quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

155ª sessão: dia 5 de Dezembro (Quinta-Feira), às 21h30


Já em Dezembro, com o Inverno a chegar, chegamos também à segunda longa-metragem de ficção de Manuel Mozos, que quis o destino ter estreado dois anos antes da primeira. Com Miguel Guilherme, Raquel Dias e José Wallenstein, num triângulo amoroso que conjura seres estranhos, fantasmas e trovoadas, ...Quando Troveja é a nossa próxima sessão.

Por alturas da estreia do filme, em Janeiro de 2001, Luís Miguel Oliveira escreveu que ...Quando Troveja "é um "falso primeiro filme", porque além de longas-metragens inacabadas Manuel Mozos tem já uma assinalável obra no vídeo e na curta (ou média) metragem. Não é, portanto, uma surpresa que ...Quando Troveja seja um óptimo filme, com uma construção narrativa truculenta e um universo recheado de características pouco usuais no cinema português. Sempre com o ar de quem não quer a coisa, ...Quando Troveja é um "jeu de massacre" (do qual não se exclui o próprio realizador, bem pelo contrário), retrato de um punhado de personagens envolvidas em requintados processos de tortura emocional, num registo ziguezagueante entre uma extrema crueldade e uma extrema ternura, adensado por alusões "fantásticas" a uma mitologia peculiar e estimulante. E onde, pormenor nada irrelevante, a "mise-en-scène" suscita uma impressão de prazer (prazer do realizador e prazer do espectador) que, apesar de tudo, é rara."

Em entrevista à revista Sábado em 2016, Miguel Guilherme confessou que "no ...Quando Troveja, do Manuel Mozos, eu fazia um bêbado e tornei-me um bêbado. Não fiz de propósito. (...) Bêbado! Não me embebedava todos os dias porque tinha que filmar e não podia filmar assim. Aumentei imenso as minhas saídas nocturnas. (...) [Bebia] vodka! A personagem bateu-me. Não foi doloroso, mas pensava que estava a controlar e não. Apercebi-me disso na noite da estreia. Estava bêbado como nunca me aconteceu. Hoje é raro embebedar-me. Gosto de andar sóbrio. Nunca bebo sozinho."

No terceiro volume do Dicionário do Cinema Português, que compreende os anos de 1989 a 2003, Jorge Leitão Ramos diz que "António, o protagonista, não é um sujeito muito interessante. A mulher de quem gostava trocou-o por outro e o rapaz desceu a rampa dos abismos: álcool, solidão partilhada com uma companheira de morada a quem a asma parece colocar às portas da morte, sobrevivência através de fracos recursos de pequeno-burguês intelectual (traduções & etc.), habitação em estado de pré-desmoronamento) – há fendas, insectos e os caroços das cerejas atiram-se em frente, para um chão que adivinhamos conter todos os restos provisórios de existências que estão numa encruzilhada que pode ser apenas a antecâmara do oblívio. Correm por ali fantasmas de suicídio – logo desde a sequência de abertura – nada vale a pena. 

"Uma personagem assim não tem muito para nos ensinar. Nem para nos distrair. Mas consegue, por artes mágicas de um filme que as invoca muito concretamente, ter alma de herói, porque é mais difícil sobreviver à selva da infelicidade urbana, armadilhada pelos desencontros da vida, que à selva do Vietname. Na realidade e no cinema. Na selva do Vietname há tiros e correrias, adrenalinas, combates de frente ou de través, acção. Na selva da infelicidade, os protagonistas estão tomados pela tragédia da apatia, pelo estado vegetativo de um dia que se segue a outro sem remissão, não fazem coisa alguma e não vêem como sair do buraco. Pior: as mais das vezes, as tentativas que encetam conduzem-nos em sentido contrário, não sem antes terem experimentado o agravo da humilhação que quase sempre vem no contrapeso de tais empresas. Só por milagre as coisas se podem voltar a pôr sobre os carris. 

"É aqui que ...Quando Troveja faz apelo a duas personagens rigorosamente únicas em toda a caminhada do cinema português. Dois adolescentes que de crianças muito infelizes se transformaram numa espécie de duendes da floresta, duas criaturas que contêm em si toda a dor, inocência e esperança do mundo e que vão interferir nas outras vidas para consertar a insustentável desdita que nelas reina. Acontece então a violência e a redenção. Nada de extraordinário, porém. António regressa à superfície do poço para onde se deixara afundar, as cores da realidade perdem as tonalidades de negrume, chuva, noite e deliquescência, vão-se os azuis e os castanhos, ressurgem amarelos e claridade – e é como se uma pitonisa se intrometesse entre nós e o filme e nos começasse a sussurrar coisas bonitas ao ouvido. Os duendes dançam entre luzeiros e regozijo, o filme de Manuel Mozos pode fechar porque a tempestade – aquela tempestade, pelo menos – já passou."

Até Quinta!

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