quarta-feira, 17 de outubro de 2018

Luz Teimosa (2010) de Luís Alves de Matos



por Luísa Soares de Oliveira

Em Luz Teimosa há uma fotografia que ressurge em diversos momentos, acentuando a circularidade das histórias que se cruzam ou afastam durante os 75 minutos do filme: o retrato de uma rapariguinha, tirado numa romaria do Norte pouco antes de Fernando Lemos, o fotógrafo (mas que foi também pintor, desenhador, poeta e ilustrador) partir para o Brasil, em 1953. É uma imagem a preto e branco, que se afasta do experimentalismo processual pelo qual a obra fotográfica de Lemos se tornou conhecida. Onde antes haveria sobreposições, impressões em negativo, solarizações à maneira de Man Ray, há agora uma imagem quase documental, directa, um desses objectos que, na fotografia, guardam a aura benjaminiana do desaparecido. 

Luz Teimosa, o filme documentário sobre Lemos, que ganhou o Prémio Melhor Filme Português sobre Arte no festival Temps d'Image de 2011 e uma menção honrosa na categoria de longas-metragens no festival Iberoamericano de Cinema de Sergipe – Curta-se, no mesmo ano, chegou agora à edição DVD, depois de também ter passado pelo DocLisboa de 2010 onde o público teve a possibilidade de o ver. Realizado por Luís Alves de Matos, a partir duma ideia do mesmo e de Pedro Aguilar, evita, e bem, os escolhos da recriação biográfica para se concentrar numa abordagem emotiva e intimista da vida presente do artista, a partir da qual momentos decisivos do passado são evocados. O realizador tenta mesmo recuperar algo do 'cadavre-exquis' surrealista ao intercalar excertos filmados em Super8 e fragmentos de poemas ou críticas escritas na própria montagem do filme, quase como didascálias. 

Lemos, que expôs com outros surrealistas portugueses na Casa Jalco, em Lisboa, em 1952, surge assim na sua casa de São Paulo, como no Castelo de São Jorge a evocar a vida em Lisboa na década de 50, no Porto, numa praia de Ubatuba. Clara fica a razão do seu interesse pela fotografia: é que ela 'já nasce com o seu próprio registo', e deve sempre ser a preto e branco, porque o artista gosta cada vez mais do preto e branco em tudo, 'mesmo no cinema'. Mais importante, considerava que 'a luz era o nosso desenho', e que a fotografia analógica, no processo químico que a permite revelar, se assemelha a um combate entre a luz e a sombra, ou mesmo, a qualquer coisa que parece o acto de pescar (entrevista a Sérgio B. Gomes em Público, 4.12.2009). 

in «O artista das duas pátrias», Ípsilon.

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