte do amor e da moral. É, sem dúvida, um filme sobre a morte de tudo”. “Certo”, reage Giovanni. Mas, deverá, terá de ser assim?
A cena final, a do suicídio de Ennio, é revista e, embora sem o timing que as regras da Netflix aconselhariam, pode dizer-se que o filme termina com um momento WTF, uma festiva manifestação onde a infidelidade à História é assumida, todos os anacronismos e inverosimilhanças são permitidos – mas a vida, a liberdade e a esperança triunfam.
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