quarta-feira, 22 de março de 2023

286ª sessão: dia 28 de Março (Terça-Feira), às 21h30


Filme de José Luis Guerín na BLCS 

Inserido no ciclo “Sou do Tamanho do que Aprendo – Histórias sobre Educação”, promovido pelo Lucky Star – Cineclube de Braga durante o mês de Março a desafio do Sindicato de Professores do Norte (SPN), que celebra este ano o seu quadragésimo aniversário, A Academia das Musas, do cineasta espanhol José Luis Guerín, é a proposta do cineclube para dia 28 às 21h30, no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva (BLCS). 

Conhecido por Innisfree (1990), Comboio de Sombras (1997) e Dans la ville de Sylvia (2007) , Guerín é um cineasta, argumentista e produtor espanhol que nasceu em Barcelona em 1960. Aos 23 anos, e depois de realizar Los motivos de Berta, em 1983, convidou o crítico espanhol Miguel Marías para apresentar a sua obra, em Madrid. Este disse-lhe que tinha de ver o filme, primeiro, e gostar, o que acabou por acontecer. Quando perguntou ao jovem realizador porque o tinha escolhido, este disse-lhe que fora por causa das críticas que tinha lido, assinadas por si, mas especialmente uma sobre Lancelote do Lago de Robert Bresson. 

Apesar de ser um filme espanhol, Innisfree é falado em inglês e gaélico. É sobre a rodagem de O Homem Tranquilo, filme de John Ford protagonizado por John Wayne e Maureen O'Hara, e situa- se no povoado de Cong, condado de Mayo, na Irlanda, evocando as paisagens do filme do cineasta norte-americano quase quarenta anos passados da sua produção. 

Exibido na Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes de 1997, Comboio de Sombras valeu a Guerín o Meliés de Prata do Festival de Cinema de Sitges e o Grande Prémio do Fantasporto, em Portugal. Recria o desaparecimento dum fotógrafo francês nos anos 20 do século passado. Dans la ville de Sylvia é uma produção hispano-francesa sobre o regresso dum jovem artista a Strasbourg à procura de Sylvia, mulher que conheceu seis anos antes. 

A Academia das Musas é a última longa-metragem do cineasta catalão. Como nos diz a sinopse, trata da abordagem pedagógica dum professor de Filologia, com um projecto que “pretende regenerar o mundo através da poesia”. Interpretado por Raffaele Pinto, no papel do professor, encerrará o ciclo promovido pelo cineclube durante o mês de Março dedicado à educação. 

As sessões de cinema do Lucky Star – Cineclube de Braga ocorrem sempre às terças-feiras, a partir das 21h30. A entrada custa um euro para estudantes e utilizadores da Biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Até Terça!

Mashgh-e Shab (1989) de Abbas Kiarostami



por Alexandra Barros

Trabalhos de Casa é uma investigação em forma de filme (nas palavras de Kiarostami) sobre essa ferramenta pedagógica. Partindo das suas próprias dificuldades em ajudar os filhos a realizar as suas tarefas escolares e sem ideias pré-definidas sobre o que o filme deveria ser, Kiarostami decide interrogar alunos do ensino primário de uma escola iraniana acerca do tema. 

O filme, com o formato de um documentário, centra-se em grandes planos desses alunos captados durante a série de entrevistas. Estas imagens são recorrentemente intercaladas por imagens do operador de câmara a apontar-nos/-lhes a sua lente, uma decisão de montagem tomada por Kiarostami em função das declarações, nem sempre sinceras, que recolheu. Caso exemplar é o da reacção à pergunta “Preferes ver desenhos animados na televisão ou fazer os trabalhos de casa?”. Todas as crianças declaram a sua preferência pelos últimos. Estas respostas, tão claramente distorcidas pela vontade de “ficar bem na fotografia”, colocam em evidência o lado performativo dos depoimentos, induzido pelas circunstâncias em que decorrem. O efeito do observador, fenómeno com especial relevância na física quântica, designa as modificações que o processo de observação produz no objecto observado. Por exemplo, para que um electrão possa ser detectado é necessário que um fotão interaja com ele; porém, essa interacção altera necessariamente o estado inicial do electrão. Analogamente, por estarem sob o “olhar” de uma câmara de filmar, o comportamento dos filmados está sujeito ao efeito do observador

Mas não é só (nem principalmente) por causa do efeito do observador que a “verdade” de um documentário é dúbia. Mais do que o que é filmado, o que nos é dado a ver é determinado por como é filmado. No início do filme, vemos todos os alunos da escola alinhados no pátio para a endoutrinação diária. Em resposta a uma voz de comando, as crianças clamam em uníssono louvores aos seus líderes religiosos e políticos e dirigem ataques agressivos aos inimigos e ao mundo dos “infiéis”. Captadas em grandes planos, as imagens sugerem um grupo coeso, convicto e disciplinado. No final do filme, regressamos aos “cânticos” de adoração e ódio, mas agora a câmara aproxima-se das crianças e o som é eliminado. O que vemos então não podia estar mais longe do que vimos anteriormente. Esta cena, que a censura desejou suprimir, fala demasiado alto e o que diz não fica bem na “fotografia oficial”. 

O filme abre janelas para a sociedade iraniana e através delas avistamos: pais preponderantemente incapazes de ajudar os filhos nas suas tarefas escolares por serem analfabetos ou não estarem familiarizados com os novos métodos e conteúdos educativos; ambientes escolar e familiar fortemente marcados pelo autoritarismo, repressão, medo; uma sociedade que perpetua e incentiva o belicismo e a violência física e emocional. Todos os miúdos sabem o que é um castigo, e já todos foram sujeitos a actos de punição. Aliás, os castigos corporais, exercidos pelos pais sobre os filhos, são vistos pelos últimos como necessários e desejáveis (ou pelo menos, assim o afirmam). Por outro lado, as crianças desconhecem o que é um incentivo e nunca foram encorajadas ou recompensadas, mesmo quando tiveram excelentes resultados. 

Também assistimos a duas entrevistas feitas a pais. Um deles, muito informado sobre os métodos educativos de vários outros países (que considera mais civilizados), discorre longamente sobre os danos e inconvenientes dos TPC[1]. O tema vem sido debatido há décadas, por todo o mundo, com diversas objeções aos TPC a serem apontadas consistentemente. É o caso do agravamento da desigualdade de oportunidades provocado pelos mesmos. Devido à diversidade de situações sócio-económicas das famílias dos alunos, existirão crianças com boas condições materiais e adequado apoio educativo familiar na realização das tarefas escolares, enquanto outras ver-se-ão em desvantagem por não disporem nem dos meios físicos e materiais necessários (espaço, equipamento informático, ...), nem de ajuda educativa. Outra grande questão, transversal a todos os meios sócio-económicos, é o atrito e a tensão que os TPC provocam entre pais e filhos. No final do dia de trabalho, os pais estão pouco disponíveis (por causa dos afazeres domésticos, por exemplo) e sem paciência ou energia para acompanhar a realização dos TPC. Os filhos, depois de muitas horas passadas em salas de aula, querem estar com os amigos e a família, dedicar-se a hobbies e a actividades extra-curriculares ou “simplesmente” divertirem-se e descansar. Aliás, tudo práticas importantes para o desenvolvimento pessoal e social das crianças. A falta de tempo para as mesmas é uma questão que preocupa o referido pai. 

Outro pai expõe com lucidez os traumas que entende ter provocado no filho pela sua própria falta de habilidade ou competência para lidar com as dificuldades escolares que era suposto ter ajudado o filho a ultrapassar. Num efeito bola de neve, os problemas e as ansiedades de um alimentam os problemas e ansiedades do outro num crescendo de angústias e dificuldades. 

Apesar de Trabalhos de Casa reflectir o Irão do final dos anos 80, é um filme intemporal e universal. Mais que uma investigação filmada sobre o sistema educativo iraniano, é um filme sobre relações humanas, particularmente sobre o lado performativo das mesmas, a perpetuação inquestionada de hábitos e comportamentos ao longo de gerações, os problemas de comunicação, os equívocos na avaliação e compreensão do outro, as relações de poder. É, além disso, um filme muito kiarostamiano, no que nele emerge da sua continuada reflexão sobre a (im)possibilidade de chegar à verdade através do acto de filmar.

[1] Trabalhos Para Casa.



segunda-feira, 20 de março de 2023

285ª sessão: dia 21 de Março (Terça-Feira), às 21h30


Filme de Abbas Kiarostami na BLCS 

Trabalhos de Casa, do cineasta iraniano Abbas Kiarostami, é a proposta do Lucky Star – Cineclube de Braga para hoje às 21h30, no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva. 

O filme insere-se no ciclo “Sou do Tamanho do que Aprendo – Histórias sobre Educação”, promovido pelo cineclube a desafio do Sindicato de Professores do Norte, que celebra o seu quadragésimo aniversário este ano. E será precisamente nesta sessão que se celebrará a efeméride. 

Abbas Kiarostami nasceu em Junho de 1940 na cidade de Teerã, no Irão, e faleceu em Paris há sete anos. Foi cineasta, argumentista, poeta, fotógrafo e produtor de cinema e deixou-nos grandes obras- primas como O Passageiro (1970), Onde Fica a Casa do Meu Amigo? (1989), Close Up (1990), E a Vida Continua (1994) ou Cópia Certificada (2010). 

Trabalhos de Casa, de 1989, foi financiado pelo departamento de cinema do Kanoon, o Instituto para o Desenvolvimento Intelectual de Crianças e Adolescentes. É um inquérito ao sistema educacional iraniano e consiste quase exclusivamente de entrevistas a pais e alunos da escola primária Shahid Masumi. É centrado maioritariamente nos mais pequenos, que falam sobre o excesso de trabalhos de casa e os castigos que recebem por não os fazerem. 

O filme de 1989 estreia este ano em Portugal graças à Midas Filmes, que distribuiu em sala também este ano o filme Onde Fica a Casa do Meu Amigo?. É portanto uma oportunidade única para conhecer um grande cineasta, que começou a ser acolhido pelo ocidente precisamente a partir deste segundo filme, aquando da sua projecção no Festival de Locarno. 

O maior elogio que se fez a este iraniano foi o do cineasta francês Jean-Luc Godard, que disse que “o cinema começa com Griffith e acaba com Kiarostami.” No festival de Cannes de 1997, o júri presidido por Isabelle Adjani premiou Kiarostami e o seu filme O Sabor da Cereja com a Palma de Ouro, o prémio máximo do certame, ex-aequo com A Enguia de Shôhei Imamura. 

As sessões de cinema do Lucky Star ocorrem sempre às terças-feiras, a partir das 21h30. A entrada custa 1 euro para estudantes e utilizadores da Biblioteca e 3 euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Até Terça-Feira!

quarta-feira, 15 de março de 2023

The Miracle Worker (1962) de Arthur Penn



por João Palhares

Antes de ser filme, “The Miracle Worker” foi um episódio da mítica série de antologia “Playhouse 90” (difundida entre 1956 e 1960 na CBS e onde se revelaram talentos como Robert Mulligan ou John Frankenheimer; no episódio, os papéis de Anne Sullivan e Helen Keller couberam a Teresa Wright e Patricia McCormack, respectivamente), bem como uma peça de teatro estreada com as depois duas actrizes do filme, Anne Bancroft e Patty Duke, nos mesmos papéis. Tanto o episódio de televisão, como a peça, tiveram por trás as forças criativas de William Gibson, autor dos guiões, Arthur Penn, como realizador e encenador, e Fred Coe, como produtor. 

A história de Anne Sullivan e Helen Keller é conhecida. São crianças do século XIX e conheceram-se porque os pais da segunda, já bastante desesperados, e depois de lerem sobre a educação de Laura Bridgman, também surda e cega como a filha deles, consultaram um especialista em Boston para os aconselhar. Este encaminhou-os para Alexander Graham Bell, que na altura trabalhava com crianças surdas. E este encaminhou-os para a Perkins School for the Blind, que lhes mandou Anne Sullivan, então com vinte anos. Helen Keller tinha seis. Depois daquilo que foi descrito por quase toda a gente como “um milagre”, e numa altura em que o foco era mais sobre Keller e menos sobre Sullivan, Mark Twain entregou uma fotografia a Annie Sullivan em que lhe chamava “milagreira”[1]. O título da obra de Gibson, Penn e Coe é daí retirado. 

Saído da televisão, que nessa altura era um campo de experimentação e ensaios fabuloso para quem começava a trabalhar e para quem acabava a carreira, e no rescaldo da estreia da peça na Broadway, Arthur Penn era a escolha óbvia para realizar o filme. E ao realizá-lo, foi-se apercebendo instintivamente dos ajustes que tinha de fazer na transposição para cinema por forma a continuar a servir a estória e as interpretações. Os casos sintomáticos talvez sejam mesmo os dois grandes embates provocados pelas birras de Helen Keller à mesa. No primeiro, a câmara segue os movimentos abruptos das duas, culminando nas panorâmicas frenéticas que acompanham Bancroft a puxar Patty Duke violentamente para a cadeira, enquanto os planos se sucedem quase disparados para ilustrar a grande tensão entre a educadora e a sua discípula; no segundo, a montagem é mais pausada e os movimentos de câmara adequam-se ao crescendo da grande revelação e descoberta individual que equipara o signo ao significante, e que transforma a linguagem no instrumento dos nossos sonhos. A descoberta colectiva de que, afinal, não são só para quem ouve e para quem vê. Os tropeções, as chapadas, as quebras, os balbucios, os gritos, os toques e os empurrões equiparam-na a uma luta de vida ou de morte para atravessar o vale do silêncio e da escuridão. 

Houve quem acusasse Penn de ser demasiado barroco e expressionista, neste filme, mas se calhar foi só expressivo. Quando as personagens e os actores abrem o caminho, talvez não se possa ficar só atrás a assistir, é preciso arriscar estar errado, assumir as consequências, ir com eles até ao fim dum gesto inaudito e por mais desconfortável que este seja, esperar que seja lá que resida o princípio de todas as coisas. O berço da linguagem. A palavra inaugural.

[1] Nas margens da fotografia de Samuel Clemens a fumar um cachimbo sentado, e além da assinatura, consegue-se ler “To Mrs. John Sullivan Macy with warm regard & with limitless admiration of the wonders she has performed as a miracle-worker.”



quarta-feira, 8 de março de 2023

Rebel Without a Cause (1955) de Nicholas Ray



por António Cruz Mendes

Nas condições de que dispomos, não vai ser possível tirar todo o partido do cinemascope… Mas isso não nos vai impedir de confirmar ser este, “provavelmente, o mais comovente dos filmes de Ray”, tal como nos diz a sinopse do Público que transcrevemos. 
 
Personagens emocionalmente fragilizadas, perdidas num mundo que lhes é estranho, um mundo regido por normas a que não se adaptam nem entendem, estão presentes em muitos filmes de Nicholas Ray e, desde logo, na sua primeira obra, They Live by Night, a história de dois jovens enamorados, perseguidos pela polícia. 
 
Nos Estados Unidos, os anos 50 foram uma época de prosperidade económica. Nasceu, então, uma nova cultura protagonizada por jovens que puderam prolongar os seus estudos e que, dotados de um poder de compra antes desconhecido e livres da necessidade de trabalhar, procuram a sua própria identidade em conflito com a geração dos seus pais, ainda presos à moral puritana ainda dominante. 
 
Em Fúria de Viver, o fosso geracional que separa Jim, Judy e Plato das suas famílias torna-se evidente logo nas primeiras sequências e dele resulta um sentimento de insegurança que os três tentam compensar com comportamentos desafiantes. Numa das primeiras sequências do filme, todos eles se encontraram detidos por delitos menores numa esquadra da polícia. 
 
Jim procura no pai, submisso perante a fria autoridade da mãe e da avó, um apoio que ele não lhe consegue dar; Judy deseja do seu pai um amor que este repele; e Plato, que já não tem pai, viu-se abandonado pela mãe no dia do seu aniversário. As suas vidas decidir-se-ão num drama que se concentra em 24 h, entre duas cenas nocturnas, e que se desenvolve em três momentos fundamentais: o primeiro é o do planetário; o segundo, o da “chicken run”; e o terceiro, o da casa abandonada. 
 
Uma mordaz ironia está presente na sequência do planetário. Confrontados com a vastidão do universo, com o fim inevitável da Terra, os jovens são confrontados com a insignificância cósmica da vida humana. Mas, isso não impede que um grupo de outros “rebeldes sem causa”, chefiado por Buzz, preocupado em “marcar território” e em defender a sua ascendência sobre Judy do eventual rival recém-chegado, desafia Jim para uma luta com navalhas. A pequenez das vaidades bairristas sobrepõe-se à imensidão do cosmos. 

Embora não o deseje, a sua ideia de masculinidade obriga Jim a aceitar o desafio da corrida em direcção ao abismo que decidirá qual deles, Buzz ou Jim, é um medricas. “Medricas” é um qualificativo que ele não pode aceitar porque se identifica com a odiada pusilanimidade que ele reconhece no pai. E, apesar de Jim perceber o seu absurdo, a corrida, arbitrada por Judy e iluminada pelos faróis de duas fileiras de carros, realiza-se – e acaba em tragédia. 
 
Contra a vontade da família, Jim quer assumir a sua responsabilidade na morte de Buzz, mas a sua generosidade esbarra na indiferença da burocracia policial. Na casa abandonada, Jim, Judy e Plato, encontram, então, um refúgio. Um mundo só seu onde a paz e a amizade parecem, finalmente, ser possíveis. No exemplo de Jim, Judy descobre o amor e Plato, a figura paterna por que ansiava. Encenam uma família e brincam como crianças que, afinal, nunca deixaram de ser. Contudo esse mundo a fingir vai ter de se confrontar com a violência, os ódios e os medos que imperam na realidade.



quinta-feira, 2 de março de 2023

Em Março, no Lucky Star:




Não Consegues Criar o Mundo Duas Vezes (2017) de Catarina David e Francisco Noronha



por Joaquim Simões

O movimento do rap do Norte, nomeadamente do Grande Porto, é hoje em dia nacionalmente reconhecido. Pouca gente há das gerações que nasceram a partir dos anos 90 que não conheça os Dealema ou o Mundo Segundo, por exemplo, e os artistas de rap e hip-hop que surgem hoje em dia em qualquer lado do país constroem, inevitavelmente, sobre o legado desse movimento. E, no entanto, por detrás dessa explosão que surgiu nos anos 90 e início de 2000 há uma história por contar. Ou havia, até à data de lançamento do filme que se exibe hoje no cineclube. 

Não Consegues Criar o Mundo Duas Vezes é um filme que conta a história do rap no Grande Porto através das pequenas histórias de cada um, “as memórias individuais daqueles que, nas suas vidas, contribuíram, no início sem o saber, para o nascimento e consolidação de uma expressão artística.” (nas palavras dos realizadores). É um documentário com o propósito simples de recolher o testemunho de algumas das pessoas que viveram esse momento efervescente, captando assim o espírito de um lugar e de um tempo: um momento especial onde a sintonia de um pequeno número de pessoas espalhadas por uma grande cidade possibilita uma onda de energia que consegue mudar a cultura. É um documentário que, mais do que factos e histórias, recria um ambiente, um zeitgeist único e efémero. Hoje em dia, roupa XXL e breakdance são uma forma datada de cultura jovem cujo facto de alguma vez ter sequer existido podemos ser levados a considerar com incredulidade, mesmo sendo tão recente, de tal modo foi ultrapassada, mas são documentos como este que mostram como essa mesma cultura foi a forma de uma geração se definir e reivindicar a individualidade que a estagnação social e cultural do seu meio nunca lhes havia dado. 

Através da justaposição de planos da cidade na sua forma atual, gentrificada e mcdonaldizada, com testemunhos de alguns dos protagonistas e participantes do movimento hip-hop na zona do Porto, Gaia e Matosinhos, o documentário enfatiza a singularidade desse fenómeno, inimitável e irrepetível. Os sítios, agora históricos, que albergaram parte desta “cena”, como o bar Comix ou o Hard Club de Gaia - lugares que o tempo transformou impiedosamente em cafés chiques ou mais graciosas ruínas - aparecem-nos diante dos olhos no seu estado atual e mesmo assim não conseguimos deixar de imaginá-los como teriam sido, ao sermos guiados pelos relatos de genuína emoção, contados nas palavras dos próprios mestres da palavra (quem melhor para fazer surgir na imaginação algo que nunca poderá ser testemunhado por quem não esteve lá no momento?) criando, para além da inevitável sensação nostálgica que surge do contraste de tempos diferentes (mesmo para quem não os viveu) uma nova experiência do movimento original do hip-hop e do rap no Porto, esta ao critério da imaginação de cada um.



quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023

A Escuta (2022) de Inês Oliveira



por Alexandra Barros

Carlos Zíngaro nasceu em Lisboa, em 1948, e aos 4 anos começou a aprender a tocar violino. Estudou música clássica no Conservatório Nacional de Lisboa e orgão na Escola Superior de Música Sacra. Quis ter como instrumento a guitarra ou o orgão, mas como não tinha possibilidades económicas para adquirir esses instrumentos, “agarrou-se” ao violino. Actualmente, além do violino, tem como instrumento o laptop. Compositor e músico experimental, no seu trajecto encontramos vários géneros musicais e colaborações com músicos prestigiados de diversas áreas: folk-rock psicadélico, free jazz, canção de intervenção, música popular portuguesa, música contemporânea, improvisação livre, música electrónica, música electroacústica, …. Fundou bandas e colectivos de música e performance: Plexus, Associação Conceptual Jazz, Granular. Entre outros músicos nacionais e internacionais (muitos mais internacionais do que nacionais), trabalhou com: Jorge Lima Barreto, José Afonso, Sérgio Godinho, Janita Salomé, Júlio Pereira, Banda do Casaco, Rodrigo Amado, Anthony Braxton, Roscoe Mitchell, Daunik Lazro, Kent Carter, Evan Parker, Fred Frith, Joëlle Léandre, Richard Teitelbaum, Derek Bailey, Otomo Yoshihide, Hans Reichel, Keiji Haino, Dominique Pifarély, Andrea Centazzo, Christian Marclay, Frederic Rzewski, Mark Dresser, John Edwards, Paul Lovens. Compôs música para cinema, teatro e dança. É pintor, ilustrador, autor de banda desenhada. 
 
De acordo com a realizadora: “As características que o distinguem são o gosto pela experimentação, o pioneirismo e a permanência na cena das artes e cultura em Portugal - e pelo mundo - ao longo de mais de 50 anos. É um artista de riscos e de vertigem, [...] comprometido com a busca pela ‘verdade do momento’. Uma vida de entrega total, de pesquisa incessante, de fogachos de plenitude, [...] Viver para o momento, no momento. Tocar esse momento.”[1]
 
Deste artista tão multifacetado e com tanta(s) história(s), Inês Oliveira conseguiu admiravelmente construir um retrato simultaneamente fluido e denso. Talvez porque nunca quis fazer “O” retrato de Zíngaro, mas antes o retrato de Zíngaro de Inês: “O drive do filme é a minha curiosidade e a minha admiração pelo Carlos enquanto mestre; o que lhe ouvimos dizer, o que o vemos fazer, é o que eu quis que se ouvisse, que se visse, pensasse e sentisse.” Inês quis contagiar-nos com o mesmo fascínio que sente por Zíngaro. Afinal, de acordo com Tolstoi, o objectivo da arte é esse contágio: “A arte é uma atividade humana que consiste em alguém transmitir de forma consciente aos outros, por certos sinais exteriores, os sentimentos que experimenta, de modo a outras pessoas serem contagiadas pelos mesmos sentimentos vivendo-os também.”[2]
 
Inês Oliveira compôs um retrato de Zíngaro a partir das reflexões que ele faz acerca da sua vida e da sua música, reflexões sempre ouvidas em voz off. Este “auto-retrato” é acompanhado por imagens que a realizadora captou de Zíngaro “em acção”: a tocar sozinho, rodeado por escuridão ou acompanhado pela própria sombra; concentrado a escutar, para criar música com companheiros de longa data; a pintar e a desenhar, em casa, no estúdio, ou onde calha (num voo de avião, ...). Estas imagens actuais cruzam-se com: muitas fotografias que Zíngaro foi buscar “ao baú”; bilhetes e cartazes de eventos musicais; imagens de arquivo de: entrevistas, espectáculos, concertos, programas de televisão; jornais que nos revelam os seus sucessos internacionais ao mesmo tempo que é ignorado em Portugal. 
 
Inês Oliveira: “Aproximei-me de Carlos Zingaro por instinto. Tinha a impressão de que me iria identificar com ele e assim foi. Este filme é sobre ele, mas é também sobre mim: revejo-me nas suas questões, inquietações, desejos e medos. Quis fazer um filme que contribuísse para o conhecimento do que é a investigação, a experimentação e a criação artística. Um testemunho.” [3]
 
Este retrato de Zíngaro é então assumidamente também um retrato de Inês, um flaubertiano “Carlos Zíngaro sou eu!”. Qualquer tentativa de representar alguém é no fim de contas uma auto-representação, revelou-nos Oscar Wilde: “Todo o retrato que é pintado com sentimento é um retrato do artista e não do modelo. O modelo é apenas o acidente, o pretexto. Não é ele que é revelado pelo pintor; é antes o pintor que, na sua tela colorida, se revela a si próprio.”[4]
 
O Zíngaro de Inês Oliveira é, nas próprias palavras do músico, alguém que tem o violino como uma parte de si próprio, alguém que se pergunta se, ao longo da vida, as opções que tomou, consciente ou inconscientemente, se basearam na vontade de “não ser igual”, de ser estranho: “Há uma grande dose de instinto. Vou por aqui porque eu gosto mais de ir por aqui. Vou por aqui para não ir por onde os outros vão”; “Um furacão educado, a meter para dentro, a elocubrar cá dentro, no meu casulo”. É a esse “dentro” que Inês quis chegar e dar a ver: “Esse foi o efeito que quis criar, de intimidade – quase de sermos todos os que vemos, durante aquela hora de filme, o Carlos Zingaro.”[5]
 
No final do filme, Zíngaro pergunta: “Quando é que nós paramos? Quando é que nós decidimos que aquele objecto sonoro está acabado? E passar para o próximo. Quando é que nós decidimos que um livro está acabado? Ou que uma escultura ou uma pintura está acabada? Não nos libertamos. Basicamente, o meu cavalo de batalha nestas coisas das improvisações é a escuta, o saber ouvir.” PING! 
 
Inês: “A escuta é a condição base de um improvisador. É também a minha condição como cineasta e de espectadora entre espectadores. É a condição necessária para uma sociedade mais humanista.”[6] PONG!  

Apesar da imensidão deste filme, e das tantas portas por onde apetece entrar, não tenho de me debater com o dilema “onde parar?”. Sou forçada a acabar por razões de ordem física: o espaço disponível numa folha A4. Agora, faça-se escuro para ver e faça-se silêncio para ouvir A Escuta.

[1] ardefilmes.org, sinopse oficial do filme.
[2] O que é a Arte?, Lev Tolstoi.
[3] rimasebatidas.pt, conversa com Rui Eduardo Paes.
[4] O Retrato de Dorian Gray, Oscar Wilde.
[5] rimasebatidas.pt, conversa com Rui Eduardo Paes.
[6] ardefilmes.org, sinopse oficial do filme.



terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

O que Arde (2019) de Oliver Laxe



por João Vilares

O Que Arde é a segunda proposta deste mini-ciclo de cinema galego que resulta da parceria entre o Lucky Star e o Centro de Estudos Galegos da Universidade do Minho, no âmbito do 9º Convergências. 

Oliver Laxe é um actor, realizador e argumentista franco-espanhol de origem galega. Enquanto realizador, conta com apenas três filmes no seu currículo: Todos Vós Sodes Capitáns (2010) com o qual venceu, no Festival de Cannes, o Prémio da Federação Internacional de Críticos de Cinema (FIPRESCI); também em Cannes, ganhou com Mimosas (2016) o Grande Prémio da Semana Internacional da Crítica; em 2019, novamente em Cannes, foi a vez deste O Que Arde arrecadar o Prémio do Júri na mostra “Un Certain Regard”. 

Sob o pretexto dos incêndios na Galiza, O Que Arde tem tanto de desafiante quanto de provocador. Amador Coro (Amador Árias) sai em liberdade condicional após cumprir metade da pena por ter incendiado uma montanha em Lugo. O tamanho do processo é revelador de que estaremos na presença de um perigoso pirómano. Porém, um dos funcionários comenta: “É um desgraçado”. 

A escolha da palavra “pirómano” não é, de todo, acidental. Ao invés de um incendiário, um pirómano não provoca incêndios pelo lucro que poderá advir dessa acção, mas pelo prazer que a acção em si lhe traz. Será, então, que o lugar dessas pessoas é a prisão ou um hospital? Qual a nossa responsabilidade, enquanto sociedade, para com elas?

Através de uma fotografia incrível (Mauro Herce), Laxe descreve-nos uma Galiza rural de paisagens de uma beleza extraordinária, mas com um relevo e clima inóspitos que, inevitavelmente, moldam as pessoas que a habitam. A simplicidade da casa, a relação com os animais, com os vizinhos e principalmente entre mãe (Benedicta Sánchez) e filho são um retrato terno de uma região que se faz sobretudo de contrastes. Em que o silêncio exprime loquazmente a sinceridade dos sentimentos e cada palavra não diz, afinal, mais do que o que realmente quer dizer: “Gosto que estejas aqui.” 

O desempenho brilhante dos actores e a inteligente montagem criam-nos intencionalmente o desconforto de perante uma calma quase apaziguadora não nos coibirmos de julgar Amador sumariamente, ainda que em momento algum o vejamos executar qualquer acção que con- firme ser ele o culpado. 

O Que Arde é, no fundo, uma metáfora da complexidade das relações humanas: quando nos deixamos envolver pelo fogo incontrolável das emoções corremos o risco de criar um solo estéril que dificilmente conseguiremos reabilitar.



quarta-feira, 15 de fevereiro de 2023

Mudar de Vida - José Mário Branco, vida e obra (2014) de Nelson Guerreiro e Pedro Fidalgo



por António Cruz Mendes

Diz-nos Arthur Danto que uma das características definidoras de uma obra de arte é o seu aboutness. Uma obra de arte é sempre “sobre alguma coisa”, reflectindo nesse olhar sobre a realidade a visão do mundo do seu autor. Algo que não reduz à escolha de um “tema”, mas se materializa sobretudo nas características de um “estilo”. Além disso, o artista usa de todos os artifícios retóricos próprios do seu meio, a escrita, as imagens, os sons, que se encontram ao seu dispor para levar o seu receptor a identificar-se com ela. 

Sendo assim, em que reside o valor de uma obra de arte? Na minha opinião, ele será tanto maior quanto maior for o valor que a sua experienciação acrescentar à nossa própria experiência de vida. A arte tem uma função de conhecimento. Uma obra de arte que repete lugares comuns poderá, por isso mesmo, ser “popular”, contudo aquelas que a história retém são as que nos ensinaram algo de novo sobre nós mesmos e sobre o mundo em que vivemos e que, portanto, nos transformaram como pessoas. Não somos os mesmos depois de visitarmos o universo pessoal de um grande artista, tal como ele se plasma na sua obra. 

Estas ideias, que me parecem válidas para a literatura, para a pintura ou para o cinema, sê-lo-ão também para a música? 

Os chamados “cantautores” estavam firmemente convencidos das potencialidades das suas canções e colocaram-nas sem reservas ao serviço das causas políticas e sociais em que se empenharam, ainda que correndo, por vezes, o risco da simplificação, de uma banalização panfletária da sua mensagem. 

José Mário Branco teve um papel de grande relevo neste movimento que teve um assinalável impacto sócio-cultural nos anos 70 do século passado, quando se viveram os últimos anos do fascismo e da guerra colonial e aqueles que se seguiram ao 25 de Abril. Teve-o como compositor, como cantor, como produtor, como dinamizador de colectivos vários que, tanto através da música como do teatro, tentaram despertar consciências e mobilizar pessoas. 

Mudar de Vida não é propriamente uma biografia pessoal. Dá-nos a conhecer, é certo, os passos mais importantes da sua vida: o despertar da sua consciência política, a breve passagem pela Universidade de Coimbra, a prisão, a fuga para Paris, a descoberta da música, o convívio com a comunidade emigrante, onde se encontravam os que fugiram à miséria e os que fugiram à guerra e, depois, o 25 de Abril e o regresso a Portugal essas imensas esperanças despertadas pela “revolução dos cravos” e, finalmente, o 25 de Novembro, a normalização democrática e o fim de um país sonhado por si e pelos seus companheiros de luta. Porém, o filme centra-se sobretudo na forma como nele se articularam a acção política e a intervenção cultural e fá-lo através das histórias que ele próprio no conta, dos depoimentos de amigos e companheiros, das filmagens de concertos e espectáculos, e dos encontros e manifestações de rua que nos oferecem o contexto e a matéria de tudo daquilo que estava em causa. Apresenta-se, então, como o documento histórico fundamental para compreendermos uma época para a qual já olhamos como um passado. 

Terão ainda actualidade, como nos diz a "sinopse oficial” que reproduzimos aqui, essas manifestações de combate e de esperança, de raiva e de revolta, que encontramos na obra de José Mário Branco? A história não se faz através de uma sucessão de compartimentos estanques. As fontes musicais que o inspiraram encontram-se na tradição popular e na obra de Lopes-Graça, a certa altura, ele próprio descobriu o fado e, mais tarde, surgiram jovens que viram no FMI, esse catártico grito de desespero, um antepassado do rap… Além disso, a guerra, a pobreza e as injustiças que a sua obra denuncia, continuam presentes e a aspiração dos homens a um mundo melhor é eterna. As futuras gerações dirão se a sua obra e o seu exemplo continuarão ou não a ser inspiradores. 

Uma última palavra para a relação de José Mário Branco com o cinema, iniciada em 1978 com A Confederação (1978), de Luís Galvão Teles, filme com uma banda sonora assinada por ele próprio, por Sérgio Godinho e por Fausto, até Prazer Camaradas (2019), de José Filipe Costa, onde se ouve Gare de Austerlitz, do álbum “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”. 

Mais de vinte filmes contaram com a participação de José Mário Branco, como actor, como voz off e como compositor e cantor. Destacamos aqui a sua participação, como autor da música, em O Rio do Ouro (1998), de Paulo Rocha, e em O Movimento das Coisas (1986), de Manuela Serra (estes já projectados pelo nosso cineclube), A Portuguesa (2018), de Rita Azevedo Gomes, e como actor em Ninguém duas vezes (1984) e Coitado do Jorge (1992), de Jorge Silva Melo. 

“Sou português, pequeno-burguês de origem, filho de professores primários. Artista de variedades, compositor popular, aprendiz de feiticeiro. Faltam-me dentes. Sou o Zé Mário Branco”, diz-nos ele logo no princípio do filme. As imagens e as palavras que vemos e ouvimos em Mudar de Vida completam esse retrato e mostram-nos, de corpo inteiro, um homem comprometido com o seu tempo, que viu na música, no teatro e no cinema, os veículos possíveis das suas recusas e das suas esperanças.



terça-feira, 14 de fevereiro de 2023

Vieiros (2000) de Laura Gárdos Velo



por José Paz Rodrigues

A 15 de novembro de 1909, nascia em Pereiros-Cartelhe (Ourense) Carlos Velo Cobelas que, para além de grande artista galego, foi também um importante cineasta. Ele faleceu na Cidade do México no dia 1 de março de 1988, há quase 33 anos. Por sugestão de Luis Álvarez Pousa, veio participar do exílio mexicano na quinta edição das Jornadas do Cinema de Ourense, celebradas em abril de 1977, organizadas pelo Cinema Clube Padre Feijóo. Dentro do programa, Velo dera no salão nobre do Liceu Recreio da Cidade das Burgas uma conferência muito interessante sobre os novos avanços da sétima arte. Naquele momento tinha debaixo do braço, como se fosse um brinquedo de criança, um disco com imagens de filmes e não se cansava de repetir que aquele era o futuro do cinema. Velo tinha toda a razão, porque hoje o cinema está num meio semelhante com o nome de DVD. Além disso, ele demonstrou que sempre foi um avançado e um pioneiro nesta arte. Desde muito jovem o cinema foi a sua verdadeira paixão. 
 
O seu pai era médico do município onde Velo nasceu. Em Ourense estudou o ensino secundário e magistério, e na nossa cidade conheceu Vicente Risco, que o iniciou no galeguismo. Mais tarde foi para Madrid para estudar Medicina, mas as suas verdadeiras paixões eram a biologia e o cinema. Em 1932 licenciou-se em Biologia pela Universidade Complutense, onde posteriormente se tornou professor das disciplinas de Ciências Naturais e Entomologia. Curiosamente, e um tanto acidentalmente, a biologia o conduziu ao mundo profissional do cinema. Com Luis Buñuel criou o primeiro clube de cinema espanhol da história na Residência de Estudantes da ILE de Madrid, dependente da FUE (Federação Universitária Espanhola). 
 
Quando o grande cineasta de Calanda filmou a famosa curta-metragem Um Cão Andaluz, Velo deu-lhe as formigas vermelhas para as suas filmagens. Nas sessões do cineclube da Residência de Estudantes gostava de ver os clássicos do cinema, que o marcaram imensamente: S. M. Eisenstein, Dovchenko, Dziga Vertov, Pudovkin e, sobretudo, Robert Flaherty. Este último viria a ter grande influência na arte documental de Carlos Velo, ramo em que se destacou muito e não tanto no de longas-metragens. Ele conheceu Garcia Lorca e o filme O Couraçado Potemkin sempre o entusiasmou. Foi Fernando G. Mantilla quem o iniciou na técnica cinematográfica, que jamais abandonaria, mesmo no seu longo exílio mexicano. Ainda estudante do último ano da sua licenciatura, em dezembro de 1931, participou da primeira Missão Pedagógica Republicana realizada na cidade segoviana de Ayllón, dirigida pelo grande pedagogo Manuel Bartolomé Cossío. Para o qual levou justamente vários documentários cinematográficos para exibição. Tanto na fase republicana, como depois na mexicana, fez documentários muito interessantes. 
 
Entre eles é necessário destacar A Cidade e o Campo, Castelos de Castela, Almadrabas, Infinitos, Felipe II, O Escorial, Yerbala, México Eterno, História de México, Raíces (premiado em Cannes em 1953), Pintura Mexicana de Diego Rivera, Arte pública de David Siqueiros, Homenagem a León Felipe, Torero e Cartas do Japão. Um dos seus mais belos documentários é Universidade Comprometida, em que o chileno Salvador Allende aparece dando uma bela palestra para os alunos da Universidade Mexicana de Guadalajara. Ao discurso do presidente do Chile, Velo colocou-lhe algumas imagens de muito sucesso, belas e adequadas. Este documentário, a par de outros, tinha sido projectado na sua época nas Jornadas do Cinema de Ourense, tendo sido trazida a respetiva cópia em 16 mm. por Mª José Queizán de Vigo. A TVG da época, quando Velo regressou às suas terras galegas, tinha lançado a sua longa-metragem Pedro Páramo, baseado num célebre livro do seu amigo mexicano Juan Rulfo. 
 
No México, Velo, como verdadeiro galego, exilado e emigrante, teve de enfrentar vários problemas e mal-entendidos. A sua vida no país americano esteve cheia de luzes e sombras. Ele foi até privado de liberdade por um tempo. Desde ali colaborou com o povo galego e foi um dos fundadores da excelente revista Vieiros, que, clandestinamente, foi distribuída em Ourense pelo advogado Amadeu Varela. Também foi notável a sua participação na criação em 1953 do Padroado da Cultura Galega, ao lado de Luís Soto, Florêncio Delgado Gurriarám e Elígio Rodríguez. E, além de Vieiros, em 1942 também colaborou na fundação da revista Saudade, junto com Delgado Gurriarám, Ramiro Isla Couto e José Caridad Mateo. Já em 1936 tinha rodado um documentário sobre Compostela e a sua arquitectura e outro sobre folclore e etnografia em 1937 com o título de Galiza. E em 1983 recebeu o Prémio Mestre Mateo da Junta da Galiza, com o qual foi reconhecida toda a obra de um importante criador galego como ele. Posteriormente, em 1989, o mesmo Conselho instituiu o Prémio de Roteiros de Cinema “Carlos Velo”. 
 
excerto de «Carlos Velo, o cineasta histórico da nossa Galiza», publicado no Portal Galego da Língua (PGL) a 24 de Fevereiro de 2021. Disponível em: https://pgl.gal/carlos-velo-o-cineasta-historico-da-nossa-galiza/. Consultado no dia 12 de Fevereiro de 2023.



quarta-feira, 8 de fevereiro de 2023

Polifonias - Paci è Saluta, Michel Giacometti (1997) de Pierre-Marie Goulet



por João Palhares

Michel-Marie Giacometti chegou a Portugal em 1959. “Quando cheguei pela primeira vez a Bragança,” disse ele a Adelino Gomes em 1990[1], “a caminho de Gimonde (uma aldeia a poucos quilómetros dali) deixei o «dois cavalos» velho à entrada da cidade. Levava uma capa preta sobre os ombros, uma barba enorme, cabelos compridos. Um amigo contou-me mais tarde que a cidade saiu toda à rua (eu não reparei em nada) e que me tornei assunto de conversa durante semanas. Uns diziam que era um padre; outros um personagem mítico qualquer; e houve quem achasse que era a alma penada dum conde que, de vez em quando, voltava à terra.” 
 
Giacometti nasceu em Ajaccio, na Córsega, a 8 de Janeiro de 1929. Ficou órfão muito cedo e foi criado por uma tia e pelo marido, um funcionário colonial do estado francês na Argélia. Aos três anos, é raptado por uma tribo e salvo por uma criada negra, Herratin. Farto do racismo dos tios, que andavam sempre de arma na mão e odiavam os árabes, deixa a Argélia e viaja pelo Mediterrâneo a viver de pequenos biscates até chegar a Paris, onde estuda música, arte dramática e etnografia. É expulso de várias universidades por participar numa greve contra a discriminação dos árabes, nos anos 50. Chega à companhia de teatro de Roger Planchon e conhece Albert Camus, Juliette Gréco e Maria Helena Vieira da Silva. Ao trabalhar numa fábrica, na Noruega, interessa-se por etnologia através do contacto com um etnólogo, seu colega operário, e dedica-se pouco depois ao projecto “Mediterranée 56”, criado para investigar as tradições populares das ilhas mediterrâneas. Com pneumonia, outra vez em Paris, conhece Isabel Ribeiro, enfermeira que tratará dele e com quem acabará por se casar. É-lhe recomendado que respire o ar do oceano Atlântico para recuperar da doença, portanto vai com a mulher para Portugal… 
 
A imagem que se poderá ter da dedicação e do trabalho de Giacometti é a da chegada que ilustra o início de todos os programas de “O Povo que Canta”, série criada por si e realizada por Alfredo Tropa, em que uma carrinha da Radiotelevisão Portuguesa atravessa a paisagem de portas abertas enquanto os créditos nos anunciam ao que vem e o que busca, “VOZES E IMAGENS para uma antologia da MÚSICA REGIONAL PORTUGUESA.” Corre planícies, desce colinas e até por um rio passa para chegar ao seu destino. Nada que se compare com aquilo por que Giacometti teve de passar sem apoios para identificar, catalogar e registar cantos e ritos centenários portugueses em risco de desaparecer para sempre. Muito frio, muita fome e pouco sono. Talvez não seja de admirar, portanto, que tenha sido no Alentejo que encontrou mais cúmplices e amigos, o que lhe terá feito dizer que “quando morrer, quero ser enterrado no meio do povo português que tanto amei.” Descansa agora em Peroguarda, pequena aldeia no concelho de Ferreira do Alentejo que é onde se passa grande parte de Polifonias - Paci è saluta, Michel Giacometti de Pierre-Marie Goulet. 
 
Peroguarda é uma jóia perdida deste país onde se cruzaram os destinos de Giacometti, António Reis, José Mário Branco e Virgínia Maria Dias, poetisa dessa aldeia que nunca disse a ninguém que era poetisa, quase nunca anotou nenhum dos seus poemas[2] (di-los todos de cor), e motivou todos estes encontros. A segunda parte de Polifonias - Encontros, precisamente - é sobre isso. Mas Polifonias é também sobre afinidades fortuitas, sobre o que o corso Giacometti deixou para trás apenas para o encontrar já no final da vida e no sítio mais improvável. As imagens da Córsega-natal do nosso grande etnólogo surgem logo que o filme começa, nebulosas e acidentadas, misteriosas e cifradas, intercalando e chocando com as grandes planícies alentejanas. Entre depoimentos e muitas canções vamo-nos apercebendo da grande semelhança entre o cantar alentejano e o cantar corso, os planos repetidos como refrãos vão ganhando outros sentidos, e as ilhas do Alentejo e da Córsega reúnem-se à mesa para cantar e prestar uma última homenagem ao exilado que ao fugir de casa a ela voltou, encontrando o sentido que pouca gente viu para o acto de loucura que cometeu, abraçar um país e as suas gentes como se fossem seus. Por nos fazer ver e sentir isso desta forma tão serena e musical, Polifonias é um tesouro.

[1] in «Michel Giacometti, Povo que Canta não pode morrer», Público Magazine, 5 de Agosto de 1990.
[2] Esse trabalho foi feito por Paulo Lima e Marta Ramos, a mesma de Guerra e de Paz, culminando na edição de «Como um Pedaço de Terra Virgem», pela editora BOCA.



quarta-feira, 1 de fevereiro de 2023

Em Fevereiro, no Lucky Star:




Guerra (2020) de José Oliveira e Marta Ramos



por João Palhares

Quem não vive sem o cinema, acredita que ele possa servir para guardar perto de nós pessoas ou coisas que já não existem. Não o separa da vida, anulando essa necessidade de ter que haver uma distinção entre um e outra. Um dos caminhos possíveis para a vida depois da morte. Quem conheceu o José Lopes, sabe que ele imitava vampiros, samurais, gangsters e lobisomens encenando ataques, gritos e mortes com pantomimas soberbas. Que construía estórias em qualquer sítio a que fosse, ajustando as suas personagens ao que os sentidos e a intuição lhe diziam sobre o ambiente e as pessoas que o rodeavam. Lições tiradas do seu trabalho etnográfico, muito certamente. Que cantava e tocava como ninguém, fazendo pulsar das cordas vocais e da guitarra uma urgência desarmante. A maior parte das vezes na rua, que é onde a música devia estar sempre. Que era um actor de teatro extraordinário. Autodidacta, instintivo, explosivo. E também um fabuloso contador de estórias ou pequenas anedotas sobre amigos e conhecidos seus como José Afonso, Luiz Pacheco, Luís Miguel Cintra, Pedro Hestnes ou Mário Viegas. Que era um ser humano prodigioso. 
 
O Zé Lopes sempre gostou de cinema, apoiando Luís Miguel Cintra na disciplina de direcção de actores da Escola Superior de Teatro e Cinema, frequentando imenso a Cinemateca Portuguesa sempre com a sua guitarra às costas e acabando por conhecer jovens realizadores que o viam como uma espécie de irmão mais velho, ou mesmo pai, cheio de cultura e ensinamentos para lhes legar. E começou a trabalhar com eles. Assim, fez Adeus Lisboa em 2012 com João Rodrigues, Jerónimo, como é que vais? (2013) e Pastor da Noite (2016) com Mário Fernandes, e A Pena Perdida (2011), Dá-me uma gotinha de água (2013), Fala do Homem Nascido (2014), Maio Maduro Maio (2014), Soneto à Maneira de Camões (2015) e Longe (2016) com José Oliveira e Marta Ramos. Encontravam-se muito na sede do Grupo Excursionista e Recreativo Os Amigos do Minho, hoje expropriada, ponto de encontro para comer, beber, cantar e viver. Para combinar, escrever, planear e filmar a próxima curta ou a próxima longa. Com outros cúmplices encontrados por lá, como Fernando Castro, António Soares, Nelson Gonçalves, António Carvalho, entre muitos outros. 
 
Em Guerra, filme que estreia apenas este ano, dos mesmos José Oliveira e Marta Ramos, José Lopes interpreta Manuel Santos, veterano da nossa guerra colonial que continua a ir aos encontros de antigos combatentes, camaradas de companhia, a estar com a família aparentemente pacificado e a viver a vida apesar das experiências passadas. Até não ser mais possível, porque os fantasmas não são coisas que desvaneçam da nossa mente. Terrores nocturnos, noites e tardes de bebedeira, sessões com a psicóloga e o pesadelo recomeça. Como numa descida aos infernos que se inicia lá no alto, com a inocência perdida e a saída do paraíso. Ninguém compreende a guerra, talvez sobretudo quem é obrigado a fazê-la. Em Braga, um homem que combateu nessa guerra repete quase de lágrimas nos olhos a mesma estória, na tasca que costuma frequentar: fazia parte de um coro da igreja e é convidado a cantar num casamento. Ainda não cantam, a noiva está atrasada. Esperam uns longos minutos, talvez umas horas e nada. No final, não chegam a cantar, que a noiva não aparece no casamento. Abandonou o noivo. “E ele ali a chorar,” diz várias vezes o homem estupefacto e desamparado. “A chorar.” Podia ser ele o noivo. Ou o próprio contar da estória pode ter sido a cura que encontrou para os traumas que viveu na guerra. 
 
Depois da segunda guerra mundial, o tenente Hiroo Onoda continuou a combater durante vinte e nove anos numa ilha das Filipinas. Todas as provas que lhe foram chegando do exterior a garantir que a guerra tinha acabado, só serviam para lhe provar que continuava. Panfletos japoneses e dos seus superiores atirados do ar eram, segundo ele, obra do inimigo, fotografias e cartas da família a pedir que se rendesse eram um truque do inimigo. Entretanto vieram as guerras da Coreia e do Vietname, aviões pelo ar em manobras, tiros e ataques nas redondezas, prova cabal de que a guerra continuava. Até em tempos de tréguas podemos confundir os sinais e meter na cabeça que estamos a ser atacados e não estamos seguros, como prova o "fogo de artifício" no final de Paz, dos mesmos José Oliveira e Marta Ramos, o verso da moeda de Guerra depois de Tolstoi e Ice Cube. A Hiroo Onoda valeu Norio Suzuki, jovem que tinha três aspirações na vida: encontrar o tenente Onoda, um panda e o Abominável Homem das Neves. Por esta ordem. Conseguiu encontrar o primeiro e provar-lhe finalmente, já nos anos 70, que a segunda guerra mundial tinha acabado. 
 
O Zé, a Marta e o Zé Lopes devem ter ouvido dezenas e dezenas de estórias sobre a guerra e os ex-combatentes por esse Portugal fora. “Bebes para afogar as mágoas, não é? Mas olha que as filhas-da-puta aprendem a nadar”. Como muitos ex-combatentes, o Manuel Santos de José Lopes não acreditou que tinha tudo terminado e permaneceu em guerra com o mundo e consigo próprio. E a ferida aberta da guerra e a ferida aberta do Zé Lopes deixaram tudo e todos expostos em sentimento e fragilidade, por talento do Zé e da Marta com um equilíbrio raro e num só sopro: as aparições de Luís Miguel Cintra e Diogo Dória, a ajuda resoluta e o companheirismo imprescindível do sargento Castro de Fernando Castro, a voz melódica e a presença incondicional de Dulce Pascoal, o cabelo rapado do soldado Lucas de Tiago Lucas, o andar hirto do filho no filme, Daniel Pereira, as danças arrítmicas e a voz de Pedro Rufino, o olhar perfurante e perspicaz de Ana Alexandre como psicóloga, a revolta saudável e alentadora da jovem rapper de Alice Duarte... Como se fossem todos juntando pós da alma e um pedaço de si para deixar na fogueira mística da milagrosa elevação final. Guerra e Paz são uma sinfonia.



quarta-feira, 25 de janeiro de 2023

Os Conselhos da Noite (2020) de José Oliveira



por Joaquim Simões

O filme que hoje se apresenta no cineclube teve como “primeira loucura”, extrapolando as palavras utilizadas numa entrevista pelo realizador, a de fazer um remake do filme Some Came Running de Vincent Minelli: “encontrar um Sinatra, e logo o seu movimento de repulsa e proximidade para com o seu modo de vida e para com o seu meio, uma dialética visceral que tentasse resgatar e reter o tempo perdido, para ele surgir ao mesmo tempo do que o presente e o pressentimento do futuro”. O filme afastou-se clara e deliberadamente desse ponto de partida, aproximando-se antes de um documentário da cidade de Braga no seu estado atual, que é o mesmo que dizer através dos tempos, porque uma cidade tem essa capacidade de conter em si visivelmente o passado. 

Esta sensação documental vem tanto da exploração física da cidade como do respeito dado aos diálogos cuja naturalidade advém precisamente do facto de terem sido tirados quase inteiramente de conversas de bracarenses e amigos; essa naturalidade define também o ritmo do filme, que vagueia, como o protagonista, de espaço em espaço, de conversa em conversa, deixando que o espectador seja lenta mas certeiramente envolvido pela aura da cidade, uma aura que mesmo (ou talvez especialmente) um bracarense redescobre no ecrã. Como diz um personagem de um filme famoso: “é engraçado como as cores do mundo real só parecem mesmo reais quando as vemos num ecrã”. 

Mas o filme, através do seu protagonista e nosso guia, Roberto, assume uma relação subjetiva com a cidade, uma cidade que ele critica ferozmente ao mesmo tempo que ama, uma cidade cujo assalto pela modernidade assume para o protagonista a mesma vileza (ou apenas triste realidade) do cancro que presumivelmente o corrói a ele mesmo. É esta resistência de Roberto à mudança que o condena, e que move a sua conduta destrutiva; um cómico exemplo disso são os seus encontros com um jovem da geração Facebook, que culminam no triunfo orgulhoso de um sino da catedral sobre um telemóvel como forma de dar as horas. Mas apesar das mudanças a cidade retém a sua pesada influência católica em todas as esquinas, e alguns dos personagens, assim como todos os atores do filme (exceto o protagonista) são personagens da própria cidade e parte da sua história, como o dançarino João, ou o próprio Adolfo Luxúria Canibal. 
 
Escrevendo este texto três anos após a estreia do filme é curioso pensar que mesmo o presente que o filme documenta é já um passado visível, e por exemplo a taberna “Subura”, onde decorre uma grande parte do filme, já não existe: a mudança continua, imutável.



quarta-feira, 18 de janeiro de 2023

Longe (2016) de José Oliveira



por António Cruz Mendes

Em Longe, um homem percorre as margens do Tejo, vagueia por Lisboa, para numa tasca onde reencontra um velho amigo e recorda ocorrências passadas, como que ganhando coragem para o seu objectivo final, reencontrar a filha de quem se separou logo depois do seu nascimento. 

O nosso cineclube editou recentemente uma tese de doutoramento com o título O Cinema: Uma Estética Crua. “Crua”, porque o cinema não inventa as imagens que nos dá a ver, mas regista com a precisão de uma máquina aquelas que o mundo nos oferece. Nesse sentido, aquela designação, uma “estética crua”, tem uma natureza descritiva: seria própria de qualquer obra cinematográfica. Mas, ela assume também um sentido normativo quando deixa implícito que o melhor cinema é aquele que nos obriga a ver aquilo que, estando presente na vida quotidiana, a nossa distração ou a nossa dificuldade em encarar a realidade, tornou invisível e é nesse sentido que a tese de João Paulo Cruz Mendes se refere à literatura realista e naturalista, que eleva à categoria da arte o que é banal, como uma precursora do cinema. 

É isso aquilo que faz o cinema de José Oliveira e, em particular, este filme. Um cinema despojado de glamour e de peripécias aventurosas, onde, como diz Siegfried Kracauer numa citação escolhida para epígrafe da referida tese, a beleza se pode descobrir “an ordinary suburban street, filled with lights and shadows with transfigures it”, quando “a breeze moved de shadows, and the façades with the sky below began to waver”. 

Os filmes de Pedro Costa, trouxeram para o cinema, humanizaram e deram protagonismo a figuras que a nossa sociedade reduziu a estereótipos e remeteu para uma obscura marginalidade. José Oliveira colheu essa herança e deu-lhe um cunho particular, inspirando-se nas suas próprias experiências de vida. As curtas-metragens que vimos na semana passada (Pai Natal e Sem Abrigo) são ainda primeiros passos dados nessa via, mas sinalizam já opções estéticas e temáticas muito sólidas que iremos ver mais tarde desenvolver-se nas suas longas-metragens, Conselhos da Noite e Guerra. E, aqui chegados, é necessário sublinhar o contributo de José Lopes e de Marta Ramos que, com ele, formam os “três camaradas” que dão o nome a este ciclo e que o acompanharam nesse processo de descoberta e realização, do qual nascerão, por certo, ainda muitos mais frutos. 

Em Longe, seguimos os passos do protagonista. O registo é quase documental. Vemos o rio, percorremos ermos e ruínas e passeamos pelas ruas da grande cidade. Breves imagens e diálogos surgem, por vezes, como lampejos que iluminam janelas para outras histórias. Assim, um homem, diante da sua casa num lugar desolado à beira-rio, diz-nos que já vive ali “há tanto tempo que já nem me lembro”; numa rua da cidade, num cartaz de propaganda política, um partido afirma ter “Soluções para uma vida melhor”; dois amigos, sentados à mesa de uma taberna, recordam tempos passados e um deles remata: “Éramos os maiores!”. 

Nessa deambulação pela cidade, é um percurso de vida que se refaz. A mala que o protagonista carrega diz-nos que ele vem de longe, de outros lugares. No princípio, houve uma criança que nasceu e, não sabemos porquê, foi criada num orfanato. No fim, ela já é adulta. A cena final, do reencontro do pai e da filha, é filmada à distância, pudicamente. Estamos perante um filme pensado, realizado e interpretado com uma rara sensibilidade. 
 
Moments Musicaux é o nome de seis pequenas e delicadas peças para piano de Schubert e assim podiam ser também designadas as cinco curtas-metragens que projectamos depois de Longe e que, com ele, fazem um contraste de claro-escuro. A vida numa grande cidade pode ser difícil, árida e fatigante, mas algumas pessoas reúnem-se para fazer música ou dizer poesia e o cinema é convocado para eternizar essas ocasiões de amizade e beleza.



quarta-feira, 11 de janeiro de 2023

Pai Natal (2010) de José Oliveira



por Alexandra Barros

Por onde começar a falar do José Oliveira? Pela primeira sessão do Lucky Star, cineclube que fundou com João Palhares, em Braga, em Janeiro de 2016. Nesse dia, pensei que nascia ali qualquer coisa excepcional. E não só porque a abertura oficial consistia numa sessão dupla preparada e apresentada pelo realizador Pedro Costa (O Nosso Homem de Pedro Costa + Monsieur Verdoux de Charles Chaplin). Comecei a guardar as maravilhosas folhas de sala do José Oliveira e do João Palhares como preciosidades. Ensinaram-me (e continuam a ensinar) a ver em cada filme mais cinema do que aquele que eu era capaz de ver. Mas mais do que isso, ao falar dos filmes falam para lá dos filmes, falam de todos os sítios onde os filmes os levam, entrelaçam as suas paixões, revoltas, dores, alegrias, amizades, dificuldades, dias e noites, sem nunca ficarem neutros e sem nunca se preocuparem com poses, modas e tendências. 
 
O José diz gostar do escuro, no autobiográfico Pai Natal, mas o cineclube que fundou tem uma estrela no nome e é totalmente sobre preservar a LUZ. 
 
“[...] o cinema que mais me disse foi o de John Ford ou o de King Vidor, nunca baixar os braços, dar tudo, e meter certas coisas no devido lugar de onde jamais deviam ter saído. Mesmo que a violência seja necessária, em correspondência com o amor desmedido. É seguindo essa demanda e essa cepa que os filmes se podem por milésimos de segundo aproximar da incomparável e selvática aventura da vida.” em Conversa com José Oliveira por Manuel Pinto Barros (Jornal dos Encontros Cinematográficos 2016) 

Em Pai Natal, José vai a Lisboa para ir buscar livros, ver filmes e vaguear, mas sente-se perdido porque não consegue deixar de andar sempre pelos mesmos sítios. Em Sem Abrigo também anda perdido, mas talvez essa desorientação seja afinal a forma de chegar ao que mais importa. Quando se encontra com uma outra perdição, as palavras que não são ditas, ou pelo menos não ouvidas, poderiam ser talvez: “que estranho caminho tive que percorrer para chegar até ti”[2]. Ir e Vir, cruza-se com idênticas inquietações às de Pai Natal e de Sem Abrigo, numa canção cantada e tocada por José Lopes, no filme A Pena Perdida (também de José Oliveira). Deste seu grande amigo e mestre, diz: 
 
“Conheci o Zé Lopes em 2010. No centro do centro da cidade de Lisboa. Juntamente com os meus melhores amigos, ficámos mais de uma hora na conversa. Tudo parou e a brutal movimentação do Rossio suspendeu-se. Senti uma violência tal, uma fúria e uma ternura que só conhecia das pessoas simples e complexas da minha aldeia minhota. Trabalhadores do campo e criaturas perdidas da noite que te tratam como igual. Depois, passei horas e horas e anos com ele. Frente a frente num banco do jardim ou a quatrocentos quilómetros de distância. Quase sempre a escutar, os seus medos e as suas raivas, as suas certezas e a sua inexorável liberdade. A sua companhia continua para mim vital e indecifrável, fonte de todas as dádivas e segredos. Se pudesse fazer mais um filme, ou muitos, à maneira da Hollywood clássica ou das fábricas genuínas, gostaria que fossem todos com ele. Assim, em Lisboa ou em Braga, como no Mississipi ou em Monument Valley. Naturalmente, sem contratos, nem princípio, nem fim. O que gostava mesmo era de fazer filmes que fossem entendidos aqui e na China, por uma criancinha ou por um velho sabido.” em Conversa com José Oliveira por Manuel Pinto Barros (Jornal dos Encontros Cinematográficos 2016) 
 
Ir, vir, talvez não voltar, chegar, partir, retornar, errar, vadiar, flanar, deambular, procurar, encontrar, recomeçar. “Estamos sempre de chegada, estamos sempre de partida. Donde a eternidade ou a perfeição sempre almejada pode estar no mais efémero momento. [...] Do mais frágil e intenso dos realizadores que o cinema já conheceu, Nicholas Ray, surge essa busca, talvez perpétua, pelo centro, pelo pleno, pela casa, pela comunidade. Não sei se Ray lá chegou, [...] mas acredito que seja a mais importante das lutas.” em Conversa com José Oliveira por Manuel Pinto Barros (Jornal dos Encontros Cinematográficos 2016) 

Escolhi esta conversa para a folha de sala, mas poderia ter escolhido qualquer entrevista ou qualquer um dos textos do José encontrados em diversas publicações (Ípsilon, À Pala de Walsh, Raging-b, ...) ou no livro Uma Viagem Pelo Cinema Americano (co-escrito com João Palhares). Os seus filmes, os seus heróis, a escrita, o pensamento e a vida estão amalgamados. Como num fractal, olhar para uma parte é olhar para o todo. A conversa termina com uma citação de Nicholas Ray, um dos heróis do José: “Take care of each other. It’s your only chance of survival. All the rest is vanity.” Remain In Light[3], acrescento, citando heróis dos meus.

[1] Nessa cena lembrei-me do prelúdio da canção “Carne Eléctrica”, dos Um Zero Amarelo: “Como é que ocupas o teu tempo? / A dormir e a passear. / A passear por onde? / Por todos os sítios. Os sítios que eu não conheço.” Falo disto porque sim e porque ofereci Um Zero Amarelo, dos Um Zero Amarelo ao Pedro Costa quando esteve pela primeira vez em Braga, para a “abertura oficial” do Lucky Star e porque não perco uma oportunidade de falar deste maravilhoso e subestimado disco.
[2] Pickpocket, de Robert Bresson, 1959.
[3] Álbum dos Talking Heads, Sire Records, 1980.



quarta-feira, 4 de janeiro de 2023

Pastor da Noite (2016) de Mário Fernandes



por Alexandra Barros

Na curta biografia do realizador Mário Fernandes encontrada no site dos “Encontros Cinematográficos”, podemos ler: “Nascido em 1985, em Castelo Branco, na Beira Baixa, emigrou em 2002 para a Cinemateca Portuguesa, licenciou-se em Direito e tirou um mestrado nessa área. Entre a Gardunha e a Cinemateca, conheceu bons amigos com quem iniciou a aventura de fazer filmes sem orçamento. Além de várias experiências profissionais – de jurista a recepcionista nocturno -, colabora voluntariamente com os “Encontros Cinematográficos” e escreve de vez em quando para a FOCO, a única revista de cinema que respeita.” 
 
Comecei por aqui para comentar a nossa sessão de hoje porque o filme escrito e realizado por Mário Fernandes está cheio de pequenos corações espelhados[1] que reflectem esta(s) vida(s). O Pastor da Noite, possivelmente uma personagem autobiográfica, é o recepcionista nocturno do “Youth Hostel” lisboeta “Unreal” e é interpretado por José Oliveira, realizador de cinema por vocação, actor por dedicação, um dos fundadores do Lucky Star – Cineclube de Braga e amigo de Mário Fernandes. As ovelhas - tresmalhadas - são os frequentadores do “Unreal”, mais ou menos bem recebidos pelo Pastor, de acordo com a respectiva pinta. A juventude que frequenta o hostel é nenhuma, mas não faltam clientes ao estabelecimento. Chegam, por vezes, em magote, cada um acompanhado apenas pela sua solidão. 
 
O Pastor da Noite é cinema DIY, feito pelo gozo, pela paixão. É feito com os amigos; com os livros, a música e os filmes amados; com uma ou outra embirração de estimação; com os lençóis lá de casa, as garrafas de whisky compradas no Minipreço e já meias-bebidas na noite anterior à rodagem; com o pássaro de plástico engaiolado que foi parar ao filme porque sim ou talvez porque alguma outra coisa: “Acts of charity: put coins to sing the bird”. Porque “quem canta seus males espanta”, atira um cliente a quem é dado alojamento em troca do seu único bem: um globo terrestre electrificado. 
Pastor da Noite - “Preciso de um documento de identificação: cartão de cidadão, carta de condução, número de contribuinte, número da segurança social, comprovativo de serviço militar cumprido ou licença de sobrevivência actualizada.” 
Cliente - “A licença de sobrevivência caducou, mas tenho um cartão de amigo da Cinemateca. Passo lá os dias. O pior são as noites.” 
A outro cliente, hipocondríaco diagnosticado, o oftalmologista desaconselhou o cinema porque os músculos oculares já não se adaptam à rapidez das imagens. Certamente pensando noutras imagens que não as aceleradas do western mudo do início do século passado As Portas do Inferno[2], com que o Pastor preenche o aborrecimento das noites pouco movimentadas na recepção. Para outros aborrecimentos, o Pastor guarda na caixa de uma cassette VHS do Dirty Harry[3], uma arma que vemos carregar no início do filme. Antes, porém, lavara as mãos como se se preparasse para uma operação cirúrgica. A arma nunca chega a ser disparada, mas ao Pastor nunca falta uma frase cortante para atingir os clientes que lhe interrompem a leitura (de uma após outra edição) do “Tom Jones” de Henry Fielding. 
 
É numa noite afortunada, em que “só se matou o Sr. Tomás do 509”, que os serviços do Pastor são dispensados pela gerente, com um simples: “Amanhã podes deitar-te mais cedo. Vou vender tudo aos chineses.” Afinal as despedidas querem-se curtas, opina, enfadada que ficou com a leitura da nota suicida poética do Sr. Tomás. O patrão nunca chega a ser visto. É “caso incógnito”. O Pastor da Noite sai para as ruas ensolaradas. Aguarda-o o banco de jardim onde dormita, quando termina o seu turno, no cemitério onde jaz Henry Fielding. 
 
O filme abre com uma frase de Apollinaire - “La porte de l’hôtel sourit terriblement” (“A porta do hotel sorri terrivelmente”), fecha com uma em latim - “Hic finis chartaeque viaeque” (“Este é o final da história e da viagem”). Pelo meio, há a música de Händel a acompanhar a lavagem dos lençóis sujos e a leitura de Henry Fielding, alfinetadas ao fenómeno da gentrificação (“Proibida a entrada a menores de 60€” lê-se numa frase pintada numa parede), muitas referências cinéfilas e literárias, homens com “incomensuráveis resistências”, paisagens urbanas e pecados queimados, num cinema completamente punk no coração e noutras não menos nobres entranhas.

[1] Embora estes sejam metafóricos, a imagem é inspirada num pequeno espelho em forma de coração que aparece, de facto, numa das cenas do filme.
[2] Hell's Hinges, de William S. Hart e Charles Swickard.
[3] Filme de Don Siegel, cujo título português é A Fúria da Razão.