sábado, 27 de outubro de 2018

The Last Day of Leonard Cohen in Hydra (2018) de Mário Fernandes



por José Oliveira

E aqui está mais uma estreia de um filme de Mário Fernandes na Cinemateca Portuguesa, o que tem significado, quase sempre, uma oportunidade única para os ver – one shot. Esperemos que desta vez alguém atento e merecedor consiga convencer o realizador a levar este filme longínquo para outras paragens. Muitos ainda nos lembramos do seu magnum opus que estreou nesta catedral em 2011 e que voltou a passar recentemente num ciclo dedicado aos “novos” do cinema Português, Lost West. É um western de quase três horas que de uma só vez abarca todas as variações desse género pioneiro – dos clássicos americanos de John Ford até ao estertor de Sam Peckinpah passando pelos spaghetti e seus sucedâneos - sendo na mesma medida uma radiografia à passagem devastadora de uma grande corporativa pelas minas da região do Fundão e mais abrangentemente da Beira Baixa, com uma clareza documental impressionante, carta de amor a essa terra que é a sua e um filme de amigos. Amigos que continuariam a trabalhar nos filmes seguintes, atrás e à frente da câmara, nos argumentos ou na montagem. O Debate da Loucura e do Amor, de 2012, partiu de Louise Labé para se tornar numa luta entre a imagem, o som, e o movimento confinado dos corpos num espaço bem definido, desafiando todas as durações e sincronias. Logo no ano seguinte, mais um gesto passional, desta feita ao Bob Dylan das Beiras, em Jerónimo, como é que vais?, outra vez um cowboy, livre e inadaptado, fiel demais, numa obra que volta a violentar todos os géneros e formatos – misturando a biografia, o musical, o road-movie, o digital, vhs, ecrãs panorâmicos e caseiros, etc. - com um único alvo: a emoção e a verdade daquele ser. Mais recentemente, já em 2016, colocou um recepcionista anárquico e obcecado pelo escritor inglês do século XVIII Henry Fielding num hostel lisboeta de baixo custo para meter na linha quem o merece e favorecer os desfavorecidos, a preto e branco e com um tipo de humor mais negro e logo realista do que os cedros do cemitério para onde o Pastor da Noite se dirige nas suas folgas. Feito o apanhado, e descontando as suas co-realizações, vamos ver The Last Day of Leonard Cohen in Hydra, que novamente não vai corresponder ao esperado nem às expectativas, numa atitude e num trabalho que é menos experimental – modelo já completamente viciado e académico e que hoje em dia vai correspondendo ao anunciado nas sinopses e na imprensa – e que tem tudo a ver com a aventura, com o desbravar terreno, neste caso, captar, perseguir, transfigurar, reter a luz em questão. 

Dedicado a Leonard Cohen e a Marianne Ihlen, logo tudo nos remete para o conhecido tempo em que o cantor e poeta viveu na ilha de Hidra, na Grécia, com a sua companheira, uma vida de outrora ainda não esquecida, amada, que vive na espinha, a amante e uma criança, os dias de ternura, as lágrimas e a nostalgia... coisas que são ditas pela própria voz de Cohen, num genérico a negro mas já cheio de imagens e de sentidos, poéticos e concretos, que serve igualmente para traçar os mais diversos caminhos, abrindo secretas fendas no solo conhecido dos filmes (ou no modernismo) e cavando narrativas que vão aglutinar ou conciliar, por exemplo, versos de Paul Valéry, a voz de Ray Charles, de Marta Ramos e de Loukia Batsi, a mitologia Helénica e as subtis referências à nossa cultura e envergadura tuga

Uma narrativa detectivesca de um Philip Marlowe apátrida obcecado com o retrato de alguém que um dia lhe calhou em sorte num caso talvez indesvendável que o levou aos confins de um mundo? A claridade e essa luz diáfana de um país em que cada coisa é trazida à luz / trazida à liberdade da luz / trazida ao espanto da luz, segundo Sophia de Mello Breyner? Assim, esse homem destroçado encarnado por Rui Pelejão – também não muito longe do cowboy no fim da linha de Lost West e dessas deambulações eternas – vai perguntando a uma fotografia, a uma imagem fixa, Quem és tu?, afirmando e suplicando Vim à tua procura, apaixonando-se por ela, pedaço inanimado e inorgânico em lenta combustão que irá ressuscitar precisamente através da luz e das sombras, do sol e do ar límpidos e únicos que puxaram esse corpo vestido com calções portugueses e de feitios próximos à literatura e ao universo pulp para o cosmos estatuário e mítico de um absoluto em que esse milagre se torna possível. Quando a imagem se torna movente, nesses belíssimos quadros em que é preciso pedras para a segurar das forças intempestivas do vento e do fogo solar, ou em que ela surge emoldurada e numa comunhão, fazendo mesmo corpo com os malmequeres amarelos (também remotamente conhecidos como flor-das-almas) que são como estrelas num céu, flores prestes a devorar a noite, começa a ser possível deixar partir para sempre essa memória, uma memória, um inaudível murmúrio que talvez tenha sido tudo – Amo-te, amo-te – que talvez tenha sido a ilusão das ilusões, a assunção de uma natureza condenada a errar, como na letra de Ray Charles ou como o plano final, todo o mar, toda a terra e todo o firmamento abertos. 

Entre mulheres suas semelhantes que escrevem cartas em penedos nas águas celestes da ilha e mulheres que utilizam essa claridade também lunar e cegante para ler, passando por rituais mágicos e jogos de azar e sorte, duelos contra o vento e contra si mesmo em arenas despovoadas aonde todos os ecos são possíveis, sobretudo os da alma, talvez a opção de não utilização de som-directo em preferência por uma voz-off de diálogo interior – para lá do óbvio monólogo, diálogo com todas as coisas que o cercam e díspares – surja como natural. A questão da esfinge, da miragem e da quimera, de um paraíso possível e perfeito sempre fugidio como a medida e condição do horizonte, bem como as tangentes a esse paracinema e a uma metafísica funesta da imagem e da memória que uma certa Hollywood meteu em primeiro plano (Laura, de Otto Preminger e seus derivados) reenvia-nos muitas vezes à potência do cinema mudo, da hiperbolização da imagem e da sua composição, das passagens ambíguas entre a treva e o dia, do primado da imaginação, da fantasia, da feérie, ao invés da descrição e do sublinhado que o som “normal” pode trazer como armadilha. Na primeira vez que o detective (talvez seja óbvio que ele é um escritor, mas nos bons e velhos tempos todos os grandes escritores eram detectives, à maneira de Truman Capote ou de Samuel Fuller) se senta a uma mesa para escrever à máquina e para beber whisky, não é imediatamente que o notamos lá fora na janela e no negro da noite, antes vai-nos sendo revelado pelo lume de uma vela, dessas velas que descarnam a noite num filme ou iluminado por elas ou pelo sistema solar, pelo branco da camisa que tenta que o corpo não desapareça e pelo cigarro. A entrada em cena é assim modulada em minúsculas gradações que recuperam uma certa hipnose puramente cinematográfica que o digital tem vindo a limpar e a higienizar. 

Tudo se parece passar realmente num único dia, como nos diz o título, no último dia. E numa luta e numa tensão primordiais. Uma luta entre a incandescência e o fogo com a claridade e a água. Nunca se sabendo quais destes representa o negro, a consumição. Não é seguro que seja o fogo a devorar o que há para devorar e que o branco signifique a alvorada e o recomeço. Estamos no princípio da tensão. Nada é preto no branco e o entrelaçamento, a comunhão e a ruptura são a matéria principal e em causa deste abismo; que tal como a voz-off e toda a musicalidade intrínseca, a partir de um certo ponto, algures naquela floresta de símbolos, se volve sonoridade concreta, parecendo, como por golpes mágicos ou naturais, pertencer à imagem e à sua envolvência, cinema puramente sonoro. O resto é um mistério, ou sem história ou com as histórias de todos os seres que amaram e destroçaram algo por uma educação no mundo, é a impossível combinação do policial sem pais nem filhos do Professione: reporter de Michelangelo Antonioni com o lento cerimonial de Sergio Leone aparentemente contradicto pela lembrança de F.W. Murnau. Mais uma vez, vamos estar aonde nunca pensamos. Mudo... Sou o mesmo... Mudo... Sou o mesmo... 

na folha de sala que acompanhou a ante-estreia do filme na Cinemateca Poruguesa

quarta-feira, 24 de outubro de 2018

117ª sessão: dia 25 de Outubro (Quinta-Feira), às 21h30


Para a sessão final dedicada ao "Belo e a Consolação" escolhemos a curta The Last Day of Leonard Cohen in Hydra, de Mário Fernandes, que não é estranho nenhum ao nosso cineclube: já veio a Braga apresentar The Deadly Companions em 2016, escrevendo também a fabulosa folha de sala, já nos recomendou Hell to Eternity de Phil Karlson e já nos falou do presidente Theodore Roosevelt, de John Milius e dos seus Rough Riders em 2017.

Nunca tinha era mostrado nenhum dos seus filmes, falha que será colmatada amanhã com a exibição da sua última obra (depois de Lost West, Jerónimo, Como é que Vais? ou Pastor da Noite), uma estreia absoluta em Braga. Uma boa sessão a todos.

Quando vivia em Hydra, Leonard Cohen escreveu à mãe e descreveu-lhe a sua casa e o seu meio envolvente, dizendo que "tem um terraço enorme com uma vista de montanha dramática casas brancas brilhantes. Os quartos são largos e frescos com janelas fundas fixadas em paredes espessas. Suponho que tenha 200 anos e devem cá ter vivido muitas gerações de homens do mar. Vou trabalhar um bocado nela todos os anos e em poucos anos será uma mansão... Vivo numa colina e a vida aqui tem-se passado exactamente da mesma maneira há centenas de anos. Durante todo o dia ouvem-se os chamamentos dos vendedores de rua e são mesmo muito musicais... Geralmente acordo à volta das 7 e trabalho até perto do meio-dia. De manhã cedo é mais fresco e portanto melhor, mas de qualquer maneira adoro o calor, especialmente quando o Mar Egeu está a 10 minutos da minha porta."

Na folha de sala que acompanhou a sessão de ante-estreia na Cinemateca Portuguesa, José Oliveira escreveu: "Dedicado a Leonard Cohen e a Marianne Ihlen, logo tudo nos remete para o conhecido tempo em que o cantor e poeta viveu na ilha de Hidra, na Grécia, com a sua companheira, uma vida de outrora ainda não esquecida, amada, que vive na espinha, a amante e uma criança, os dias de ternura, as lágrimas e a nostalgia... coisas que são ditas pela própria voz de Cohen, num genérico a negro mas já cheio de imagens e de sentidos, poéticos e concretos, que serve igualmente para traçar os mais diversos caminhos, abrindo secretas fendas no solo conhecido dos filmes (ou no modernismo) e cavando narrativas que vão aglutinar ou conciliar, por exemplo, versos de Paul Valéry, a voz de Ray Charles, de Marta Ramos e de Loukia Batsi, a mitologia Helénica e as subtis referências à nossa cultura e envergadura tuga.

"Uma narrativa detectivesca de um Philip Marlowe apátrida obcecado com o retrato de alguém que um dia lhe calhou em sorte num caso talvez indesvendável que o levou aos confins de um mundo? A claridade e essa luz diáfana de um país em que cada coisa é trazida à luz / trazida à liberdade da luz / trazida ao espanto da luz, segundo Sophia de Mello Breyner? Assim, esse homem destroçado encarnado por Rui Pelejão – também não muito longe do cowboy no fim da linha de Lost West e dessas deambulações eternas – vai perguntando a uma fotografia, a uma imagem fixa, Quem és tu?, afirmando e suplicando Vim à tua procura, apaixonando-se por ela, pedaço inanimado e inorgânico em lenta combustão que irá ressuscitar precisamente através da luz e das sombras, do sol e do ar límpidos e únicos que puxaram esse corpo vestido com calções portugueses e de feitios próximos à literatura e ao universo pulp para o cosmos estatuário e mítico de um absoluto em que esse milagre se torna possível. Quando a imagem se torna movente, nesses belíssimos quadros em que é preciso pedras para a segurar das forças intempestivas do vento e do fogo solar, ou em que ela surge emoldurada e numa comunhão, fazendo mesmo corpo com os malmequeres amarelos (também remotamente conhecidos como flor-das-almas) que são como estrelas num céu, flores prestes a devorar a noite, começa a ser possível deixar partir para sempre essa memória, uma memória, um inaudível murmúrio que talvez tenha sido tudo – Amo-te, amo-te – que talvez tenha sido a ilusão das ilusões, a assunção de uma natureza condenada a errar, como na letra de Ray Charles ou como o plano final, todo o mar, toda a terra e todo o firmamento abertos."

Para o Jornal do Fundão, o escritor Manuel da Silva Ramos admitiu que "é raro ver um filme em que o tempo joga contra o tempo, em que parecemos prisioneiros não do tempo exacto do filme (30 minutos) mas de uma beleza que se perpetua e parece nunca acabar. E se no final o detective enterra a fotografia da mulher amada (Loukia- Marianne- ou uma qualquer mulher), é para melhor se lembrar dela. « Amo-te e deixo-te partir para sempre », diz-se já no final da película, em que a intensidade da melancolia derivada do longo adeus nos é dada de uma maneira tão vibrante que temos o coração estrafegado e a respiração cortada. 

"Este filme universal pelo tema que aborda, exibe a particularidade de uma narração off, em inglês, o que lhe concede uma dupla beleza e um duplo mistério. Na realidade, a beleza das palavras conjuga-se muito bem com todo o resto que é uma convulsiva arqueologia de sentimentos nunca abandonados. Estes trinta minutos de cinema magnético, de amor sublime, de amor louco, são inusitados na sétima arte portuguesa e constituem a partir de agora das coisas mais belas e fulgurantes que se fizeram nos últimos tempos em Portugal. E isso porque Mário Fernandes é, apesar dos seus trinta e três anos, um dos cineastas mais cultos do nosso país, e, sem dúvidas nenhumas, aquele que sabe melhor ler a literatura. Com a Grécia em pano de fundo, o cineasta desnuda-se e dá-nos um retrato poderosíssimo de si próprio."

Até amanhã!

sábado, 20 de outubro de 2018

Em Câmara Lenta (2012) de Fernando Lopes



por Manuel Halpern

Na véspera da sua morte, Sócrates compartilhava a cela com um tocador de lira. Pediu-lhe então que lhe ensinasse a tocar aquele instrumento. O outro respondeu espantado: "Mas se ireis morrer amanhã, porque quereis aprender a tocar lira?" Ele respondeu: "Tens razão, morrerei amanhã, mas amanhã saberei tocar lira". Este episódio que se conta da vida de Sócrates, relatado no filme de Fernando Lopes, serve de exemplo para a insaciável busca do conhecimento ou, como sintetiza o povo, a ideia de aprender até morrer. Aplicada a Em Câmara Lenta, mais do que o conhecimento em si, a citação, que no filme também é um prenúncio, pode ser entendida como a busca constante da arte e da poesia. Que é o que Fernando Lopes tem feito ao longo da sua obra, de forma mais ou menos assertiva. E que aqui chega a um dos seus esplendores poéticos. Cita-se Alexandre O'Neill à descarada, sobretudo as suas considerações sobre as mulheres, como que lhe dando um papel de inspirador marialva. De alguma forma, Em Câmara Lenta torna-se assim uma homenagem a O'Neill ou, pelo menos, uma manifestação de afeto e cumplicidade. Isto é feito de modo claro e até pouco subtil quando Santiago leva a sua amante ao Parque dos Poetas, em Oeiras, e cita O'Neill em frente á sua estátua. "Sigamos o Cherne"... E o filme segue o cherne até ao fim do mar. Só que o mar é tão extenso que o filme acaba antes que o mar acabe. Mas fica a ideia de nadar sem fim, num deserto de água, com uma pele marinha, nadar como quem foge e como quem se liberta. Nadar até ao nada. "Vou atrás de um peixe grande, e desta vez ou eu o apanho ou ele me apanha a mim".

Há um homem que se perdeu no mar, e outro que tenta encontrar o seu fantasma, mas não é um filme sobre pescadores, mas de mortos-vivos. Fala da perda de uma personagem que sem encontrar o outro não se encontra a si própria. E então fecha-se na improbabilidade dos relacionamentos, que nunca são suficientemente profundos, porque ele próprio não se consegue desprender do mar que o atravessa.

Aqui, a sinopse pouco interessa ou pouco nos diz. Porque, em resumo, até pode parecer vazio, um drama trivial, de triângulos e quadrados que se enrodilham de forma mais ou menos dramática. De angústias plausíveis e reconhecíveis. Não é um filme em que conte a história. Prevalece antes o olhar, a profundidade das personagens, ou melhor, a densidade em concreto de Santiago, figura altamente egocêntrica que chama para si as luzes e as câmaras, como se os dramas que o circundam não tivessem peso. Santiago não é uma figura simpática, queima tudo à sua volta e acaba por morrer queimado.

Não entrando no extremo da private joke, de Os Sorrisos do Destino, em que com algum pragmatismo trivial, Fernando Lopes importou para o filme um facto que lhe aconteceu na vida (o resultado é um dos piores filmes da sua carreira), continua a haver um lado de espelho em Em Câmara Lenta. Sabemos que Fernando Lopes está ali, em Santiago (Rui Morrison), personagem que o representa. De resto, não é por acaso que todas as personagens bebem uísque e é estranha a coincidência de todas as atrizes se chamarem Maria João.

A outra personagem masculina, Salvador (João Reis), faz o contrabalanço com Santiago, é a figura tragicómica, mas igualmente deprimida. O bêbedo alegre e espirituoso. É um grande momento quando, no British Bar, eleva a voz para dizer que tem um anúncio a fazer, e os clientes respondem em coro: "A minha mulher deixou-me!". Uma auto-ironia fantástica. É a personagem mais terna, cheia de pena de si própria, mas que, apesar de tudo, consegue ver o outro. Um fotógrafo que escreve um diário, e vive na esperança de voltar para a mulher, que o deixou por causa da bebida.

À exceção da mulher de Salvador, que nem chegamos a conhecer, as personagens femininas caracterizam-se por uma resignação e submissão algo misteriosa. Laurence, a mulher, aceita a amante de Santiago (ou melhor, o facto de Santiago ter uma amante) com uma naturalidade fiel. Subentende-se uma relação funcional, porventura incompleta ou inconsumada, mas sem plano de rotura. Ambos se conformam, mantendo apenas discussões educadas e elevadas, que até evidenciam cumplicidade.

Constança, a amante, submete-se a um destino que ela própria ditou e que a aprisiona. "Tu és o homem a quem me decidi entregar". E diz isso como uma fatalidade, absolutamente inalterável, um karma, que mais à frente a faz gueixa, na dicotomia entre o amor e a morte. A morte é a vingança do amor. Perante estas mulheres que, passivas, submissas, se rendem ao seu desígnio, Santiago reina de forma desafetada e egoísta, mas não deliberadamente maldosa. O pecado dele talvez seja gostar sem amar, ou amar sem cuidar, deixa-se levar mas não vai. Na viagem que faz, pede dois quartos no hotel, para grande desilusão de Constança. Quer acordar sozinho. Recusa-se a entregar-se totalmente. Em oposição ao avô de Constança, que vão visitar ao lar, e encontram-no a dormir na campa da esposa falecida: esse entrega-se mesmo até depois de a morte os separar.

Visão poética do realizador que recupera o melhor da sua estética, do seu olhar, com diálogos menos naturalistas, citações abundantes, imagens que preenchem a alma. Um sentido estético próximo de Lá Fora. Santiago talvez seja o engenheiro que constrói os não lugares desse outro filme. Só que aqui o artificialismo não prevalece. Há uma poética do vazio e dos espaços sem fim, outrora artificiais, aqui apenas imensos. Em Câmara Lenta é o melhor filme de Fernando Lopes desde O Delfim. Uma aventura aquática pelos abismos da alma de um mártir de si próprio.

in «Em Câmara Lenta: Até ao fim do Mar», Visão, 7 de Março de 2012.

quarta-feira, 17 de outubro de 2018

116ª sessão: dia 18 de Outubro (Quinta-Feira), às 21h30


Esta Quinta-Feira prestamos homenagem a um dos grandes vultos do Cinema Novo, Fernando Lopes, dinamizador incansável e muitíssimo generoso do nosso cinema, com a exibição do seu último filme, Em Câmara Lenta, que pelo desinteresse generalizado e muito injusto à sua volta se pode quase considerar uma estreia nacional. É a nossa próxima sessão.

O argumentista do filme, Rui Cardoso Martins, em comentário para o dossier de imprensa de Em Câmara Lenta disse que "tive durante anos, na estante esquerda da minha sala, uma cassete VHS, magnética, com Belarmino, o filme em que um pugilista português, criado nas ruas e nos ginásios, explica o que é um homem a sério e para que serve. Um dia colei-lhe, numa simbiose improvável da técnica, e da arte do cinema, o CD digital de O Delfim: outro tipo de homem, aristocrata, mas também levado pela queda violenta do ser português. Quando me convidaram para escrever o guião de Em Câmara Lenta, ainda não lera o livro de Pedro Reis e não conhecia pessoalmente Fernando Lopes. Encontrei o Fernando numa esplanada e, em quinze minutos que ainda não acabaram, falámos dos filmes, livros, dos homens e mulheres, de um mundo absoluto de amor, angústia e humor, sons e imagens reinventados, portugueses e universais. Da vida em que todas as acções humanas têm uma dura resposta à espera, não se sabe como nem porquê. Um mundo de que só os mestres do cinema têm a chave, do princípio até hoje. É uma honra, Fernando, e o meu trabalho, o mergulho no mar, é todo seu."

Em entrevista à Visão, e sobre a sua parceria com Fernando Lopes, Rui Morrison disse que "desde o primeiro filme que fiz com ele criou-se uma cumplicidade única. Quase que não é preciso conversar. Compreendo-o muito bem. Conheço bem o seu cinema. A certa altura, quando ele faz o plano, sei logo o que ele pretende. Os próprios temas dos filmes são muito fáceis de entender, de entrar neles. Há uma grande compreensão de parte a parte. Não houve grandes conversas para descobrir a personagem. Foi tudo muito fácil. Ele também me conhece muito bem, sabe o que posso dar."

Já Luís Miguel Oliveira, nosso conhecido das sessões de A Última Valsa e Veio do Outro Mundoescreveu para o Ípsilon que "como acontecia com o precedente Os Sorrisos do Destino, e talvez mais ainda, Em Câmara Lenta trabalha uma forma miniatural, rápida, abreviada, espécie de série B. Não é só a duração (curta: pouco mais de 70 minutos), é sobretudo a organização, o ritmo, a maneira como as cenas se cavalgam umas às outras, em corte ou em sequência, e os buracos que ficam por preencher. 

"Rápido e abreviado (quase contra a “câmara lenta” do título), e eventualmente em demasia - pois é igualmente nítida a sensação de que certas coisas, para funcionarem plenamente, precisavam de outro tempo ao lume, metáfora calorífera que empregamos também por a história do protagonista (interpretado por Rui Morrison) ser a história de alguém que está, como dizem os americanos, em “slow burn”, e diríamos nós, em “cozedura lenta”. 

"Morrison quase retoma, aliás, a personagem dos Sorrisos, num modelo que, no cinema português (para Lopes, para Solveig, para outros), ele tem encarnado como ninguém: o homem naquela zona difusa entre o fim do que se convencionou chamar a “meia idade” e o princípio daquilo que, para além de todas as convenções (de linguagem), é a velhice. A angústia perante a ameaça de um colapso qualquer, físico ou emocional, porque não se é feito de “betão e pedra”, como se diz no início, e porque o tempo passou, transformando as pessoas em pedra (como na cena perante uma grande efígie de O''Neill). De certa maneira, não é outro o tema do filme, e não é difícil recortar Lopes dentro dele, como crónica de si mesmo e dos seus amigos (O''Neill, mas também a imagem de Cardoso Pires pendurada no British Bar), nós por cá já não todos, e nem por isso muito bem."

Até Quinta-Feira!

Luz Teimosa (2010) de Luís Alves de Matos



por Luísa Soares de Oliveira

Em Luz Teimosa há uma fotografia que ressurge em diversos momentos, acentuando a circularidade das histórias que se cruzam ou afastam durante os 75 minutos do filme: o retrato de uma rapariguinha, tirado numa romaria do Norte pouco antes de Fernando Lemos, o fotógrafo (mas que foi também pintor, desenhador, poeta e ilustrador) partir para o Brasil, em 1953. É uma imagem a preto e branco, que se afasta do experimentalismo processual pelo qual a obra fotográfica de Lemos se tornou conhecida. Onde antes haveria sobreposições, impressões em negativo, solarizações à maneira de Man Ray, há agora uma imagem quase documental, directa, um desses objectos que, na fotografia, guardam a aura benjaminiana do desaparecido. 

Luz Teimosa, o filme documentário sobre Lemos, que ganhou o Prémio Melhor Filme Português sobre Arte no festival Temps d'Image de 2011 e uma menção honrosa na categoria de longas-metragens no festival Iberoamericano de Cinema de Sergipe – Curta-se, no mesmo ano, chegou agora à edição DVD, depois de também ter passado pelo DocLisboa de 2010 onde o público teve a possibilidade de o ver. Realizado por Luís Alves de Matos, a partir duma ideia do mesmo e de Pedro Aguilar, evita, e bem, os escolhos da recriação biográfica para se concentrar numa abordagem emotiva e intimista da vida presente do artista, a partir da qual momentos decisivos do passado são evocados. O realizador tenta mesmo recuperar algo do 'cadavre-exquis' surrealista ao intercalar excertos filmados em Super8 e fragmentos de poemas ou críticas escritas na própria montagem do filme, quase como didascálias. 

Lemos, que expôs com outros surrealistas portugueses na Casa Jalco, em Lisboa, em 1952, surge assim na sua casa de São Paulo, como no Castelo de São Jorge a evocar a vida em Lisboa na década de 50, no Porto, numa praia de Ubatuba. Clara fica a razão do seu interesse pela fotografia: é que ela 'já nasce com o seu próprio registo', e deve sempre ser a preto e branco, porque o artista gosta cada vez mais do preto e branco em tudo, 'mesmo no cinema'. Mais importante, considerava que 'a luz era o nosso desenho', e que a fotografia analógica, no processo químico que a permite revelar, se assemelha a um combate entre a luz e a sombra, ou mesmo, a qualquer coisa que parece o acto de pescar (entrevista a Sérgio B. Gomes em Público, 4.12.2009). 

in «O artista das duas pátrias», Ípsilon.

sábado, 13 de outubro de 2018

115ª sessão: dia 16 de Outubro (Terça-Feira), às 21h30


Na próxima semana, continuamos o nosso ciclo com os Encontros da Imagem com a exibição de Luz Teimosa, de Luís Alves de Matos, sobre o fotógrafo Fernando Lemos. O realizador estará presente na sessão para nos falar sobre o fotógrafo luso-brasileiro e sobre o seu filme. A não perder, portanto.

Na apresentação do filme no Doc Lisboa de 2010, Luís Alves de Matos falou sobre Lemos e disse que "foi uma honra poder fazer um filme sobre ele e foi um filme que foi feito sobre ele e com ele. Ele também nos acompanhou nesta viagem. Tentámos surrealizar um pouco o filme, dentro do possível (...). O filme é um pouco isto, também, um bocado esse reencontro do fotógrafo com o seu modelo e também é um reencontro do Fernando com Portugal, com as suas raízes - que ele vive há cinquenta e tal anos no Brasil. Saiu daqui por causa do fascismo, e portanto encontrou uma nova pátria, mas continua dividido, [como] já disse várias vezes.

"O filme, espero que vos possa agradar. E não é um filme que feche a obra do Fernando, e portanto fechado na vida dele, mas acho que nos dá vontade de descobri-lo ainda mais..."

Na sinopse oficial do filme, lê-se que "o mundo de Fernando Lemos é um mundo ferozmente despojado de qualquer lógica externa, dizia Jorge de Sena. O seu multifacetado gesto artístico confunde-se com a própria existência onde o princípio poético está antes de tudo. Este filme é uma aventura, uma jornada surrealista que se realiza no acaso da procura de uma mulher numa fotografia tirada há 50 anos ou numa divertida partida de cartas onde se pratica o prazer do jogo sobre a identidade de se ser português e brasileiro. Também num carrossel de feira popular se torna possível ouvir a sua poesia. Movido por um desejo de liberdade este filme afirma-se em comunhão com o presente e o passado do artista. E é através da luz que teima em entrar através da porta semicerrada, que se vence o medo da vida no combate travado com a morte. E assim nasce cada palavra dentro de outra palavra e cada imagem dentro de cada imagem. De quantas facas se faz o amor? pergunta o poeta."

Finalmente, e no Ípsilon, Luísa Soares de Oliveira escreveu que "Luz Teimosa, o filme documentário sobre Lemos, que ganhou o Prémio Melhor Filme Português sobre Arte no festival Temps d'Image de 2011 e uma menção honrosa na categoria de Longas-metragens no festival Iberoamericano de Cinema de Sergipe - Curta-se, no mesmo ano, chegou agora à edição DVD, depois de também ter passado pelo DocLisboa de 2010 onde o público teve a possibilidade de o ver. Realizado por Luís Alves de Matos, a partir duma ideia do mesmo e de Pedro Aguilar, evita, e bem, os escolhos da recriação biográfica para se concentrar numa abordagem emotiva e intimista da vida presente do artista, a partir da qual momentos decisivos do passado são evocados. O realizador tenta mesmo recuperar algo do 'cadavre-exquis' surrealista ao intercalar excertos filmados em Super8 e fragmentos de poemas ou críticas escritas na própria montagem do filme, quase como didascálias.

"Lemos, que expôs com outros surrealistas portugueses na Casa Jalco, em Lisboa, em 1952, surge assim na sua casa de São Paulo, como no Castelo de São Jorge a evocar a vida em Lisboa na década de 50, no Porto, numa praia de Ubatuba. Clara fica a razão do seu interesse pela fotografia: é que ela "já nasce com o seu próprio registo", e deve sempre ser a preto e branco, porque o artista gosta cada vez mais do preto e branco em tudo, 'mesmo no cinema'. Mais importante, considerava que 'a luz era o nosso desenho', e que a fotografia analógica, no processo químico que a permite revelar, se assemelha a um combate entre a luz e a sombra, ou mesmo, a qualquer coisa que parece o acto de pescar (entrevista a Sérgio B. Gomes em Público, 4.12.2009)."

Até Terça!

sexta-feira, 12 de outubro de 2018

Viaggio in Italia (1954) de Roberto Rossellini



por João Bénard da Costa

Fim de Outubro ou princípio de Novembro de 1955. Eu tinha 20 anos, ainda não conhecia ninguém do grupo que um ano mais tarde formou o CCC da JUC. Também não lia os Cahiers du Cinéma, que nem de nome era dos meus ouvidos. Desde 1950 - ano da estreia de Stromboli em Portugal - que me andavam a dizer que Rossellini perdera as qualidades iniciais (essas de Roma, città aperta, que tanto me fizeram chorar quando eu ainda andava de calções) ao deixar-se apanhar pelas saias de Ingrid Bergman. Deus Omnipotente não perdoara aos adúlteros. O pecado só lhes tinha feito mal. Ele, já nem era neo-realista, já nem era nada. Ela, uma sombra triste do que fora. 

Verdade ou consequência, nem Stromboli, aos 15 anos, nem Europa ‘51, aos 18 (com o Tucho) me deixaram - ai de mim! - marcas duráveis. Só muito mais tarde abri os olhinhos. Nem sei por que fui ao Éden, numa tarde de Outono, em que havia muita luz e fazia muito sol. Certamente foi mais por fidelidade a Ingrid Bergman (e talvez a George Sanders) do que a Rossellini. Mas fiquei colado à cadeira. No fim, no milagre, desatei a chorar. Os meus companheiros (melhor, as minhas companheiras) desataram a rir. Do filme e de mim. Como era possível, João? Ainda hoje me espanto como foi possível, João. Não foi a carne nem o sangue quem mo levaram. Mas algum Deus que está no céu. Aceito que o propriamente dito. 

Disse da minha justiça, à esquerda e à direita. Nem um eco. À esquerda diziam-me que era coisa de católico, nos dias mais beatos. À direita, que era coisa de neo-realista, nos dias mais estúpidos. A esquerda tinha mais razão do que a direita. Em coisas de fundo, acontece. 

Demorou um ano - já disse - a encontrar gente (católica gente) que sentira o mesmo que eu. Ela levou-me a ler um número célebre dos Cahiers, seis meses anterior à minha visão, em que Jacques Rivette escrevera (Lettre sur Rossellini): “Par l’apparition de Voyage en Italie tous les films ont soudain vieilli de dix ans” e em que Eric Rohmer dissera (La terre du miracle): “Dans ce film où tout semble accessoire, tout, même les plus folles divagations de notre esprit, fait partie de l’essentiel”. Levaram-me a ler Bazin e o texto sagrado Défense de Rossellini

Quando, em Abril de 1958, revi o filme no Jardim-Cinema, 26ª sessão do CCC, já éramos um grupo a defender a genialidade da obra. E um bonito texto do Pedro Tamen - sempre muito pedagógico e sempre a fugir dos provocadores - converteu mais incrédulos do que o próprio filme: “Depois, há um milagre que não sabemos se o foi (um paralítico que corre brandindo as muletas) e outro que, esse fim, sabemos que foi: duas pessoas descobrem-se no mais dentro, no mais fundo, fundem-se, são finalmente capazes de dizer que sim e que se amam, que sim, que sim, que se amam”. Em 1958, já os Cahiers du Cinéma colocavam Viaggio in Italia no terceiro lugar da lista dos “melhores filmes da nossa vida”, depois de Sunrise de Murnau e de La règle du jeu de Renoir. 

Com o tempo, essa posição vanguardista e elitista deixou de o ser. Hoje, já ninguém se escandaliza com nada. Viaggio in Italia é pacificamente aceite entre as glórias da nossa terra (a terra do cinema) e, de cada vez que o programo, a sala esgota. Não há gato nem cão que queira ter voto na matéria que ouse sequer uma reticência. Juro pela unanimidade crítica das cinco estrelas se for reposto no Ávila. Mas quem vê caras não vê corações. A não ser que se chame Roberto Rossellini e há mais de dezoito anos que ninguém se chama assim. 

Viaggio in Italia, para quem nunca o tenha visto, o que é? Como Sunrise de Murnau, como O Convento de Oliveira, como Lucky Star de Borzage ou como Os Contos da Lua Vaga de Mizoguchi, é a história da separação e da reconciliação de um casal. O casal Joyce, casal inglês de meia-idade (trinta e muitos, quarenta e poucos) bem instalado na vida, que vem à Itália vender uma propriedade que herdara de um tio chamado Homer (Joyce e Homero podem ser nomes casuais, podem não o ser). Casal são-no, porque são casados. Casal não o são, porque estão razoavelmente fartos um do outro. A viagem - rumo a Nápoles e nos arredores de Nápoles - dura sete dias (número mágico). Alex, o marido (George Sanders), namora por aqui e por ali, engata (ou é engatado) por uma pega, aborrece-se de morte. Katherine, a mulher (Ingrid Bergman) faz muito turismo: Museu Arqueológico de Nápoles, ruínas de Cuma (antro da Sibila), Templo de Apolo, Vesúvio, Pompéia, a solfatara de Pozzuoli. Recorda um poeta que a amou e morreu novo e tuberculoso, finge ciúmes do marido, farta-se com ele e dele. Ao sétimo dia, a propósito de uma discussão absurda sobre o Bentley deles, decidem divorciar-se logo que voltem à Inglaterra. Horas depois, o carro em que viajavam, muito calados, é forçado a parar porque uma procissão atravessa a estrada. Saem, cada um de sua vez, para ver o que se passa. A certa altura, a multidão desata a gritar “milagre” a propósito do tal paralítico. Na confusão, cada um deles é empurrado em direções opostas. Katherine chama pelo marido. Quando este a consegue alcançar, abraçam-se e juram nunca mais se separar. 

Nem Katherine nem Alex parecem pessoas muito interessantes. Nada lhes acontece de muito particular. Qualquer pessoa está mesmo a ver que divorciar-se é o que podem fazer de melhor. Uma procissão, o “ave” de Fátima e os dois nos braços um do outro a jurar amor eterno. Milagre da Virgem que protege o santo matrimônio? Quem nunca tinha visto e só isto ler, percebe facilmente as reações da época. 

Só que dizer isto ou não dizer nada é praticamente a mesma coisa. Não porque a história não seja isto, mas porque sob isto, ao lado disto, ou sobre isto (e nenhuma das preposições é boa) se passa tudo o que é essencial e não é traduzível em palavras. 

Não vou citar nenhum exemplo dos mais célebres, como a perturbação de Katherine face aos nus masculinos do Museu de Nápoles, o passeio solitário dela ao Templo de Apolo, a “ionização” na solfatara, com o fumo e o cheiro a sufocá-la, o esqueleto visto nas catacumbas, a descoberta, durante as escavações em Pompeia, dos corpos calcinados de um casal abraçado, há dois mil anos abraçados. Não vou falar da confusão das ruas de Nápoles ou de Capri, das mulheres grávidas que se cruzam constantemente com Katherine, das zaragatas conjugais a que assistem e que tanto chocam reservados ingleses. 

Vou referir-me apenas à sequência inicial, quando, no Bentley, Katherine e Alex se dirigem para Nápoles. Primeiro, um diálogo, pedagogicamente concebido, que nos dá todas as informações úteis: quem são eles, onde se dirigem, o que vieram fazer à Itália. Depois, o marido adormece e percebemos que é a mulher quem guia. O marido acorda e propõe à mulher trocar de lugar. Em vez do corte e novo plano do carro com as novas posições, assistimos à troca toda, com toda a minúcia. No segundo minuto do filme, segunda paragem: agora é uma manada de bois que atravessa a estrada e os impede de prosseguir. Irritação de Alex, que já comentara que as estradas em Itália são um perigo. Segue-se uma bifurcação: uma seta indica Nápoles para a esquerda e Latina para a direita. O carro vira à esquerda (já sabíamos que o destino era Nápoles), mas a câmera vira-se para a direita, como se o outro caminho fosse o bom e eles o não soubessem. Pouco depois, Katherine faz uma expressão de horror: “Que é isto? Sangue?” E Alex responde, irónico, que foi só um mosquito que se esborrachou no vidro. Falam dos perigos da malária. 

Aparentemente, nada se passou de particularmente interessante. Mas, nesses cinco minutos de filme, quem for capaz de ver, viu o essencial. A viagem é conduzida pela mulher, como sempre o será ao longo do filme, porque é ela quem vê quase tudo o que o marido não vê, como é ela quem o chama no final. Mas ela sem ele não existe. Por isso, ele tem de conduzir também e tudo o que lhe acontece, depois, é tão fio condutor quanto o que lhe acontece a ela. Em cada bifurcação, há sempre duas possibilidades. Seguir o que está predeterminado implica deixar aberto o desconhecido. A qualquer plano ou ordenação sobrepõe-se a desordem e o imprevisto: bois não querem saber de Bentleys e podem parar - ou atrasar - uma viagem. Uma mancha de sangue pode não ser uma tragédia mas pode não ser tão banal como parece. Na vida não há símbolos, há sinais. A cada momento, cada sinal. 

E é a acumulação de todos esses momentos e de todos esses sinais que, a cada momento e a cada sinal, vai minando aquele homem e aquela mulher que parecem fatalmente seguir numa outra direção (a ruptura) e não menos fatalmente estão a seguir noutra (a redescoberta). Quando perdem o pé (o carro, a casa, a direção, a estrada), tudo o que de vital e mortal se acumulou neles explode, tão irracional e tão racionalmente, como a fé da multidão no milagre da Virgem. E é essa explosão - essa erupção, essa ionização, se quisermos ficar ao pé dalgumas imagens do filme - que os atira um para o outro, no mesmo abraço dos cadáveres de Pompeia. Talvez que eles também - que sabemos nós? - não estivessem a fazer amor, nem mesmo se amassem. Talvez que, surpreendidos pela erupção do Vesúvio, se tivessem agarrado para não morrerem sós. Só que dois corpos juntos, juntos mesmo, dois mil anos ou dois segundos, são o milagre total. No Evangelho de Pseudo-Tomé há uma variante, mais profunda e mais certeira, da conhecida passagem dos sinópticos em que se diz que a verdadeira fé move montanhas. Em vez da passagem: “Se tiveres a verdadeira fé e disseres àquela montanha move-te, a montanha mover-se-á”, diz-se: “Se um homem e uma mulher viverem em verdadeira paz um com o outro e um deles disser àquela montanha move-te, a montanha mover-se-á.” Em vez da fé, a caridade. É o cerne do cinema de Rossellini. 

Nem eu nem ninguém vos pode jurar que, regressados ao carro ou a casa, Alex e Katherine não recomecem as quezílias. Mas o milagre aconteceu. Não é bom que o homem ou a mulher estejam sós. Viaggio in Italia, como disse Rohmer, é um drama com três personagens. O terceiro é Deus. E em Viaggio in Italia quem O não vir não vê nada. 

É só um filme? Precisamente.

in «Os Filmes da Minha Vida - 2º Volume», Assírio & Alvim, 2007.

quarta-feira, 10 de outubro de 2018

114ª sessão: dia 11 de Outubro (Quinta-Feira), às 21h30


Quinta-Feira embarcamos nessa viagem por Itália do casal interpretado por Ingrid Bergman e George Sanders que se transformou no maior estandarte do cinema moderno. Sob a égide do tema que nos governa este mês, Viagem em Itália é a nossa próxima sessão nos cinemas do Bragashopping.

Em entrevista a Adriano Aprà e Maurizio Ponzi em 1965, e sobre o sentido do final do filme, Rossellini disse que "talvez estivesse errado em não o tornar totalmente óbvio, em mostrá-lo como uma descoberta. Mas isso não me convinha. Acho que é uma coisa bastante normal na sociedade moderna que muitos casamentos são companhias limitadas sob outro nome. As pessoas casam-se porque uma delas tem um trabalho para fazer, a outra tem um número de ligações, portanto a mulher actua como um oficial de relações públicas enquanto o marido é um oficial de economia, para o descrever em termos de trabalhos concretos. Há mais coisas na vida do que isso. E o casal de Viagem em Itália é esse tipo de casal – pessoas que não têm nada para dizer um ao outro fora dos seus trabalhos, dos seus empregos, das suas rotinas diárias. Mais do que outra coisa qualquer, umas férias são a morte deles. Possuir uma quinta encantadora num dos mais belos sítios do mundo não conta para nada, porque já não sabem o que dizer um ao outro: se não falam sobre as cotações da bolsa ou sobre fazer este ou aquele negócio, a relação deles está acabada."

Jacques Rivette escreveu um conhecidíssimo e citadíssimo texto sobre o filme de Rossellini chamado Lettre sur Rossellini, atirando logo ao início que "vocês não apreciam Rossellini. Não gostaram de Viagem em Itália. Tudo bem. Tudo bem, não. A vossa recusa não é assim tão segura que não procurem saber a opinião dos rossellinianos. Estes irritam-vos, inquietam-vos como se não estivessem de consciência tranquila com o vosso gosto. Que estranho procedimento! 

"Mas deixemos este tom jocoso. Sim. Admiro especialmente o último filme de Rossellini (o último que vimos, pelo menos). Porquê? Ah, agora é que tudo se torna mais difícil. Não posso invocar-vos o arrebatamento, a emoção, a alegria. É uma linguagem que vocês não admitem como explicação. Mas espero que, pelo menos, a compreendam. (Senão, Deus seja misericordioso). 

"Mudemos de tom mais uma vez para vos agradar. A mestria e a liberdade são palavras que vocês podem entender. Pois estamos perante o filme em que Rossellini mostra melhor a sua mestria e, como em qualquer arte, através do livre exercício dos seus meios. Voltarei a este assunto. Em primeiro lugar, tenho algo para vos dizer e que vos deve interessar mais... se existe um cinema moderno, ei-lo. Mas vocês ainda precisam de provas."

Jacques Lourcelles dedicou uma entrada monumental ao filme de Rossellini no seu também monumental Dictionnaire du Cinéma, escrevendo que é a "terceira das cinco longas-metragens de Rossellini com Ingrid Bergman. A riqueza do filme, a sua clareza genial, a ambição tranquila e imensa do propósito são daquelas que desencorajam a análise, sobretudo em poucas linhas. Respeitando a linearidade inevitável da narrativa cinematográfica (tão consubstancial ao cinema como o fluir da película na câmara), Rossellini descreve em círculos concêntricos uma realidade cada vez mais ampla. No início da intriga e no centro dos círculos está um casal, um homem e uma mulher próximos pela nacionalidade e pelo meio social, profundamente separados pelo carácter e pela abordagem às coisas. Homem de negócios que não sabe fazer mais nada a não ser trabalhar, o marido não comunica de forma alguma com o mundo (estrangeiro) que o rodeia. A mulher, essa, comunica um pouco mais com esse mundo, mesmo que seja pelas suas frustrações. Frustração de crianças (enquanto as ruas da cidade parecem uma ode à maternidade). Frustração de saber e de cultura, que ela preenche como pode com as suas excursões e o que o seu marido apelida com desprezo de «peregrinações». Frustração mais geral de contactos humanos. No segundo círculo há duas civilizações que se opõem, o Norte e o Sul: o Norte da hiperactividade e do «time is money», o Sul do farniente, da contemplação e da poesia (aos quais é sensível a personagem de lngrid Bergman). A civilização enquanto valor não está mais no Norte do que no Sul, sugere Rossellini, não há um dilema ou uma escolha a fazer entre os dois. Há uma união, uma síntese e uma harmonia desejáveis e de resto inevitáveis - a menos que o mundo chegue à ruína - entre as duas atitudes, os dois olhares perante a vida que representam o Norte e o Sul. No terceiro círculo encontra-se a fronteira frágil e impalpável entre o mundo da intimidade e o cosmos, entre o interior e o exterior, entre a matéria e a graça, a banalidade quotidiana e o milagre. Nos últimos segundos do filme, as duas personagens sentem que essa fronteira é ilusória; eles experienciam que «tudo é graça» sem o formular. A serenidade estaria tanto fora como dentro, sugere Rossellini. Provam-no esses planos ditos subjectivos tirados do carro com que o filme começa, em que nada indica que estejamos separados da paisagem, em que se absorve a realidade como se respira, em que o subjectivo se confunde com o objectivo, e o espectador (quer se trate do público ou dos protagonistas) com aquilo que observa. Se a arte do cinema consiste em contar uma história simples que absorve e contém gradualmente todas as histórias, e o espectador, e o mundo, então Viagem em Itália pode ser considerado como um dos filmes que exploram os poderes desta arte até ao seu limite extremo. Outra particularidade do filme: quanto mais o olhamos de cima a baixo, mais central e essencial parece, estando situado na encruzilhada das duas correntes fundamentais da história dos últimos cinquenta anos do cinema. Quais são essas duas correntes? Em 1942, sob a influência de Val Lewton, Jacques Toumeur aborda os géneros hollywoodianos com um novo olhar, um outro olhar. Começa pelo género do fantástico (Cat People). A novidade da sua abordagem reinventa e amplia o intimismo do cinema. No seu caso, intimismo significa uma viagem através das profundezas do ser das personagens. Ao filmar, trata-se de estar mais perto da pele e da psique das personagens ao mesmo tempo. Esta tendência vai caracterizar os filmes de Lang a partir de House by the River, os primeiros Preminger e os filmes mais tardios de Hitchcock, como Vertigo e Psycho. Em 1944, a milhares de quilómetros daí, Rossellini acaba de sair como toda a gente do maior cataclismo que a terra conheceu. Com meios modestos, quer fazer a crónica dos últimos dias do antigo mundo. Ao fazê-lo reinventa o presente e o realismo no cinema. Normalmente, estas duas correntes, o intimismo e o realismo não se deviam encontrar. Mas se entra uma certa dose de realismo na nova forma de olhar de Jacques Toumeur, o intimismo acabará por se tornar parte integrante do neo-realismo uma vez que se trata aí também de seguir o mais perto possível as personagens, a sua evolução, os seus sentimentos. Esse intimismo do neo-realismo culmina em Viagem em Itália, filme cardinal em todos os aspectos, já que fala não apenas do Norte e do Sul enquanto pólos de civilização mas une a bricolagem genial e cheia de esperança do inovador artesanal à elegância perfeita e desiludida do esteta que não espera mudar mais nada no mundo. Essa elegância vem parcialmente do encontro Rossellini-Sanders. Se ele não tivesse tido lugar neste filme, poderíamos tê-lo achado improvável, e mesmo impossível. Tendo tido lugar, revelou-se plena de picância e de imprevistos no plano anedótico. Ingrid Bergman dirá ter visto George Sanders, completamente desconcertado com a forma de filmar de Rossellini, a chorar no seu quarto como um miúdo. Foi-lhe dito como forma de consolo pelo seu realizador: «Meu amigo, não é o primeiro mau filme que fazes, e certamente que não será o último...»

N.B. A versão original é a versão inglesa. A versão dobrada italiana é particularmente monstruosa. Tem pelo menos o mérito de sublinhar, acima de qualquer outra, a monstruosidade de toda a dobragem. Não aparece lá uma das melhores cenas do filme (Sanders a notar que toda a gente faz a sesta e não conseguindo fazer entender que quer um copo de vinho) porque era literalmente indobrável. A cena entre Sanders a a prostituta (Anna Proclemer), conservada na versão italiana, é totalmente absurda no seu texto. Sanders (ou melhor, o seu dobrador italiano) diz ao princípio não perceber nada de italiano e depois põe-se a falar com a sua interlocutora italiana, que compreende perfeitamente, num italiano não menos perfeito.

Biblio: argumento e diálogos publicados na revista italiana «Film Critica» n° 156-157 (1965). Decupagem (465 planos) publicada in «L'Avant-Scène» n° 361 (1987). Os diálogos aparecem em bilingue, inglês e francês. O texto das nove canções napolitanas que marcam o filme é produzido em apêndice. Ver também o capítulo 19 da autobiografia de Ingrid Bergman, em que ela lembra que o filme devia ter sido originalmente uma adaptação de «Duo» de Colette, cujos direitos já tinham sido vendidos. Ela evoca a angústia de George Sanders perante os métodos de rodagem particulares de Rossellini (ausência de argumento e de plano de trabalho, pontualidade inexistente, serões improvisados de mergulho). George Sanders, nas suas memórias, «Memoirs of a Professional Cad», Hamish Hamilton, Londres, 1960, que são uma obra-prima, dedica uma dezena de páginas à rodagem do filme. (acrescenta às numerosas excentricidades de Rossellini a que consistia em de vez em quando fazer corridas no seu Ferrari com o expresso Nápoles-Roma, que acabava sempre por ultrapassar). Por fim, deve-se ler o artigo de Jacques Rivette, «Lettre sur Rossellini», in « Cahiers du cinema », n° 46, 1955), que com o texto do mesmo autor sobre Hawks, «Génie de Howard Hawks», in « Cahiers du cinema » n° 23, 1953, marca o nascimento da crítica cinematográfica moderna.

Até Quinta-Feira!

The Salt of the Earth (2014) de Juliano Ribeiro Salgado e Wim Wenders



por Carlos Melo Ferreira

Talvez não tenhamos ainda a noção plena de que Wim Wenders, um dos fundadores do Cinema Novo Alemão dos anos 60 (ver "Fassbinder e o futuro", de 17 de Junho de 2012, e "Palavra e pensamento", de 12 de Outubro de 2013), tem uma importante vertente documental na sua já impressionante obra. O Sal da Terra/The Salt of the Earth, co-realizado com Juliano Ribeiro Salgado (2014), vem recordar de maneira feliz o seu lado documentarista no cinema, pois permite-lhe uma reflexão dupla sobre a imagem, a do cinema e sobretudo a da fotografia por intermédio da personagem central e motora, o famoso fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado. 

Vamos por partes. Depois de filmes iniciais justos e muito bons, Wim Wenders dispersou-se um tanto na beleza das imagens por si própria, sem grande recuo, o que, aliás, fez o sucesso dos seus filmes desde As Asas do Desejo/Der Himmel über Berlin (1987), justamente um filme notável pela ligação que estabelece entre imagens e sons. Pese embora a minha admiração por esse e outros filmes subsequentes, não devo esconder que é nos seus filmes iniciais que ainda hoje descubro o seu melhor.

Posto isto, O Sal da Terra agora estreado entre nós é um projecto consequente com o seu anterior Pina (2011), sobre a famosa e entretanto desaparecida bailarina e coreógrafa Pina Bausch (1940-2009), pois se trata de um filme sobre um criador artístico visual, um fotógrafo, e um fotógrafo famoso. O assunto permite ao cineasta, acolitado pelo filho mais velho do fotógrafo, ao recapitular com este a sua vida e a sua obra produzir sobretudo pela palavra do fotógrafo uma reflexão muito produtiva sobre a imagem da fotografia na história e sobre a própria história. 

De facto, Sebastião Salgado foi uma testemunha privilegiada dos últimos 40 anos da história mundial, presente com a sua máquina fotográfica nos locais e momentos em que a história recente mais doeu: no Sudeste Asiático, em África (pela qual não esconde a sua preferência), na ex-Jugoslávia, na América Latina, mas também na Sibéria, na fronteira com o Ártico, no seu próprio país, o Brasil. Conhecendo já a obra do fotógrafo, o que mais me interessa no filme é o que ele nele diz sobre si próprio e em especial sobre as suas fotografias, o espaço, o tempo e as circunstâncias em que foram tiradas. 

Arte visual, a fotografia é uma "arte muda" (se me é permitida a redundância), e o que o filme de Wim Wenders e Juliano Ribeiro Salgado permite e procura é a palavra do fotógrafo Sebastião Salgado sobre as suas fotografias, as suas séries temáticas. Casando bem a vida profissional e a vida pessoal do protagonista, o filme destaca-se sobretudo por ser uma lição de fotografia e sobretudo de história sobre os conturbados anos que a Sebastião Salgado foi (como a nós) dado viver. 

Ora esta reflexão, este esclarecimento do fotógrafo sobre o seu trabalho, é acompanhado por um bom exercício cinematográfico dos realizadores que, estabelecendo de maneira muito clara a diferença entre a fotografia e o cinema, permite através deste questionar aquela. Pese embora uma ou outra ingenuidade, como a dobragem com som ambiente de fotografias antigas, O Sal da Terra cumpre bem uma função reflexiva de segundo ou terceiro grau, dando à pessoa física do fotógrafo o destaque visual e sonoro que ele merece sem se coibir (pelo contrário) de mostrar as suas fotografias e de, a esse propósito, explorar o contraste do preto e branco e da cor

Que dessa forma nos seja permitido recapitular 40 anos de história, e da história mais trágica da humanidade, não dissociando o local do global, é um dos méritos principais do filme, em especial para uma época que, pressionada pelo presente, tende a esquecer o passado mais próximo, contudo dele indissociável. Por ser ele próprio fotógrafo, e fotógrafo de mérito, Wim Wenders sai-se bastante bem neste filme em que não receia mostrar-se a si próprio em diálogo com o protagonista. Que em conclusão se expresse confiança no ser humano, contudo responsável por tantas e tão selvagens destruições, sem convencer fica bem.

in «O poder da imagem», Some like it cool, 12 de Abril de 2015.

sábado, 6 de outubro de 2018

113ª sessão: dia 9 de Outubro (Terça-Feira), às 21h30


Na próxima semana iniciamos o ciclo dedicado ao "Belo e a Consolação" com um dos últimos filmes de Wim Wenders, O Sal da Terra, realizado a meias com o filho do fotógrafo Sebastião Salgado (cujo trabalho é retratado neste documentário), Juliano Ribeiro Salgado.

Em entrevista ao IndieWire, Wim Wenders confessou que  "não sabia nada sobre o homem até um dia em 1987. Em meados dos anos 80 estava a andar por Los Angeles, e vi um par de fotografias a preto e branco pelo canto do olho numa galeria onde não tinha qualquer intenção em entrar. Tinha acabado de as ver e atraíram-me imediatamente.

"Fui directo para dentro e eles tinham cerca de doze fotos de uma série captada em Buenos Aires e fiquei completamente encantado por este jovem fotógrafo brasileiro, Sebastião Salgado. E como era uma galeria comercial decidi comprar uma dessas fotografias. Tive mesmo de o fazer, porque achei que eram tão extraordinárias e tão aventurosas… Este fotógrafo tinha um grande olho e também era um grande aventureiro.

"Depois a [pessoa da] galeria aproveitou-se mesmo de mim e disse, “Tenho outra série de fotografias deste fotógrafo.” E o que me mostraram foi uma missão muito diferente em que Salgado esteve. Estas fotografias do Sahel, em Africa, onde houve uma missão mais humanitária para relatar sobre as secas tocaram-me de uma maneira muito diferente. E fiquei igualmente encantado. Portanto saí de lá com duas fotografias, pendurei-as e têm estado comigo desde então."

Já Juliano Ribeiro Salgado disse ao El País que "o filme tinha de acontecer, mas a última coisa que eu queria fazer era um filme sobre o Tião antes de ter, sei lá, 70 ou 80 anos, estar resolvido e livre… Na época, apesar de sermos próximos, andávamos meio afastados, e dava um pouco de medo, porque, quando você faz um filme, termina sendo muito intruso. Em 2009, apareceu o Wim Wenders lá na casa dos meus pais, em Paris.

"Ele tinha uma ideia de um dia fazer um projeto sobre o Sebastião, mas não sabia nem o que e nem como. Ficamos com isso, e uma semana depois eu estava acompanhando o Tião nas terras dos índios zo'é, no Estado do Pará, que são uma tribo que viveu muito tempo isolada. Eles têm a particularidade de ser muito doces, não reprimem as crianças, não dizem não pra ninguém… Nunca acontecem discussões entre eles e, quando acontece, eles colocam as duas pessoas em um lugar santo deles, os dois brigam e tudo acaba lá. Eu estava meio relutante em estar lá sozinho com ele, nessa coisa de pai e filho. Pensava muito em que período juntos, entre quatro paredes, seria esse. Mas foi ótimo, e a gente se deu muito bem.

"Quando a gente voltou, trouxe comigo umas imagens que eu editei e mostrei pro Tião. Ele viu as imagens, e a gente se emocionou muito, vendo como eu via ele. Ele ficou muito tocado, se vendo através dos meus olhos. Não podia se virar pra mim, senão ia chorar. E eu também. Até hoje, quando falo disso, tem uma emoção muito forte. Foi o que me deu confiança de que era o momento certo de me aproximar e fazer um filme, abrir portas."

No antigo blog, Some like it cool, Carlos Melo Ferreira escreveu que "talvez não tenhamos ainda a noção plena de que Wim Wenders, um dos fundadores do Cinema Novo Alemão dos anos 60 (ver "Fassbinder e o futuro", de 17 de Junho de 2012, e "Palavra e pensamento", de 12 de Outubro de 2013), tem uma importante vertente documental na sua já impressionante obra. O Sal da Terra/The Salt of the Earth, co-realizado com Juliano Ribeiro Salgado (2014), vem recordar de maneira feliz o seu lado documentarista no cinema, pois permite-lhe uma reflexão dupla sobre a imagem, a do cinema e sobretudo a da fotografia por intermédio da personagem central e motora, o famoso fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado. 

"Vamos por partes. Depois de filmes iniciais justos e muito bons, Wim Wenders dispersou-se um tanto na beleza das imagens por si própria, sem grande recuo, o que, aliás, fez o sucesso dos seus filmes desde As Asas do Desejo/Der Himmel über Berlin (1987), justamente um filme notável pela ligação que estabelece entre imagens e sons. Pese embora a minha admiração por esse e outros filmes subsequentes, não devo esconder que é nos seus filmes iniciais que ainda hoje descubro o seu melhor. 

"Posto isto, O Sal da Terra agora estreado entre nós é um projecto consequente com o seu anterior Pina (2011), sobre a famosa e entretanto desaparecida bailarina e coreógrafa Pina Bausch (1940-2009), pois se trata de um filme sobre um criador artístico visual, um fotógrafo, e um fotógrafo famoso. O assunto permite ao cineasta, acolitado pelo filho mais velho do fotógrafo, ao recapitular com este a sua vida e a sua obra produzir sobretudo pela palavra do fotógrafo uma reflexão muito produtiva sobre a imagem da fotografia na história e sobre a própria história."

Até Terça!

sexta-feira, 5 de outubro de 2018

Die linkshändige Frau (1978) de Peter Handke



por Luís Miguel Oliveira

À boleia do programa de reposições dos filmes de Wim Wenders chega-nos a estreia na longa-metragem de Peter Handke, A Mulher Canhota, obra com data de 1978. Da sua experiência como realizador é o filme que importa reter, visto que a sequência mais conhecida (A Ausência, no princípio dos anos 90) era bastante fraca. Wenders não assumiu, pelo menos oficialmente, qualquer papel em A Mulher Canhota, mas as contiguidades são variadas, e explicam-se pelo facto de Handke ter sido, dos primórdios (A Angústia do Guarda-Redes Antes do Penalti) à actualidade (Os Belos Dias de Aranjuez), passando por Movimento em Falso ou As Asas do Desejo, argumentista ou fonte literária de diversos filmes de Wenders, e nessa condição um dos mais fortes contributos para a definição do universo do seu amigo cineasta. 

Encontramos aqui, por exemplo, alguns actores de Wenders no passado, no presente e no futuro (Bruno Ganz, Rudiger Vogler, ou o actor-cineasta Bernhard Wicki que viria a ter um papel em Paris, Texas), bem como uma discreta fixação num dos heróis cinematográficos de Wenders, Yasujiro Ozu, homenageado (vemos a efígie dele, num poster) e a partir daí cuidadosamente disseminado seja pelos planos de comboios e outras clássica “pontuações” típicas de Ozu, seja através da profusão de pequenos rituais domésticos em que a protagonista, a grande Edith Clever (que no futuro se tornaria a actriz de eleição de Hans-Jurgen Syberberg), se dedica. 

História de emancipação feminina, para o dizer com grandes palavras, e história de ruptura desse confinamento doméstico dado numa sucessão de rotinas, A Mulher Canhota também parece denotar a influência de um filme que em 1978 era ainda recente, o filme da grande revelação internacional de Chantal Akerman, Jeanne Dielman, 23, Quai du Commerce, 1080 Bruxelles, de que A Mulher Canhota podia ser uma “rima” literária. E “literária”, aqui, sem qualquer conotação pejorativa, porque é evidente que Handke, sendo um homem do texto, lhe confere uma dimensão essencial. E de certo modo, rever A Mulher Canhota é intuir como isso — a relação com o texto — parece subitamente uma coisa dos anos 70 e 80 que saiu de moda e tem poucos cultores no cinema contemporâneo: todo o delicado equilíbrio do filme de Handke repousa na articulação entre a clareza das palavras, a sua proeminência sempre levada para territórios “não-naturalistas” (vulgo, “teatrais”), e o carácter extremamente concreto da narrativa, dos seus cenários (as ruas de Paris) e das suas personagens, a que não faltam momentos de um humor quase slapstick (os miúdos e os baldes no jardim, dados duma maneira que podiam ser uma evocação do nascimento do burlesco no Regador Regado dos irmãos Lumière). 

É portanto um filme que nos chega orgulhosamente doutro tempo, recheado de grandes actores (para além dos já referidos: Michael Lonsdale, Angela Winkler, o histórico Bernhard Minetti), e cujo visionamento constituirá por certo uma bela surpresa para os que se dispuserem a descobri-lo.

in «Peter Handke, cineasta destro», Ípsilon, 8 de Fevereiro de 2017.

quarta-feira, 3 de outubro de 2018

112ª sessão: dia 4 de Outubro (Quinta-Feira), às 21h30


Continuando a nossa homenagem a Robby Müller, chega a vez de A Mulher Canhota do escritor e cineasta austríaco Peter Handke, que se juntou a Wim Wenders, Bruno Ganz e Müller (todos acabados de sair da produção de O Amigo Americano) para adaptar o seu romance de 1976, Die linkshändige frau, ao grande écran.

Handke, que foi ao Festival de Cinema de Lisboa e do Estoril em 2016, disse a Paulo Branco que "fiz o filme há quarenta anos e para mim é difícil falar sobre ele agora, foi uma experiência bastante única e eu sentia-me como um intruso no mundo dos cineastas e do cinema e ainda me sinto assim. Acho que não me devia justificar, mas quando fiz o filme A Mulher Canhota tive depois o que se apelida na biografia dos seres humanos como uma crise de identidade. Já não me sentia um escritor e sobretudo um cineasta e não fazia ideia como continuar. Mas enquanto preparava o filme, quando escrevi o argumento, enquanto estava com os actores, com a luz, com a neve e sobretudo com o espaço nos subúrbios de Paris, estava entusiasmado. Mas depois foi como que uma queda total no nada, numa espécie de culpa... depois. E fiquei sempre entre as duas coisas, concordo com aquilo que fiz mas ao mesmo tempo, e como a citação do cineasta iugoslavo que eu mencionei, "sabem que só há lugar para os que produzem o seu próprio lugar"... e eu não sei se produzi o meu próprio lugar para o filme. E depois, claro, continuei, escrevi outro argumento - mas foi dez anos depois."

Gérard Courant, autor do projecto Cinématon, escreveu sobre o filme para a Cinéma 78, notando que "a tomada de posição obsessiva para um cineasta de fazer uma descrição minuciosa de um espaço e de um lugar, ao abrigo das mudanças do tempo (meteorologia) e da transição das estações (aqui, do Inverno para a Primavera, os inserts assinalam-no com insistência: o filme desenrola-se em Março, Abril e Maio) é coisa rara demais no cinema para que nos passe ao lado uma abordagem tão original como a de A Mulher Canhota, o filme de Peter Handke. É que com o tempo há qualquer coisa que envolve profundamente o cinema. O tempo é a transformação e a mudança de um lugar, do seu espaço (nem que fosse apenas pelos levantes rápidos de luzes), ou seja qualquer coisa com que a mise en scène banal não se importa. Em A Mulher Canhota há imagens de nuvens com as formas mais sedutoras e mais inquietantes, sombrias e voluptuosas (que paletas de cores!), há planos frequentemente sombrios de aguaceiros de chuva ou de neve e também há planos em que o sol do fim do inverno lança os seus raios horizontais por entre nuvens negras. É de um laranja muito forçado e apertado e esse vai-e-vem incessante entre os dois tons dominantes, que devemos a Robby Müller, o comparsa habitual de Wim Wenders, tem que ver com o tema do filme: uma mulher pede ao seu marido que a deixe para viver sozinha. E para ser preciso ela fala a Bruno, o seu marido, nestes termos: «De repente fez-se-me a luz de que tu te ias do pé de mim, que me deixavas sozinha. Sim, é isso, Bruno, vai-te. Deixa-me sozinha». De seguida, é só deambulação, desordem e solidão, mas também libertação e euforia (passageira).

"Isto tudo não quer dizer, claro, que todos os filmes que jogam com a ciência meteorológica sejam interessantes. Mas, inversamente, é de fazer o tempo interpretar outra coisa além do papel de um simples cenário que o filme obtém a sua força. No Cinema de Consumo Corrente, uma tempestade pode implicar seja a iminência de acontecimentos graves, seja a possibilidade de fazer reencontrar dois seres ao abrigo do dilúvio, um raio de sol pode facilitar o despojamento da heroína, etc.

"Portanto o tempo em A Mulher Canhota não é um cenário, mas torna-se a tal ponto um motivo que, assim que neva, a mulher, feliz, em vez de se apressar ou arranjar abrigo, prefere orientar o seu olhar na direcção do céu para receber os flocos na cara. Disse a Mulher. É assim que ela é designada ao longo de todo o filme É um termo abstracto porque para Peter Handke ela não é uma mulher, mas todas as mulheres."

Para o Diário de Notícias, Inês Lourenço escreveu: "Associado à reposição de obras emblemáticas de Wim Wenders surge este maravilhoso A Mulher Canhota (1978), primeira longa-metragem do austríaco Peter Handke, que evidencia um autor capaz de passar das palavras às imagens com refinada sensibilidade dramática.

"Adaptando o seu romance homónimo, Handke retrata o desejo de liberdade de uma mulher (Edith Clever), que, num impulso feminista, se separa abruptamente do marido (Bruno Ganz), dedicando os dias ao labor dessa pesada autonomia.

"A solidão, descontinuada apenas pelas brincadeiras do filho, molda uma nova experiência da paisagem suburbana, que nos remete para Ozu - embora estejamos em França. Os recorrentes planos na estação de comboios, a vivacidade da infância e o minimalismo poético sublinham um gracioso tributo a esse cineasta cuja fotografia, na parede, vigia as inquietações humanas."

Até Quinta-Feira!

Der Amerikanische Freund (1977) de Wim Wenders



por João Palhares

Wim Wenders é o realizador mais famoso e mais projectado internacionalmente do chamado “Novo Cinema Alemão”, do qual também fazem (ou fizeram) parte Rainer Werner Fassbinder, Hans-Jürgen Syberberg, Margarethe von Trotta, Werner Herzog, Harun Farocki, Werner Schroeter, Volker Schlöndorff, Alexander Kluge, Jean-Marie Straub e Danièle Huillet. Se sempre houve uma preferência quase por qualquer um dos outros representantes desse movimento da parte de quem escreve estas linhas, a verdade é que Wenders tem pelo menos uma obra-prima, O Estado das Coisas (1982), deambulação muitíssimo atmosférica por Sintra e pelas paisagens de fim do mundo da série B e do cinema independente norte-americanos (não faltando um cameo de Roger Corman - o rei dos independentes), sobre uma produção muito acidentada de um remake de O Mais Perigoso Homem Vivo (1961) de Allan Dwan e que à melhor maneira dos métodos de outro produtor independente, Paulo Branco, usou meia equipa técnica de uma produção anterior (O Território de Raúl Ruiz) e serviu também para abastecer Jim Jarmusch de película para filmar trinta minutos de Stranger than Paradise (1984), então uma curta, envolvendo ainda a Zoetrope de Francis Ford Coppola que na altura produzia Hammett (1982), também realizado por Wim Wenders. 

Há algo que passa dessas atmosferas e desses fins de mundo para O Amigo Americano através da música de Jürgen Knieper (que também assinou a banda-sonora de O Estado das Coisas), das belas imagens de Robby Müller e da curiosidade inocente e muito receptiva de Wim Wenders. O pintor com a pala no olho direito de Nicholas Ray encurvado num parapeito para ouvir melhor o Tom Ripley de Dennis Hopper, Ray e Hopper a percorrerem aquela estrada aérea de Nova Iorque, a doença sanguínea do personagem de Bruno Ganz a corroê-lo aos poucos por dentro e a torná-lo cada vez mais virado para o crime e para o uso das armas. É vê-lo percorrer o metro de Paris com uma mão a segurar um lenço contra a cara e outra no bolso do casaco a empunhar a arma que Gérard Blain lhe tinha dado, primeiro vidrado na sua missão e depois desobedecendo a todas as regras e condutas profissionais que o francês lhe tinha recomendado. Jean Eustache com uma mala de médico a tratar de Ganz no balcão de um bar parisiense, Fuller e o seu imortal charuto a percorrerem um comboio numa missão de reconhecimento, etc, etc. 

Dando a palavra ao José Oliveira, que escreveu sobre o filme em 2009 para o seu raging-b, há “um interesse pelas texturas e pela peculiaridade de cada lugar, pela singularidade, mesmo que enquadradas, sempre, pelo Cinema. E um interesse genuíno pelas personagens, aqui não há bonecada para ninguém. Mas o que acho essencial, e que me há-de tocar sempre nestes filmes iniciais de Wenders, é esta inocência das situações presentes a cada cena (que pode ser um encontro entre Ganz e Eustache num bar parisiense), esta inocência das coisas, das imagens, esta abstração temporal, esta fascinação absolutamente assumida pelos lugares, pela maneira americana e pelos mitos. Daí uma poética realmente sentida e uma ausência de qualquer pompa ou pretensão. Nada de saudosismo, antes uma melancolia preciosa e tocante. O cinema e só o cinema e a vontade de viajar e de deixar entrar mundos. Der Amerikanische Freund tem a força e a candura das coisas inatacáveis e cristalinas, é um produto do amor e isso basta-lhe.”