por Manuel Halpern
Na véspera da sua morte, Sócrates compartilhava a cela com um tocador de lira. Pediu-lhe então que lhe ensinasse a tocar aquele instrumento. O outro respondeu espantado: "Mas se ireis morrer amanhã, porque quereis aprender a tocar lira?" Ele respondeu: "Tens razão, morrerei amanhã, mas amanhã saberei tocar lira". Este episódio que se conta da vida de Sócrates, relatado no filme de Fernando Lopes, serve de exemplo para a insaciável busca do conhecimento ou, como sintetiza o povo, a ideia de aprender até morrer. Aplicada a Em Câmara Lenta, mais do que o conhecimento em si, a citação, que no filme também é um prenúncio, pode ser entendida como a busca constante da arte e da poesia. Que é o que Fernando Lopes tem feito ao longo da sua obra, de forma mais ou menos assertiva. E que aqui chega a um dos seus esplendores poéticos. Cita-se Alexandre O'Neill à descarada, sobretudo as suas considerações sobre as mulheres, como que lhe dando um papel de inspirador marialva. De alguma forma, Em Câmara Lenta torna-se assim uma homenagem a O'Neill ou, pelo menos, uma manifestação de afeto e cumplicidade. Isto é feito de modo claro e até pouco subtil quando Santiago leva a sua amante ao Parque dos Poetas, em Oeiras, e cita O'Neill em frente á sua estátua. "Sigamos o Cherne"... E o filme segue o cherne até ao fim do mar. Só que o mar é tão extenso que o filme acaba antes que o mar acabe. Mas fica a ideia de nadar sem fim, num deserto de água, com uma pele marinha, nadar como quem foge e como quem se liberta. Nadar até ao nada. "Vou atrás de um peixe grande, e desta vez ou eu o apanho ou ele me apanha a mim".
Há um homem que se perdeu no mar, e outro que tenta encontrar o seu fantasma, mas não é um filme sobre pescadores, mas de mortos-vivos. Fala da perda de uma personagem que sem encontrar o outro não se encontra a si própria. E então fecha-se na improbabilidade dos relacionamentos, que nunca são suficientemente profundos, porque ele próprio não se consegue desprender do mar que o atravessa.
Aqui, a sinopse pouco interessa ou pouco nos diz. Porque, em resumo, até pode parecer vazio, um drama trivial, de triângulos e quadrados que se enrodilham de forma mais ou menos dramática. De angústias plausíveis e reconhecíveis. Não é um filme em que conte a história. Prevalece antes o olhar, a profundidade das personagens, ou melhor, a densidade em concreto de Santiago, figura altamente egocêntrica que chama para si as luzes e as câmaras, como se os dramas que o circundam não tivessem peso. Santiago não é uma figura simpática, queima tudo à sua volta e acaba por morrer queimado.
Não entrando no extremo da private joke, de Os Sorrisos do Destino, em que com algum pragmatismo trivial, Fernando Lopes importou para o filme um facto que lhe aconteceu na vida (o resultado é um dos piores filmes da sua carreira), continua a haver um lado de espelho em Em Câmara Lenta. Sabemos que Fernando Lopes está ali, em Santiago (Rui Morrison), personagem que o representa. De resto, não é por acaso que todas as personagens bebem uísque e é estranha a coincidência de todas as atrizes se chamarem Maria João.
A outra personagem masculina, Salvador (João Reis), faz o contrabalanço com Santiago, é a figura tragicómica, mas igualmente deprimida. O bêbedo alegre e espirituoso. É um grande momento quando, no British Bar, eleva a voz para dizer que tem um anúncio a fazer, e os clientes respondem em coro: "A minha mulher deixou-me!". Uma auto-ironia fantástica. É a personagem mais terna, cheia de pena de si própria, mas que, apesar de tudo, consegue ver o outro. Um fotógrafo que escreve um diário, e vive na esperança de voltar para a mulher, que o deixou por causa da bebida.
À exceção da mulher de Salvador, que nem chegamos a conhecer, as personagens femininas caracterizam-se por uma resignação e submissão algo misteriosa. Laurence, a mulher, aceita a amante de Santiago (ou melhor, o facto de Santiago ter uma amante) com uma naturalidade fiel. Subentende-se uma relação funcional, porventura incompleta ou inconsumada, mas sem plano de rotura. Ambos se conformam, mantendo apenas discussões educadas e elevadas, que até evidenciam cumplicidade.
Constança, a amante, submete-se a um destino que ela própria ditou e que a aprisiona. "Tu és o homem a quem me decidi entregar". E diz isso como uma fatalidade, absolutamente inalterável, um karma, que mais à frente a faz gueixa, na dicotomia entre o amor e a morte. A morte é a vingança do amor. Perante estas mulheres que, passivas, submissas, se rendem ao seu desígnio, Santiago reina de forma desafetada e egoísta, mas não deliberadamente maldosa. O pecado dele talvez seja gostar sem amar, ou amar sem cuidar, deixa-se levar mas não vai. Na viagem que faz, pede dois quartos no hotel, para grande desilusão de Constança. Quer acordar sozinho. Recusa-se a entregar-se totalmente. Em oposição ao avô de Constança, que vão visitar ao lar, e encontram-no a dormir na campa da esposa falecida: esse entrega-se mesmo até depois de a morte os separar.
Visão poética do realizador que recupera o melhor da sua estética, do seu olhar, com diálogos menos naturalistas, citações abundantes, imagens que preenchem a alma. Um sentido estético próximo de Lá Fora. Santiago talvez seja o engenheiro que constrói os não lugares desse outro filme. Só que aqui o artificialismo não prevalece. Há uma poética do vazio e dos espaços sem fim, outrora artificiais, aqui apenas imensos. Em Câmara Lenta é o melhor filme de Fernando Lopes desde O Delfim. Uma aventura aquática pelos abismos da alma de um mártir de si próprio.
Há um homem que se perdeu no mar, e outro que tenta encontrar o seu fantasma, mas não é um filme sobre pescadores, mas de mortos-vivos. Fala da perda de uma personagem que sem encontrar o outro não se encontra a si própria. E então fecha-se na improbabilidade dos relacionamentos, que nunca são suficientemente profundos, porque ele próprio não se consegue desprender do mar que o atravessa.
Aqui, a sinopse pouco interessa ou pouco nos diz. Porque, em resumo, até pode parecer vazio, um drama trivial, de triângulos e quadrados que se enrodilham de forma mais ou menos dramática. De angústias plausíveis e reconhecíveis. Não é um filme em que conte a história. Prevalece antes o olhar, a profundidade das personagens, ou melhor, a densidade em concreto de Santiago, figura altamente egocêntrica que chama para si as luzes e as câmaras, como se os dramas que o circundam não tivessem peso. Santiago não é uma figura simpática, queima tudo à sua volta e acaba por morrer queimado.
Não entrando no extremo da private joke, de Os Sorrisos do Destino, em que com algum pragmatismo trivial, Fernando Lopes importou para o filme um facto que lhe aconteceu na vida (o resultado é um dos piores filmes da sua carreira), continua a haver um lado de espelho em Em Câmara Lenta. Sabemos que Fernando Lopes está ali, em Santiago (Rui Morrison), personagem que o representa. De resto, não é por acaso que todas as personagens bebem uísque e é estranha a coincidência de todas as atrizes se chamarem Maria João.
A outra personagem masculina, Salvador (João Reis), faz o contrabalanço com Santiago, é a figura tragicómica, mas igualmente deprimida. O bêbedo alegre e espirituoso. É um grande momento quando, no British Bar, eleva a voz para dizer que tem um anúncio a fazer, e os clientes respondem em coro: "A minha mulher deixou-me!". Uma auto-ironia fantástica. É a personagem mais terna, cheia de pena de si própria, mas que, apesar de tudo, consegue ver o outro. Um fotógrafo que escreve um diário, e vive na esperança de voltar para a mulher, que o deixou por causa da bebida.
À exceção da mulher de Salvador, que nem chegamos a conhecer, as personagens femininas caracterizam-se por uma resignação e submissão algo misteriosa. Laurence, a mulher, aceita a amante de Santiago (ou melhor, o facto de Santiago ter uma amante) com uma naturalidade fiel. Subentende-se uma relação funcional, porventura incompleta ou inconsumada, mas sem plano de rotura. Ambos se conformam, mantendo apenas discussões educadas e elevadas, que até evidenciam cumplicidade.
Constança, a amante, submete-se a um destino que ela própria ditou e que a aprisiona. "Tu és o homem a quem me decidi entregar". E diz isso como uma fatalidade, absolutamente inalterável, um karma, que mais à frente a faz gueixa, na dicotomia entre o amor e a morte. A morte é a vingança do amor. Perante estas mulheres que, passivas, submissas, se rendem ao seu desígnio, Santiago reina de forma desafetada e egoísta, mas não deliberadamente maldosa. O pecado dele talvez seja gostar sem amar, ou amar sem cuidar, deixa-se levar mas não vai. Na viagem que faz, pede dois quartos no hotel, para grande desilusão de Constança. Quer acordar sozinho. Recusa-se a entregar-se totalmente. Em oposição ao avô de Constança, que vão visitar ao lar, e encontram-no a dormir na campa da esposa falecida: esse entrega-se mesmo até depois de a morte os separar.
Visão poética do realizador que recupera o melhor da sua estética, do seu olhar, com diálogos menos naturalistas, citações abundantes, imagens que preenchem a alma. Um sentido estético próximo de Lá Fora. Santiago talvez seja o engenheiro que constrói os não lugares desse outro filme. Só que aqui o artificialismo não prevalece. Há uma poética do vazio e dos espaços sem fim, outrora artificiais, aqui apenas imensos. Em Câmara Lenta é o melhor filme de Fernando Lopes desde O Delfim. Uma aventura aquática pelos abismos da alma de um mártir de si próprio.
in «Em Câmara Lenta: Até ao fim do Mar», Visão, 7 de Março de 2012.
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