quarta-feira, 30 de julho de 2025

O Grande Engarrafamento (1979) de Luigi Comencini



por António Cruz Mendes
 
Numa das últimas sequências do filme, uma rapariga canta em cima do capot de um carro: “Engarrafamento, paresia da vida”. Poderá o filme ser lido ser lido como uma metáfora de uma vida paradoxalmente paralisada por um progresso alimentado por um insaciável desejo consumo? Os carros acumulam-se. Vêm-se carcaças de automóveis amontoadas na berma e carros parados na estrada. Quem se desloca de carro é facilmente ultrapassado por quem anda a pé ou de bicicleta. Mas, isso pouco importa, porque, diz-nos alguém, eles já não são sobretudo veículos de transporte, mas símbolos de status. O Jaguar de De Benedetti é invejado por um jovem. “Quanto custa?”, quer ele saber. Não importa se está parado como os outros.
 
O dinheiro é rei onde tudo pode ser reconduzido à condição de mercadoria. “Ou se é bom ou se é pobre”, explica-nos o político “socialista”, para quem a pobreza anda sempre acompanhada pela maldade. Com dinheiro, tudo se pode comprar: um Jaguar, uma garrafa de água ou uma mulher. O avvocato De Benedetti pede ao seu lacaio para prometer um contrato à rapariga que canta porque ela o excita e o fã de Montefoschi, um actor famoso, está disposto a trocar os favores da sua esposa por um lugar de motorista na Cinecittá, porque gosta muito de cinema.
 
Há uma criança adormecida no banco traseiro de um carro. Na verdade, ela está a dormir há muitos anos. A “parálise da vida”, essa misteriosa doença do sono para a qual os médicos não encontram cura, não será também ela a expressão metafórica de uma sociedade alienada?
 
Estas podem se possíveis linhas interpretativas de O Grande Engarrafamento. Porém, para Luigi Comencini, “um filme deve suscitar sentimentos e não representar ideias”. Esse monumental engarrafamento de que o filme nos dá conta serve-nos, antes de tudo, como um pretexto para nos contar pequena histórias – a do pai que quer convencer a filha a abortar, porque não quer manchar o nome da família com um descendente filho de pai incógnito; a do político que vê numa burla que deixou inacabada uma obra pública uma oportunidade de negócio; a do casal que, romanticamente, se prepara para comemorar as suas bodas de prata, mas que um pequeno percalço basta para nos informar da fragilidade do seu relacionamento; a do “breve encontro” do motorista da Bimbo com a rapariga do violão, brutalmente interrompido por uma violação em grupo… Histórias que, no seu conjunto, nos dão uma imagem impressiva da vida e da sociedade italiana nos finais dos anos 70.
 
A arte de Luigi Comencini manifesta-se sobretudo num registo trágico-cómico que é frequente no cinema italiano. É nesse “contacto sempre mantido com a vitalidade maravilhosa da comédia italiana”, diz-nos Georges Legrand, “que Comencini se afirmou como um autor de filmes, no pleno sentido da palavra”. Em O Grande Engarrafamento não faltam pequenas notas de humor. Desde logo, os cartazes de “Respeite o limite de velocidade” e de “Modere a velocidade” que se podem entrever na berma da estrada, ou o rapaz que, diante dos carros parados, pede boleia para Nápoles. Há uma evidente ironia nas sequências que nos mostram o moribundo que, numa ambulância, impedida de chegar ao hospital, faz contas à indemnização que poderá receber se, por exemplo, lhe amputarem uma perna; ou a multidão de pessoas adultas a alimentar-se com comida para bebés; ou aquela onde a notícia de uma vitória futebolística da Itália faz, por momentos, esquecer as misérias da longa espera e dá azo a manifestações de júbilo patriótico; a do marido que, descobrindo a traição da mulher, ameaça “atirar-se para baixo de um carro”, obviamente, parado; ou, ainda, a que nos mostram um jovem que anseia por um encontro amoroso e que acaba por alcançar uma espécie de orgasmo através das batidas que provoca com o seu automóvel. Enfim, a própria situação de carros impedidos de andar tem a sua comicidade. Mas, trata-se de um humor ácido que nos oferece uma visão pessimista da humanidade e do mundo em que vivemos.
 
Em todo o filme, apenas uma breve nota de esperança: numa das cenas finais, quando, finalmente, parece que os carros vão retomar a sua marcha, a rapariga que foi violada e o motorista da Bimbo, estacionados lado a lado, estendem os braços e dão as mãos. 
 
 

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