terça-feira, 17 de dezembro de 2019

157ª sessão: dia 19 de Dezembro (Quinta-Feira), às 21h30


Para este Natal, escolhemos um filme de Roberto Rossellini que, mesmo não se passando na quadra -  como tem sido a regra nas nossas selecções -, foi planeado para estrear durante a época natalícia de 1950, pelo próprio realizador. A anteceder o filme, e como homenagem ao grande amigo Zé Lopes, exibiremos a curta-metragem Dá-me uma Gotinha de Água, de 2013. Será assim a nossa próxima sessão.

Em entrevista a Éric Rohmer e Jacques Rivette, em 1954, e dissertando sobre a liberdade sem freios do cristianismo, Rossellini diz que "quando se fala em liberdade, a primeira coisa que se acrescenta é: «a liberdade, sim, mas com uns certos limites». Não, até recusamos a liberdade abstracta porque é um sonho que seria demasiado belo. É por isso que encontro uma força imensa no cristianismo: porque a liberdade é absoluta, é verdadeiramente absoluta, na minha opinião.

"É um facto que nos dias que correm os homens querem ser livres para acreditar numa verdade que lhes é imposta; já não existem homens que procurem a sua própria verdade; é isto que me parece extraordinariamente paradoxal. Basta-lhes dizer com o dedo estendido à frente do nariz: isto é a verdade, para que se tornem perfeitamente felizes; querem acreditar, seguem-vos, são capazes do que quer que seja para conseguir acreditar nessa verdade. Mas nunca fizeram o mais pequeno esforço para a descobrir. É uma coisa que sempre se passou assim ao longo da história; o mundo deu passos em frente quando quando houve verdadeira liberdade. Esta liberdade apareceu muito raramente na História e no entanto sempre se falou de liberdade."

No capítulo dedicado ao filme da nossa próxima sessão, dentro do monumental livro que escreveu sobre Rossellini, Tag Gallagher informa que «o próximo filme de Rossellini tinha rodagem marcada para 17 de Janeiro de 1950 (o aniversário de Marcellina). Contrariamente a Stromboli terra di Dio, que tinha sido preparado no último momento, Francesco giullare di Dio (O Santo dos Pobrezinhos) andava a ser planeado há anos. Era "o filme que Roberto continuou a amar mais do que qualquer outro que tenha feito", observou Marcellina depois da morte de Rossellini [nota: Faldini & Fofi, I:205]. O espírito de Francesco paira sobre Stromboli, o filme anterior, e Europa 51, o filme seguinte.

«Roberto tinha exposto as suas ideias sobre Francisco de Assis a Jenia Reissar em Abril de 1948. “Rossellini explicou,” relatou ela a Selznick, aparentemente insensível às lisonjas de Roberto, “que é a história de um homem que é não-católico, que renunciou à riqueza pela pobreza para provar a si próprio e aos outros que o bem estar e a paz de espírito não se devem à riqueza, e são uma qualidade interior de que tanto os ricos como os pobres podem desfrutar... São Francisco foi seguido no seu exílio voluntário do mundo pela sua antiga amante, que renunciou ao seu grande amor por ele e se tornou sua seguidora fiel.” [nota: Selznick Archives: Reissar to Selznick, 21 de Abril de 1948.]

«“Paz de espírito” era um tema constante, mesmo que obscuro, para Roberto nos anos que se seguiram à morte de Romano. Tinha sido essa a busca de Karin em Stromboli e a de Edmund em Deutschland. No Outono de 1948, quando Roberto encontrou Morlion pela primeira vez, tinha confessado o seu orgulho em ter posto a sequência dos monges em Paisà “para mostrar a capacidade da fé em Deus para gerar a aceitação serena do sofrimento.” Isto foram lisonjas preparadas para Morlion, mas honestas. Os personagens de Rossellini iam ser os mesmos monges que tinha usado em Paisà e a mensagem de Rossellini ia ser a mesma também. Pretendia “fazer um filme em que São Francisco e Santa Clara, apesar das suas capacidades sobre-humanas para renunciar a tudo e se darem aos outros, se comportassem como indivíduos comuns—tal como os partidários de Paisà ou as personagens de Roma, Cidade Aberta, pessoas normais que tinham enfrentado a morte com singeleza, não porque tivessem uma vocação para o heroísmo mas apenas por quererem continuar humanos. Permanecer fiéis, mesmo a custo da própria vida, a certos valores que tinham interiorizado de forma profunda sem alguma vez se terem perguntado de forma explícita sobre eles.”[nota: Arosio, “Il figliol,” p. 306.]»

Já Jacques Lourcelles, no Dictionnaire, escreve que "usando ainda alguns princípios do neo-realismo (os cenários naturais, o som directo, pouco habitual em Itália, e os intérpretes não profissionais misturados com alguns raros profissionais), Rossellini quer exprimir pela própria forma, pela carne do seu filme, a mensagem franciscana. O despojamento e a austeridade frequentemente luminosa da imagem só existem para gerar uma jubilação e um êxtase plástico que são a modesta pedra que o cineasta pretende trazer para a construção (para a descoberta) da «felicidade perfeita». A arte de Rossellini nunca deixou de surpreender, até mesmo de chocar, porque por mais encarnada que fosse, também era a menos formalista. A sua mensagem final consiste em poucas palavras: não é o filme, mas a mensagem que conta; a obra é nada, é a realidade que é tudo. Esta mensagem é também o culminar do neo-realismo."

Até Quinta!

Diva - Simplesmente uma Homenagem (2007) de Manuel Mozos



por José Carlos Ary dos Santos

Minha querida Amália: 

Pediram-me para escrever um artigo e decidi escrever-lhe uma carta. Dezanove anos atrasada. Mas tão funda, tão verdadeira, tão sincera, como se tivesse sido escrita na altura. 

Venho agradecer-lhe. Em primeiro lugar, ser quem é: uma espécie de rouxinol da noite que primeiro, quase a medo, ensaia a voz torturada por sabe-se lá que fado e depois, pouco a pouco, a desdobra em toalhas de estrelas que nos iluminam por dentro. Desculpe-me as imagens literárias. Bem sei da sua simplicidade; da sua enternecedora timidez: “Faz-me impressão”, diz no princípio deste disco. Fez impressão. Amália! A partir do Café Luso, do corrido, do bacalhau, do meia-noite, do menor, fez impressão a todos. Impressionou Portugal. Impressionou a França. Impressionou o mundo. Acima de tudo, impressionou o seu povo, o nosso povo. Muito obrigado, Minha Senhora. 

Nossa Senhora. Nossa Senhora de Lisboa. 

Quero agradecer-lhe, depois, cantar tão bem. A partir deste disco-documento, seja qual fora a data, seja qual fora a idade, seja qual for o tempo. Muito obrigado, Minha Senhora. Nossa Senhora. Nossa Senhora da Verdade. 

Agradeça, por mim, ao Filipe Pinto o tê-la anunciado. Ao Camarinha e ao Santos Moreira o terem-na acompanhado. E dê um abraço grande aos poetas, nossos amigos: de saudade para o Linhares Barbosa, para o Vieira Pinto, para o Silva Tavares; de camaradagem para o Mourão-Ferreira, para o Sousa Freitas, para o Leonel Neves. 

É tudo, Amália. Desculpe-me o tempo – tanto tempo! – que lhe tomei. 

Ao ouvir este disco sinto orgulho em dizer-lhe que sou seu amigo há dezanove anos. 

do disco Amália no Café Luso, 1976

terça-feira, 10 de dezembro de 2019

156ª sessão: dia 12 de Dezembro (Quinta-Feira), às 21h30


A nossa próxima sessão, Diva - Simplesmente uma Homenagem, surge quando sabemos da morte de um dos nossos primeiros sócios honorários, inspirações supremas e maior dos amigos, o sempre entusiasta e lutador José Lopes. O bom do Zé Lopes. Tendo representado sempre o melhor da nossa cultura (estar com ele e ouvi-lo era como estar ao lado dos gigantes que conheceu e admirava, de Zeca Afonso a Pedro Hestnes, passando por Mário Viegas ou Luiz Pacheco), dedicamos-lhe esta e todas as sessões com muita saudade mas sem saudosismos - seria assim que ele o desejaria, com o dedo indicador içado e decidido -, esperando que o seu exemplo e as suas muitas lições nos continuem a guiar pelos anos e pelas vidas.

Voltando ao nosso filme, mas podendo estar a falar exactamente da mesma coisa, o texto de apresentação da Rádio e Televisão de Portugal sobre este documentário de Manuel Mozos diz-nos que "sem Amália Rodrigues, o Portugal do século XX teria deixado uma memória claramente diferente. Desde o momento em que encarnou em si todo o conceito de “portugalidade” Amália passou a carregar consigo o fardo de um emblema nacional dentro e fora de portas. Como disse Caetano Veloso, numa célebre atuação no Coliseu dos Recreios em finais da década de 80, abraçar Amália era a mesma coisa que abraçar Portugal inteiro.

"Mas Amália Rodrigues, assumindo a pose das verdadeiras estrelas, que sabem o que valem sem se deixar intoxicar pelo valor que lhe atribuem, sempre se afirmou como um veículo para expressar o que a sua alma ditava e não uma porta-voz dos desígnios nacionais. Face a todas as contrariedades, Amália Rodrigues manteve fielmente a postura que criara para si desde que pegou no fado e o moldou à sua maneira, tirando-o das tabernas em direção aos mais prestigiados palcos do mundo. 

"Amada por uns e odiada por outros, a cantora nunca se deixou ultrapassar pelos acontecimentos e, mesmo se com alguma ingenuidade à mistura, conseguiu passar por cima de todas as situações adversas, saindo pela porta grande sem ter de as contornar sinuosamente."

Há dois meses, o autor do precioso blogue dedicado a Amália Rodrigues, Jorge Muchagato, escrevia que "a voz de Amália, na sua poética intraduzível, radical e única, esquiva às palavras, pode ser também um lugar, uma terra; a papoila vermelha no meio da seara, o sol a morrer no mar e a mudar em lume o céu, o olhar dos cães, o mar no destino dos veleiros e no destino da praia, um feixe de ervas selvagens coroadas de malmequeres e de flores silvestres; e de ramos quebrados de Outono, «um caminho de silvas e de nardos / Uma intensa ternura que persigo / Rodeada de cardos por tantos lados» diz o fado Amêndoa Amarga, escrito por Ary dos Santos, uma ausência de razão quando a razão se acha saturada do absurdo do arbítrio da vida. A minha primeira voz de Amália foi a do terceiro disco de folclore, Amália Canta Portugal III, editado em 1972. 

"O aniversário do meu avô Luís ocorria no final de Dezembro. Nesse Inverno de 1978 eu ofereci-lhe uma cassete da Amália – pareceu-me bonita a fotografia da capa, a Amália sentada na relva a olhar o mar, o seu perfil cheio de enigmas, definido entre os rochedos que avançavam oceano dentro e o céu tão luminoso que chegava à ausência da cor, o branco. É provável que a verdade seja a de ter comprado a voz da mulher da fotografia. Tão sozinha, aquela mulher de olhar perdido no mar. Mas a verdade é que fui eu quem passou os dias a ouvir a cassete: canções alegres acompanhadas com guitarras e violas… mas a voz, no entanto, estava cheia de noite e de tristeza, a própria voz para além do canto e das canções, de um triste indefinível qualquer, de uma profunda densidade emotiva por detrás do «Ai Malhão, Malhão / Põe-te em lugar que t’eu veja / Não faças andar meus olhos / A bailar pela igreja» e isso compreendia-se bem quando cantava «Atirei um tiro à pomba / A pomba no ar voou / Enleou-se naquela roseira / E a maldita pomba sempre lá ficou»."

Em entrevista a João Gonçalves em 1985, Amália Rodrigues dizia que "eu não vou pela ideia de cantar um fado como se o cantasse pela primeira vez, porque tenho muita facilidade em improvisar e só entendo o fado assim. De uma maneira geral, o fado tem muito pouco de melodia (a não ser em músicas como as do Valério, do Portela, do Janes ou outros). O fado clássico, que era aquele que havia antigamente – porque nenhum compositor escrevia para o fado, a não ser na revista – não tinha praticamente melodia. Eu, se cantasse sempre da mesma maneira, maçava-me imenso e começava a pensar que podia maçar os outros. Não sou capaz de fazer igual amanhã porque eu não sei como é que fiz ontem nem como é que vou fazer amanhã… 

"(...) nunca esperei nada, por isso vivo sempre surpreendida com aquilo que me acontece. Pelo contrário, estou sempre à espera do pior. Eu gostava muito de morrer sem ouvir um não do público. Morrer, mas não retirar-me. Gostava de ficar no coração das pessoas."

Até Quinta-Feira!

sábado, 7 de dezembro de 2019

...Quando Troveja (1999) de Manuel Mozos



por Luís Miguel Oliveira

Início da carreira de Manuel Mozos, Um Passo, Outro Passo e Depois… tornou-se uma obra praticamente invisível. Porque, depois da perda dos materiais originais, só pode ser visto numa versão transcrita para vídeo, com péssima imagem (sem definição, cheia de “flou”, com as cores alteradas e deterioradas) e som em não muito melhor estado, que não é Um Passo, Outro Passo e Depois…. Apenas, infelizmente, a sua ruína. 

E que podemos adivinhar a partir deste pequeno destroço sobrevivente? Em primeiro lugar, uma gritante contiguidade entre Um Passo… e o Xavier que pouco depois começaria a ser rodado. É verdade que alguns actores (Pedro Hestnes, Sandra Faleiro, Cristina Carvalhal) passaram de um filme para o outro, e que esse pormenor influencia a sensação de proximidade. Mas esse pormenor é apenas isso, um pormenor. Porque o tipo de personagens é bastante semelhante: jovens mais ou menos perdidos em paisagens semi-urbanas, ou na fronteira entre o urbano e o rural (a julgar pelo genérico final, o filme foi rodado na zona de Oeiras e Paço de Arcos). Os lugares são também bastante semelhantes: escolas, cafés, cenários duma espécie de “urbanismo incompleto” (ver a sequência nocturna, nas obras). O modo narrativo, mesmo que aqui se aposte numa linearidade que não seria a de Xavier, contém já alguns sinais do que Mozos depois desenvolveria com outro fôlego e outra amplitude: repare-se nas elipses, nos saltos espaciais e temporais, nos espaços em branco que ficam por preencher nas relações entre as personagens, espaços esses que o decorrer do filme se encarrega de esclarecer (ou não). 

A que podíamos acrescentar a profunda melancolia que percorre todo o filme – e de que o “confronto” entre o grupo de jovens e o velho contínuo Nogueira (Canto e Castro) é simultaneamente um veículo e o ponto de chegada. Nogueira – grande interpretação de Canto e Castro – é uma personagem fascinante, no seu mutismo solitário, na sua marginalidade auto-imposta (“a minha vida está muito bem assim”, diz a certa altura). Mas também é tudo menos uma personagem “transparente”, e há uma relação de poder (o magro poder que lhe confere o estatuto de contínuo) muito interessante e muito equívoca entre ele e o bando dos miúdos: a noite da perda das chaves, passada entre o orgulho e a humilhação, confere à personagem uma complexidade fascinante, uma espécie de brilho “opaco” que a vai tornando cada vez mais perturbante. 

Mais de dez anos depois de Um Passo, Outro Passo, e Depois..., e antes de poder completar o Xavier que ficou pendurado no princípio da década de 90 e só veio a ser concluído e estreado já no século XXI, …Quando Troveja tornou-se o primeiro filme de Manuel Mozos a ser exibido comercialmente.

“Só nos lembramos de Santa Bárbara quando troveja”, diz o ditado. Não há trovões no filme de Manuel Mozos antes da segunda sequência, quando a personagem de Miguel Guilherme desperta sobressaltado de um pesadelo durante uma noite de trovoada. Mas há, desde os primeiros planos do filme, electricidade (a primeira cena passa-se numa barragem) – juntando as duas coisas, chegamos ao anúncio do clima do filme, borrascoso, alimentado por uma espécie de electricidade tempestuosa. Manuel Mozos falou, aquando da estreia do filme, de “série B” a propósito de …Quando Troveja, com certeza menos por condições de produção ou porque a narrativa do filme se aproxime do tipo de narrativas e ambientes que habitualmente associamos à “série B”, e mais pela enorme condensação de energia (“eléctrica”) em que o seu filme parece estar sempre a trabalhar. Repare-se como, na maior parte, as cenas são bastante curtas, mas sempre extraordinariamente tensas, concentradas, direitas ao assunto sem desvios nem floreados. Isto é uma coisa de “série B”, este despojamento e esta contracção do tempo, esta capacidade de reduzir as cenas e os planos ao seu essencial. Como o é, aliás, esta montagem que praticamente faz desaparecer os chamados “planos de ligação”, constantemente criando elipses ou meramente sugerindo a sua hipótese. E este modo narrativo tem ainda a ver, obviamente, com a “electricidade”, que o filme acumula e acumula de plano para plano, de sequência para sequência, e concentra nessa personagem central (a de Miguel Guilherme) que é como uma “pilha” cada vez mais carregada. Não exageramos, de resto, se dissermos que é esse um dos segredos do filme: trabalhar uma personagem (que está, desde o princípio, em “perda” afectiva e psicológica) até ao ponto máximo da sua suportabilidade – e depois poupar-nos a sua dissipação, em mais uma das muitas elipses de …Quando Troveja (o cúmulo do abandono e da dejecção moral, a chuva, o abraço da “duende”, um salto e, na última cena, Miguel Guilherme fresco como ainda não o víramos). 

Seria, porventura, a maneira ideal (a única manei ra) de filmar um mergulho num abismo de falta de auto-estima sem ficar lá preso. Sempre em secura e em pudor, sem insistência nem complacência, muitas vezes em “ricochete”. Em …Quando Troveja a borrasca é o período de crise em que o protagonista se afunda depois de a namorada o ter trocado por um amigo dos dois. Odisseia pelas profundezas da auto-comiseração que dá uma lição a um filme horroroso (mas celebrado e “oscarizado”) como é o Leaving Las Vegas de Mike Figgis, o filme de Mozos é capaz desse mergulho sem nunca perder o pé nem uma frieza de “lâmina”: repare-se como aqui o mais frio e a “realista” é a memória, venha ela em pesadelos (logo no início) ou em relatos (o encontro, no carro, de Rute com o colega de escola). 

…Quando Troveja é ainda um filme que se aventura numa dimensão “fantástica” ou meramente fantasiosa (as cenas com os “duendes” e respectivos flashbacks), multiplicando os tempos e os espaços, capaz de compor, de forma original e certeira, uma espécie de conto de fadas para adultos, onde toda a gente vive a sua forma pessoal de orfandade. Nisso, nessa constante presença de uma iminência da perda, efectiva ou apenas latente, ou fantasiada, é um filme que sintetiza algumas das principais preocupações de Mozos, no cinema de ficção mas também na sua obra documental – pois não é outro o tema de, por todos, Ruínas.

in «Jornal dos Encontros», Fundão, 2011.

quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

155ª sessão: dia 5 de Dezembro (Quinta-Feira), às 21h30


Já em Dezembro, com o Inverno a chegar, chegamos também à segunda longa-metragem de ficção de Manuel Mozos, que quis o destino ter estreado dois anos antes da primeira. Com Miguel Guilherme, Raquel Dias e José Wallenstein, num triângulo amoroso que conjura seres estranhos, fantasmas e trovoadas, ...Quando Troveja é a nossa próxima sessão.

Por alturas da estreia do filme, em Janeiro de 2001, Luís Miguel Oliveira escreveu que ...Quando Troveja "é um "falso primeiro filme", porque além de longas-metragens inacabadas Manuel Mozos tem já uma assinalável obra no vídeo e na curta (ou média) metragem. Não é, portanto, uma surpresa que ...Quando Troveja seja um óptimo filme, com uma construção narrativa truculenta e um universo recheado de características pouco usuais no cinema português. Sempre com o ar de quem não quer a coisa, ...Quando Troveja é um "jeu de massacre" (do qual não se exclui o próprio realizador, bem pelo contrário), retrato de um punhado de personagens envolvidas em requintados processos de tortura emocional, num registo ziguezagueante entre uma extrema crueldade e uma extrema ternura, adensado por alusões "fantásticas" a uma mitologia peculiar e estimulante. E onde, pormenor nada irrelevante, a "mise-en-scène" suscita uma impressão de prazer (prazer do realizador e prazer do espectador) que, apesar de tudo, é rara."

Em entrevista à revista Sábado em 2016, Miguel Guilherme confessou que "no ...Quando Troveja, do Manuel Mozos, eu fazia um bêbado e tornei-me um bêbado. Não fiz de propósito. (...) Bêbado! Não me embebedava todos os dias porque tinha que filmar e não podia filmar assim. Aumentei imenso as minhas saídas nocturnas. (...) [Bebia] vodka! A personagem bateu-me. Não foi doloroso, mas pensava que estava a controlar e não. Apercebi-me disso na noite da estreia. Estava bêbado como nunca me aconteceu. Hoje é raro embebedar-me. Gosto de andar sóbrio. Nunca bebo sozinho."

No terceiro volume do Dicionário do Cinema Português, que compreende os anos de 1989 a 2003, Jorge Leitão Ramos diz que "António, o protagonista, não é um sujeito muito interessante. A mulher de quem gostava trocou-o por outro e o rapaz desceu a rampa dos abismos: álcool, solidão partilhada com uma companheira de morada a quem a asma parece colocar às portas da morte, sobrevivência através de fracos recursos de pequeno-burguês intelectual (traduções & etc.), habitação em estado de pré-desmoronamento) – há fendas, insectos e os caroços das cerejas atiram-se em frente, para um chão que adivinhamos conter todos os restos provisórios de existências que estão numa encruzilhada que pode ser apenas a antecâmara do oblívio. Correm por ali fantasmas de suicídio – logo desde a sequência de abertura – nada vale a pena. 

"Uma personagem assim não tem muito para nos ensinar. Nem para nos distrair. Mas consegue, por artes mágicas de um filme que as invoca muito concretamente, ter alma de herói, porque é mais difícil sobreviver à selva da infelicidade urbana, armadilhada pelos desencontros da vida, que à selva do Vietname. Na realidade e no cinema. Na selva do Vietname há tiros e correrias, adrenalinas, combates de frente ou de través, acção. Na selva da infelicidade, os protagonistas estão tomados pela tragédia da apatia, pelo estado vegetativo de um dia que se segue a outro sem remissão, não fazem coisa alguma e não vêem como sair do buraco. Pior: as mais das vezes, as tentativas que encetam conduzem-nos em sentido contrário, não sem antes terem experimentado o agravo da humilhação que quase sempre vem no contrapeso de tais empresas. Só por milagre as coisas se podem voltar a pôr sobre os carris. 

"É aqui que ...Quando Troveja faz apelo a duas personagens rigorosamente únicas em toda a caminhada do cinema português. Dois adolescentes que de crianças muito infelizes se transformaram numa espécie de duendes da floresta, duas criaturas que contêm em si toda a dor, inocência e esperança do mundo e que vão interferir nas outras vidas para consertar a insustentável desdita que nelas reina. Acontece então a violência e a redenção. Nada de extraordinário, porém. António regressa à superfície do poço para onde se deixara afundar, as cores da realidade perdem as tonalidades de negrume, chuva, noite e deliquescência, vão-se os azuis e os castanhos, ressurgem amarelos e claridade – e é como se uma pitonisa se intrometesse entre nós e o filme e nos começasse a sussurrar coisas bonitas ao ouvido. Os duendes dançam entre luzeiros e regozijo, o filme de Manuel Mozos pode fechar porque a tempestade – aquela tempestade, pelo menos – já passou."

Até Quinta!

segunda-feira, 2 de dezembro de 2019

Em Dezembro, no Lucky Star:



Olhar o Cinema Português: 1896-2006 (2006) de Manuel Mozos



por Manuel Mozos

EXPLICAÇÃO BREVE 

Este filme, que aceitei por proposta do Pedro Éfe, foi feito quase exclusivamente com imagens de arquivo provenientes da RTP e da série de oito episódios “História do Cinema Português 1896-1998", produzida por Pedro Éfe. As imagens utilizadas não terão por vezes a qualidade desejada devido à própria origem dos materiais base. 

O filme não pretende ser um olhar fechado e total sobre a História do cinema português, e reconheço existirem diversas lacunas na omissão de certos nomes importantes da cinematografia portuguesa (por exemplo, António Reis e Margarida Cordeiro, António Campos, Paulo Branco). Contudo, espero com este filme tratar de uma forma sintética e honesta a História do cinema português entre 1896 e 2006. 

da folha da Cinemateca que acompanhou a ante-estreia.

Cinema Português ? (1997) de Manuel Mozos



por Manuel Mozos


Querida Laura. Seguramente te estrañará recibir esta carta después de tanto silencio. Pero ocurre que acabo de ver como un enamorado de película te pegaba dos tiros y te enviaba al outro mundo. 
Si. Ya sé que las cosas que ocurren en el cine son mentira. Pero sigo siendo un supersticioso irremediable y quiero comprobar si todavia sigues aqui. En la Tierra.” 

El Sur, Victor Erice. 

Este filme, que faz parte de um projecto mais vasto sobre o cinema feito em Portugal, é uma das hipóteses de abordar essa matéria e não uma proposta conclusiva e definitiva. 

A mim deu-me um enorme prazer fazê-lo e agora apenas desejo que quem o vir sinta alguma coisa. Melhor se agradar, mas que pelo menos coloque questões e suscite interesse. Pelos filmes, pelas pessoas que os fazem e pelo Cinema em geral. 

Se isso suceder ficarei muito mais satisfeito com este trabalho. 

Quero agradecer a disponibilidade de João Bénard da Costa para colaborar no filme. 

A todos que acedendo a facilitar os filmes tornaram este possível e também à Rosa Filmes, e à equipa. Mas em particular ao Vítor Alves. E também ao Nuno Carvalho, à Paula de Oliveira e ao Amândio Coroado. 

And also to the Wild Bunch 
And Pinóquio and the Princess. 
Um Bom Batal e Feliz Ano Novo. 

Muito obrigado. 

da folha da Cinemateca que acompanhou a ante-estreia.