segunda-feira, 18 de setembro de 2023

307ª sessão: dia 21 de Setembro (Quinta-Feira), às 21h30


Filme de Howard Hawks abre ciclo de cinema 

Durante os meses de Setembro e Outubro, o Lucky Star – Cineclube de Braga vai exibir doze filmes em parceria com os Encontros da Imagem. O ciclo tem como mote o tema dos Encontros deste ano, “Ensaio para o Futuro”, e será dedicado à memória de Carlos Fontes. 

O primeiro filme do ciclo, exibido na próxima Quinta-Feira às 21h30, é A Terra dos Faraós, de Howard Hawks, um grandioso épico na senda de Cecil B. DeMille com Jack Hawkins, Joan Collins e Dewey Martin nos papéis principais. Rodado em exteriores no Egipto, o filme contou com milhares de figurantes. Foi o primeiro insucesso comercial do realizador norte-americano, que parou de filmar quatro anos até regressar com o famosíssimo western Rio Bravo

O filme de 1955 retrata o projecto de vida do faraó Khufu (interpretado por Hawkins), que incumbe o arquitecto Vashtar de lhe construir a pirâmide mais sumptuosa e mais segura jamais feita para guardar o seu grande tesouro e conseguir a imortalidade. Se o arquitecto levar a demanda a bom termo, o faraó liberta o seu povo. Mas a princesa Nellifer (Joan Collins) tem outros planos para o tesouro do marido. 

Em «Hawks at Work», artigo sobre o livro Hollywood sur Nil de Noel Howard (sobre a rodagem de A Terra dos Faraós), escrito em 1990 para o jornal Modern Times, o crítico norte-americano Bill Krohn escreveu que “a imortalidade—um tema que surge mais do que uma vez nos filmes de Hawks—é a preocupação dos artistas, e no discurso do Faraó ao seu filho ele equipara o ouro que acumulou ao poder, outra preocupação que os artistas partilham com os tiranos.” 

“Creio que Hawks,” escreve Krohn mais à frente, “que sempre negou ser um artista (isso significaria admitir a sua afinidade com Oscar Jaffe), fez “A Terra dos Faraós” por uma razão óbvia. Tentou criar uma obra-prima que vivesse para sempre.” 

Um dos maiores admiradores do filme é o cineasta Pedro Costa, que o descreveu também em 1990 num fabuloso texto para o catálogo da Cinemateca Portuguesa dedicado a Hawks como “um longo pesadelo. É um filme negro, sufocante e perdido desde o princípio. Só lá poderemos entrar perdidos também.” 

As sessões do Lucky Star - Cineclube de Braga ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, durante este ciclo às terças e quintas-feiras às 21h30. A entrada custa um euro para estudantes e utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Até Terça-Feira!

sábado, 16 de setembro de 2023

Em Setembro e Outubro, no Lucky Star:




Sideways (2004) de Alexander Payne



por António Cruz Mendes

O Lucky Star – Cineclube de Braga realiza todas as 3ªs feiras as suas sessões ordinárias. Mas, para além delas, temos realizado, e tencionamos continuar a fazê-lo, muitas sessões extraordinárias em cooperação com diversas entidades. Com as Escolas Secundárias de Braga e Vila Verde (e também com a Escola Básica de Prado), com a Faculdade de Direito da Universidade do Minho, com a Biblioteca Lúcio Craveiro, com imigrados brasileiros radicados na nossa cidade... 

Por iniciativa do Carlos Fontes, iniciámos há anos uma colaboração com os Encontros da Imagem. Duplicamos, no período das suas exposições de fotografia, as nossas sessões no Auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro e projectamos filmes com uma temática afim da que preside os Encontros. “Ensaio para o Futuro” é o tema dos Encontros da Imagem deste ano e, de acordo com ele, seleccionámos um conjunto de filmes que vamos projectar a partir do dia 21 de Setembro.

Mas, antes disso, a nossa rentrée fica assinalada por esta sessão no Solar das Bouças. Apreciar um bom vinho é um prazer que não necessita de justificação. Com Sideways, temos a oportunidade de acompanhar um conhecedor numa digressão por uma famosa região vinícola da Califórnia. Mas, provar bons vinhos pode ser também um pretexto para outras coisas. Miles e Jack, os protagonistas de Sideways (que podemos traduzir por “lateralmente”, “nas margens”), durante a sua viagem, tentam acertar contas com a vida, decidir por um caminho diante das encruzilhadas a que ela os conduziu. Embora nos proporcione deliciosos diálogos sobre as qualidades dos vinhos da região de Santa Barbara, Sideways não é um filme sobre vinhos, mas sobre homens, mulheres e relações humanas. Nós conciliámos a possibilidade de conhecer o Solar das Bouças e o vinho aqui produzido, numa visita guiada orientada pelo António Ressurreição, proprietário desta belíssima quinta, com a exibição desta comédia tingida por uma terna melancolia, realizada por Alexander Payne.



quarta-feira, 26 de julho de 2023

The River (1928) de Frank Borzage



por Alexandra Barros

Fechamos o ciclo dedicado a Frank Borzage, com um filme que rima com aquele que lhe deu início, Lucky Star. Rima no poder do amor e nos seus milagres: cura impossível, em Lucky Star; ressuscitação, em The River. Tanto num como no outro filme, os apaixonados (mais ou menos) relutantes, quanto mais se afastam mais se aproximam. Vencidos pela paixão, ou melhor, vencedores pela paixão, 1+1=1: um abraço em que os “abraçantes” se tornam indistinguíveis, após uma penosa caminhada na neve; o regresso de um corpo enregelado à vida pelo calor que o outro reparte. Final feliz. Felizes para sempre? Pelo menos, felizes por agora. 

“Que estranho caminho tive de percorrer para chegar a ti”[1] , poderia qualquer um destes enamorados dizer no final, fossem estes filmes falados. Qualquer história de amor, no cinema ou seja onde for, só pode ser história se incluir um estranho caminho. Amores sem história são lagos. Os dos filmes de Borzage são rios. 

“Este amor que surgiu insuspeitado  
E que dentro do drama fez-se em paz [...] 
Este amor meu é como um rio; um rio 
Noturno interminável e tardio [...] 
E que em seu curso sideral me leva 
Iluminado de paixão na treva” 
Soneto do amor como um rio (excertos), Vinicius de Moraes  

Em Setembro regressamos para mais histórias, mais amor, mais estranhamentos! Boas férias!

[1] Pickpocket, Robert Bresson.



domingo, 23 de julho de 2023

305ª sessão: dia 25 de Julho (Terça-Feira), às 21h30


Cineclube de Braga exibe “The River” antes de ir de férias 
 
Encerrando o seu ciclo dedicado a Frank Borzage, no âmbito das celebrações da sua tricentésima sessão, o Lucky Star – Cineclube de Braga exibe na próxima Terça-Feira às 21h30, no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, The River, filme de 1928 com Charles Farrell e Mary Duncan. 
 
O filme, parcialmente perdido, conta-nos a estória de Allen Spender (Farrell) e Rosalee (Duncan), um lenhador e uma mulher que espera o amante preso por homicídio que se conhecem num campo de lenhadores durante o Verão. Chegado o Inverno, deixam-se ficar os dois sozinhos enquanto os lenhadores esvaziam o campo para voltar para casa e às famílias. 
 
A versão de The River difundida actualmente é uma reconstrução do fragmento de 43 minutos encontrado por William Everson e Alex Gordon nos cofres da 20th Century Fox, em Los Angeles. Feita com o apoio da Cinemateca Francesa e a Cinemateca Suíça em 1993, a reconstrução conta com fotografias e intertítulos explicativos para suprir a ausência da primeira e última bobinas. 
 
Jacques Lourcelles escreveu que, em The River, “Borzage expressa o seu tema predilecto: o nascimento de um casal. Deixa aqui de lado os elementos românticos ou espirituais que tantas vezes evocou, para realçar o aspecto erótico da relação entre as duas personagens (daí o lugar particular do filme no interior da obra de Borzage e do cinema americano da época).” 
 
Muito elogiado pelos surrealistas, o filme foi lançado em Paris no Studio des Ursulines do Quartier Latin a 31 de Outubro de 1929. Ado Kyrou escreveu extensivamente sobre ele nos livros Amour-Érotisme et Cinéma, de 1957, e Le Surréalisme au Cinéma, de 1963. 
 
Depois de The River, já parcialmente sonoro, Frank Borzage estreou-se nos filmes falados, dos quais se podem destacar Liliom, Bad Girl, O Adeus às Armas, Man’s Castle, Little Man, What Now?, History is Made at Night, Três Camaradas, The Shining Hour, Tempestade Mortal, I’ve Always Loved You e Moonrise
 
Admirado por grande parte dos seus colegas de profissão, de John Ford a Terence Fisher, passando por Sergei Eisenstein, Borzage foi descrito por Samuel Fuller como “um dos maiores realizadores americanos de todos os tempos”. 
 
As sessões do Lucky Star - Cineclube de Braga, que voltarão em Setembro, ocorrem habitualmente às terças-feiras, às 21h30, e a entrada custa um euro para estudantes e utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os associados do cineclube têm entrada livre.

Até Terça!

quarta-feira, 19 de julho de 2023

Street Angel (1928) de Frank Borzage



por António Cruz Mendes

Procurando repetir o grande êxito alcançado por 7th Heaven (A Hora Suprema), William Fox deu a Borzage toda a liberdade para a realização de um novo filme. Borzage tomou, então, como ponto de partida a peça de teatro de Monkton Hoffe, Cristilinda, e transformou-a radicalmente passando a história de Londres para Nápoles e de um meio burguês para os bairros miseráveis da cidade italiana, e regressou ao tema de um grande amor que se confronta com a dura realidade da vida. Além disso, convocou de novo Janet Gaynor e Charles Farrell para interpretarem a história de amor entre Angela e Gino. 

É bem conhecida a frase com que Tolstói nos introduz na história de Anna Karenina, que nos diz que “todas as famílias felizes se parecem, enquanto as infelizes o são cada uma à sua maneira”. Talvez por isso seja tão difícil filmar a história de um amor feliz sem cair em lugares comuns. Em Street Angel, Borzage arrisca essa possibilidade, não diferindo a vida amorosa de Angela e Gino para um suposto futuro que se seguiria ao happy end
 
O seu filme pode ser visto como um tríptico onde os sombrios volantes servem para realçar a luz que irradia do painel central, onde se conta a felicidade vivida por Angela depois do seu encontro com Gino. 

No primeiro “volante”, pinta-se a miséria em que ela vive, a morte da mãe e a sua prisão por roubo e prostituição. Na sequência do seu julgamento, vemos as autoridades que a condenam de costas, impessoais e em primeiro plano, enquanto Angela é filmada ao fundo da cena, reduzida a uma dimensão minúscula. Quando se abeira do juiz que, do alto, dita a sentença, só conseguimos ver os seus olhos espantados. Ela não é ninguém e, na prisão, as reclusas também já não são pessoas, mas apenas sombras projectadas nas paredes. Porém, quando foge, Angela recupera a sua vida, encontra uma família na comunidade do circo – e conhece Gino. 

O tema do painel central é o da felicidade de ambos, refugiados na pobre habitação onde, castamente, porque ainda não são casados, vivem em quartos separados. A rosa comprada por Gino, em vez da comida que faltava em casa, simboliza esse amor romântico que os une. Contudo, em Nápoles, a sombra do passado projecta-se sobre ele. A prisão de uma prostituta, avistada pelos dois da sua janela, é um sinal premonitório. “Talvez ela não tenha culpa”, diz Angela, assustada. “Elas só têm a si mesmas para se culparem”, responde Gino. E é quando, finalmente, Gino recebe uma grande encomenda, a pede em casamento e brinda ao futuro dos dois, um futuro que se adivinha de riqueza e felicidade, que esse passado bate à porta na figura de um polícia que reconhece Angela, a prostituta e ladra que fugiu da prisão. Numa sequência de planos em montagem paralela, vemos Gino sonhar com os filhos que vão ter, com a ventura que os espera, enquanto, lá fora, o polícia olha para o relógio. O tempo que deu a Angela para se despedir está-se a esgotar. O sino da igreja dá as horas, é o momento de partir. E a montagem paralela surge de novo, desta vez ensaiando um diálogo imagético e sonoro, quando os dois se despedem, assobiando O sole mio

Gino ainda não sabia que essa separação seria por muito tempo. No segundo volante deste tríptico, regressamos ao mundo das trevas. Angela está na prisão e Gino, desconhecendo o seu paradeiro, mergulhado no desgosto e incapaz de pintar, deixa-se ficar pelos bares, onde reage violentamente à abordagem de uma prostituta. Mais tarde, informado por ela do destino da sua noiva, decide voltar a pintar. Terá como tema uma mulher com uma alma demoníaca escondida sob uma cara de anjo. Procura o seu modelo entre as prostitutas, nas docas de Nápoles – e depara-se com Angela. Enlouquecido, tenta estrangulá-la e persegue-a por vielas e escadarias, até que a encontra aos pés de um altar, sob o retrato que ele próprio pintara, mas retocado por um falsário que transformou Angela numa santa, para fazer passar a obra de Gino pela obra perdida de um pintor setecentista. Então, nessa falsificação, ele descobre a verdade e a pureza do amor triunfa sobre a baixeza do mundo. 

O melodrama exige do público uma disponibilidade que supõe uma suspensão temporária do nosso juízo racional. Estamos num mundo para o qual apenas a emoção é convocada. Mas, para além disso, todos somos sensíveis à beleza lírica dos movimentos da câmara que nos levam por essa Nápoles de papelão, escura e enevoada, onde se canta e onde se sofre. Griffith foi, como se sabe, o pioneiro da montagem paralela, e terá inspirado Borzage. Quanto aos impressivos contrastes de claro/escuro (a camisa branca de Gino, percorrendo as escuras vielas de Nápoles…) e à figuração fantasmática das sombras projectadas nas paredes, serão, talvez, uma herança do expressionismo alemão que Borzage poderá ter reconhecido em Murnau. Mas, o seu cinema tem, sem dúvida, uma marca própria e ela faz dele um dos grandes mestres do cinema mudo.



segunda-feira, 17 de julho de 2023

304ª sessão: dia 18 de Julho (Terça-Feira), às 21h30


Filme de Frank Borzage para ver na BLCS 
 
Esta Terça-Feira às 21h30, o Lucky Star – Cineclube de Braga vai exibir O Anjo da Rua de Frank Borzage no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, na continuação do ciclo dedicado ao cineasta e no âmbito das celebrações da sua tricentésima sessão. 
 
O filme, realizado em 1928 entre os lançamentos de A Hora Suprema e de Lucky Star, conta também com as participações de Janet Gaynor e Charles Farrell, que durante os anos 20 e 30 do século passado foram os “America’s favorite lovebirds,” entrando em doze filmes juntos e trabalhando com cineastas como Raoul Walsh ou Henry King, além de Borzage. 
 
Ambientado em Nápoles, a obra descreve os destinos cruzados da jovem Angela, que para ajudar a mãe moribunda se vê obrigada a roubar e, para fugir à justiça, se junta a um circo itinerante, e Gino, um jovem pintor que se junta ao mesmo circo por amor a ela. 
 
No seu dicionário de cinema, Jacques Lourcelles escreve que O Anjo da Rua é um “melodrama elegíaco na linha de A Hora Suprema, ao qual se segue imediatamente na filmografia de Borzage. Encontram-se aqui os temas caros ao autor: a sublimação e a redenção dos seres pelo amor; a inocência deles mais forte do que a maldição social que muitas vezes os atinge.” 
 
Terminando a sua pequena crítica ao filme, diz que “(…) os cenários, no isolamento do estúdio, são construídos expressamente para que a iluminação lhes adicione um segundo nível de artifício (no sentido nobre do termo) e de beleza. Este universo plástico é só expressionista na aparência porque, inferno e paraíso ao mesmo tempo, possui uma ambivalência profundamente estranha a esse movimento e que só tem sentido na temática de Borzage.” 
 
Junto a The Quiet One de Sidney Meyers, o filme teve a rara honra de ser nomeado para Óscares da Academia em anos diferentes, sendo nomeado e tendo vencido o Óscar de Melhor Actriz, para Janet Gaynor, em 1929, e recebendo as nomeações de Melhor Direcção Artística e Melhor Direcção de Fotografia no ano seguinte. 
 
É célebre um dos seus intertítulos iniciais, que diz que “por todo o lado… em cada cidade e em cada rua… passamos sem saber por almas humanas tornadas grandes pelo amor e pela adversidade” e que pode descrever toda a obra de Frank Borzage. 
 
As sessões do Lucky Star - Cineclube de Braga ocorrem habitualmente às terças-feiras, às 21h30, e a entrada custa um euro para estudantes e utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os associados do cineclube têm entrada livre.

Até Terça-Feira!

sexta-feira, 14 de julho de 2023

Morada (2022) de Eva Ângelo



por João Acciaiuoli Catalão

Confesso que adormeci. Algures antes da visita às obras de recuperação do Trindade. Não por causa do filme mas por causa do meu cansaço. Aconteceu o mesmo com os cinemas. Fecharam não por causa dos filmes mas por causa do nosso cansaço. Conto isso na expetativa de trazer à leitura pessoal que faço a mesma inteireza e cuidado que a Eva Ângelo colocou no seu trabalho. No ajuste dos enquadramentos feito em diálogo e empatia. Na delicadeza poética da costura e dos entrançados que sustentam a arquitetura do filme. Nos apontamentos espontâneos que regista aqui e ali pela cidade. No vagar e no sentido dos seus atravessamentos coreográficos. Retenho em particular as mulheres que se escutam atentamente dentro de si mesmas. E os homens petrificados por um toque de Midas de sentido contrário. Em empurrões e esgares de riso que trazem consigo para dentro do plano. Tocou-me particularmente ter visto o filme num dia em que fiquei na casa da minha mãe no Porto. E depois revisitá-lo como quem reaprende o caminho de regresso. Para o descobrir finalmente fora da tela. Num contexto celebratório memorável. Em que as senhoras da turma de cinema se tornavam elas próprias protagonistas de uma estreia cinematográfica. Eu sei que a Eva queria que víssemos no filme matrioskas. Pela natureza sedimentar complexa do seu processo artesanal de trabalho. Que realça ainda mais a consistência que resultou dessa gestação prolongada. Quando finaliza o percurso coletivo com a justeza de um fecho de abóboda. Como se um cargueiro pesado se transformasse em aeroplano num passe de decolagem. Escolho ver por isso no filme, no lugar das matrioskas que também lá estão, o movimento circadiano das aves. Em particular aquelas que acentuam os silêncios na cidade. Que encenam subtilmente no filme presenças que persistem em edifícios que já foram salas de cinema. E ganharam outros usos. E também desusos. Por vezes daninhos à dignidade com que foram projetados. Escolho o volteio circular dos pombos. Pela porosidade com que coabitam connosco as casas. E as alargam em relevos orográficos invisíveis. Os desenhos que riscam na paisagem têm para a Eva um sentido simbólico codificado. Que ela tomou como metáfora do pensamento no seu filme Revoada. Em que o toque de Midas acontece no sentido exato. Alinhado com o entusiasmo humanista do Laborinho Lúcio. Que emparelho com a força e a fertilidade tecedora da Madalena Vitorino no Água. Escolho ver a epifania da luz súbita que rompe a chuva noturna. Como um candelabro que se acende numa sala de espetáculos há muito encerrada. A anunciar o renascimento possível dos cinemas de proximidade. Com a cidade e com as artes cinematográficas. Mesmo que a plateia tenha sido imobilizada de forma insólita no espaço público. Como na transfiguração que a Eva aplica ao trabalho Treze a Rir uns dos Outros de Juan Muñoz. Com as suas figuras em ferro petrificadas como no Vesúvio. Sob o olhar feminino imperturbável da Justiça à porta do palácio que supostamente habita. Escolho a alegoria solar da República que traz na mão um ramo de oliveira para mediar o conflito que se forma no interior da narrativa. E a verticalidade incisiva da Elisa com os auscultadores na cabeça. A ouvir palavras que lhe ferem por vezes os ouvidos. E o modo como nos interpela com intensidade. Escolho ver a Maria José e as muitas vozes que se fizeram presentes na antestreia do filme no Trindade. Quase como um milagre. Porque a passagem do tempo impregna-se tanto em nós como na película. Tal como as gravações feitas no inverno. Quando reforçam de forma quase grotesca a alameda de plátanos deformados no Jardim da Cordoaria. Que perdeu a sua aura romântica original quando o Porto foi Capital Europeia da Cultura. E ganhou as figurações escultóricas que habitam agora também este trabalho. O filme da Eva Ângelo fala da perda das salas de cinema. E resgata memórias documentais do seu surgimento e dos seus tempos áureos. Conjugadas com testemunhos improváveis recolhidos numa universidade sénior. Num registo afetivo de rememoração e reciprocidade. Porque há olhares habitados sobretudo neste exercício demorado dentro do silêncio e da resiliência. E uma exaltação comovente do espaço de partilha comunitário. Cujo endereço na rua da Constituição é uma bandeira que remata a orbitalidade agridoce de um filme que é também morada. Com um filme dentro do filme. Numa odisseia feliz contada com humor e brilho nos olhos pela Maria Teresa. Que a Eva tornou nome de rua num enquadramento prévio. A mim fez-me voltar à minha experiência como programador cultural na Casa do Professor em Braga. E ao seu lar de porta aberta para professores aposentados. Onde a minha mãe pensava ir viver antes de se mudar para o prédio da minha irmã na Prelada. Fez-me sentir a idade que ela tem agora multiplicada num caleidoscópio sensitivo. Com fragilidades e memórias mais recentes que se perdem. Mas com a persistência de conhecimentos antigos de físico-química. Que foi o curso em que a minha mãe se formou em Coimbra. Onde conheceu o meu pai, que era estudante de direito. E desenhava repetidamente a casa que sonhava construir no futuro. Envolto em música clássica e fumo de cachimbo. O filme é feito assim também de pequenas memórias estaladiças. Que aceleram uma pulsação nostálgica de fundo. E que acredito possam provocar efeitos semelhantes em outros corpos expostos à mesma radiação fílmica. Que tem como cerimonial condutor uma cadeira vermelha no sótão. E coleções de livros arrumados cuidadosamente em prateleiras como marcadores de viagem. Com instruções de voo à mistura. Como a de Edgar Morin no seu O Cinema e o Homem Imaginário. Há tantas formas de viver o cinema. Tantas formas de recordá-lo. De o compartilhar em álbuns de famílias alargadas como esta que conhecemos aqui através do vaivém epistolar da Eva. A universidade sénior que o filme documenta é uma escola feita à medida da perseverança da sua fundadora. E não de quem queria impor-lhe outra perspetiva pedagógica. É a esse espaço de convívio e proximidade que o filme vai buscar uma polifonia invulgar de vozes narrativas. Que nos trazem as suas impressões e experiências enquanto espectadoras de cinema. Mescladas com os tempos fílmicos que manuseiam. E leem em voz alta. Mas que trazem também barreiras e frustrações que deixaram e deixam ainda marcas sociais profundas. Nesse mundo no feminino que o filme desvela encontramos ecos bem conservados da comunidade que alimentou a efervescência das salas de cinema no Porto. As suas recordações pessoais reativam as emoções e o sentido cultural das paisagens que ganharam outrora vida na tela. Ao mesmo tempo que refletem os ritmos sociais e urbanos que se cruzam com os primeiros movimentos cinéfilos. Vagamos assim também pela cidade do presente. Em busca de vestígios e transformações ocorridas nesse espaço comum de memórias. Que persistem e que também se perdem. Dando lugar tantas vezes a metástases comerciais higienizadas. Que tornam ainda mais invulgar o reaparecimento recente do Batalha. Que a realizadora integra discretamente na versão final do filme. Depois de uma visitação solitária ao outro lado do mundo. E se torna um bilhete para o futuro. Vagamos pela cidade tão presente. Para encontrarmos por vezes, em deambulações da câmara, nascentes cinematográficas em estado bruto. Como se em cada filme evocado, em cada afloramento antigo que resiste, pudesse estar uma semente que se atira ao ar num dia de vento. A expressão é uma alusão modificada ao título que a Eva utilizou para batizar um trabalho que fez no Alto Minho. Emergiu quando escrevia ainda a lápis o esboço inicial deste texto. Para transformar-se agora numa passagem urdida pela urgência. Vincadamente sensorial e analógica como a porta do tribunal que se abre de um filme para outro na trilogia de Kieslowsky. Ou a figura idosa obstinada que os atravessa. E pressenti aqui também a presença. Queria trazer essa ramificação poética como um sistema de filmes comunicantes. Capaz de irrigar a árvore seca do Sacrifício salvífico de Andrei Tarkovsky. E chegar por carta como antigamente a lugares obstruídos pela persistência do ruído e da aceleração na retina. Quem sabe nos consiga levar ainda a algum lugar do futuro onde a morada do destinatário seja igual à morada do remetente. Adormeci no filme por cansaço. E acordei depois imerso nele. Como se pelo meio algum estremecimento súbito tivesse aberto um atalho permeável ao invisível. Falo de atalho por ser uma palavra cara à minha filha. Em particular quando voltamos de um passeio que encontros casuais alongam. Ou no caso da Eva se fixam no filme. Não preciso de um mapa para me orientar entre as placas com nomes de ruas dos antigos cinemas que pontuam este trabalho. Enlaçadas com palavras soltas à deriva. Mas preciso saber Onde Fica a Casa do meu Amigo de Abbas Kiarostami. Que depois de ter sido evocado se avizinhou prodigiosamente da estreia do filme no Porto. Porque A Vida Continua. E o futuro sofreu um abalo sísmico fraturante como aquele que impele o cineasta iraniano em direção aos escombros. Numa viagem ficcionada em busca das crianças com quem havia trabalhado anteriormente. Morada é um filme habitado por filmes que são também casas habitadas por pessoas. Casas dentro de casas. Como as matrioskas que a Eva queria que víssemos. Mas é acima de tudo um olhar sobre um outro tempo que hoje nos escapa. E exige do espectador esse mesmo tempo como código de acesso. Procuro também a minha morada nas ruínas. Lembro-me que havia uma árvore isolada no alto da colina. E um anjo atento que nos ouvia. Como se fosse um divisor de mundos. Entre Tristão da Cunha e a Terra do Fogo. Porque há sempre um antes e um depois do que nos salva. Que é o que faz por vezes o cinema.



quinta-feira, 13 de julho de 2023

7th Heaven (1927) de Frank Borzage



por João Palhares

If it's magic, 
Why can't we make it everlasting, 
Like the lifetime of the sun? 
It will leave no heart undone, 
for there's enough for everyone. 
 
Stevie Wonder, em If It's Magic 
 
Não será de espantar (ou, não será, apenas se não se quiser ver injustiças nisto dos esquecimentos) que certos grandes artistas estejam condenados à ignorância geral em detrimento de outros, por não terem a sua obra devidamente editada e a circular em ciclos e mostras de cinema. Não ajudam, também, as palavras condescendentes de certos críticos e historiadores de cinema, tantas vezes movidas por mera ignorância e desconhecimento das obras, quando não mesmo proferidas por puro preconceito ou ira mal orientada. Frank Borzage, filho de um pedreiro de uma área agora italiana do antigo Império Austríaco e de uma empregada suíça de uma fábrica de seda (e quem reconhecer neles alguns dos seus heróis não estará totalmente enganado), nasceu a 23 de Abril de 1894 em Salt Lake City, no Utah. Como Allan Dwan, Henry King, King Vidor ou Cecil B. DeMille, não parece interessar muito nem aos cinéfilos nem ao público de hoje, apesar de ser (também como Dwan, King, Vidor ou DeMille) um dos sustentáculos absolutos da fábrica dos sonhos, do cinema americano e do cinema mundial. Depois de deixar a escola aos doze anos para ajudar o pai no negócio da construção, decidiu trabalhar numa mina de prata como forma de juntar dinheiro para pagar cursos de interpretação e tentar uma carreira como actor de teatro. Entre digressões mal sucedidas pelo Utah, pelo Montana e pelo Wyoming, Borzage teve de arranjar trabalhos variados como assistente de cozinheiro num campo de trabalhadores dos caminhos-de-ferro, na sopa dos pobres, e como jardineiro, conhecendo a fome e a pobreza e a bondade que se pode encontrar entre os que lutam pela sobrevivência, até se conseguir compor e ir para a Califórnia. Em Hollywood, começou por trabalhar como actor em pequenos westerns e comédias (os chamados two-reelers que fizeram a fama de Charles Chaplin ou de Laurel e Hardy, por exemplo), acabando por chegar à realização pelas voltas que o destino sempre deu quando se tratou dos pioneiros do cinema, que só o foram por mero acidente. Em 1915, escreve, interpreta e realiza The Pitch o' Chance, uma curta-metragem de 26 minutos. Em 1925, assina um contrato que durará sete anos com a Fox, realizando 7th Heaven, O Anjo da Rua, Lucky Star e The River nuns meros três anos, ainda os seus filmes mais celebrados e conhecidos – os três primeiros dos quais com a famosa dupla formada por Charles Farrell e Janet Gaynor. 
 
O mundo das obras de Borzage será um mundo de transfigurações e transmigrações, fusões místicas de amor e entendimentos e partilhas telepáticas, de personagens imensamente maiores que os seus corpos, em que o próprio estúdio de cinema se transforma a pinceladas de luz e à frente dos nossos olhos numa realidade total e transcendente. Em 7th Heaven, de 1927, o casal Farrell-Gaynor é separado pela Primeira Grande Guerra, mas encontra-se mesmo assim todos os dias às onze horas da manhã em espírito repetindo três palavras: “Chico – Diane – Paraíso”. Em Moonrise, de 1948, a personagem interpretada por Dane Clark, Danny Hawkins, é constantemente assombrada pelo destino do pai enforcado, facto que os seus conterrâneos nunca o deixam esquecer, temendo a cada passo e a cada premonição acabar como ele. Em I've Always Loved You, de 1946, as personagens de Philip Dorn e Catherine McLeod separavam-se depois de um concerto em que ele tentava abafar o piano dela com todos os instrumentos da sua orquestra como se os dois se batessem ou fizessem sexo, encontrando-se noutro momento transmigratório e telepático pela música que tocavam e como se se pudessem ouvir um ao outro, apesar de quilómetros os afastarem. Em Tempestade Mortal, de 1940, o mal nazi nascia numa taberna em confrontos palpáveis entre a acção e o silêncio, entre o medo e a razão – com certeza a ilustração mais verdadeira para com a experiência interior dos alemães que se recusavam a sucumbir a esse mal e tinham que pagar por isso. 
 
Foi precisamente com Tempestade Mortal que Frank Borzage terminou o que se pode considerar uma trilogia, começada com Little Man, What Now?, de 1934, e continuada com Three Comrades, de 1938. Pouco depois de Adolf Hitler ter sido nomeado chanceler na Alemanha por Paul von Hindenburg (e Tempestade Mortal lida frontalmente com as consequências imediatas dessa nomeação), Borzage foi o primeiro a virar-se para o velho continente, sob a égide de Hans Fallada (autor de Kleiner Mann, was nun?, base para o filme de '34) ou Erich Maria Remarque (autor de Drei Kameraden, base para o filme de '38), cronistas exemplares da Alemanha da República de Weimar e da que tragicamente lhe seguiu, para descrever as batalhas internas e externas de seres humanos assolados primeiro pela pobreza e pela fome e depois pelas perseguições políticas, religiosas e raciais do Terceiro Reich, não sucumbindo (nem na morte, porque afinal é de Borzage que estamos a falar) apenas por uma fé milagrosa e tocante no amor, na amizade e na bondade dos seus semelhantes. E não é só a Alemanha que aproxima estes filmes, já que são todos interpretados por Margaret Sullavan, diva silenciosa desses anos de divas tão ruidosas ("se pertence à família dos grandes sopranos líricos (...) distingue-se delas simultaneamente por uma fragilidade mais secreta e um erotismo mais exposto", escreveu sobre ela João Bénard da Costa) e que ainda trabalhou com Borzage em The Shining Hour, fabuloso filme em que a sua personagem se vai revelando aos poucos o centro de tudo e de todos, iluminando as restantes, bem como as suas relações, só com a força dos seus sentimentos. 
 
Não deixa de impressionar como Borzage arranja forma de contar, nesses três filmes, as histórias que sempre contou, de descrever os arcos sentimentais que sempre descreveu, revirando o mundo do avesso para encontrar esses seres frágeis que "torna grandes pelo amor e pela adversidade" (como diz uma das legendas de O Anjo da Rua, um dos seus filmes mais famosos dos anos da Fox), sob a luz da sua bondade e da sua fé inabalável no ser humano. Não deixa de impressionar, também, como Borzage utiliza o estúdio para descrever a realidade, o que parece uma contradição em termos mas que em Borzage se torna a forma privilegiada de ilustrar o mundo interior das suas personagens, como o prova o mágico e misterioso final da Tempestade Mortal, em que um cenário é iluminado e escurecido para tornar palpável a transformação dentro dum homem que tinha sido seduzido pelas retóricas do nacionalismo. Quando saímos da casa, a sua culpa inflamada pela memória de tempos mais simples e pelo papel que teve na morte daqueles que amava transforma-se numa plataforma para o outro mundo, para o desconhecido. Voltamos às transfigurações e às transmigrações, como no final dos Três Camaradas, que talvez nos diga que se a lembrança dos mortos é condição para estes não morrerem, é condição maior para os vivos conseguirem (ou suportarem) viver. Em Liliom, de 1930, Charles Farrell descreve a Rose Hobart o comboio que só ele e nós vemos a atravessar o cenário para o levar a prestar contas ao Criador e voltar para se redimir dos seus pecados da forma mais insólita e inesperada possível. O coração sabe o que quer e pode ver verdades e amores profundos escondidos em acções aparentemente mal-intencionadas e egoístas. Em Borzage, todos têm redenção. 

Moonrise, último filme antes dos grandes interregnos dos anos 50 (apenas duas longas-metragens e três episódios de meia hora rodados por Borzage para a série “Screen Directors Playhouse”, quando antes não falhava a marca de um filme por ano – dos tempos idos do cinema mudo até 1948, ano de estreia de Moonrise), foi filmado inteiramente em estúdio na Republic Pictures, usando mais uma vez do máximo artifício para imprimir a máxima realidade. Se todos os filmes de Borzage são povoados de heróis que sofrem as maiores reveses numa busca incessável por uma luz redentora, ilustrando sempre esse percurso, Moonrise talvez seja (com 7th Heaven e O Anjo da Rua) a apoteose dessa ilustração, dos bosques nocturnos, sinistros e cerrados do início do filme à luz final na clareira de todas as resoluções. Citado no livro de Hervé Dumont sobre o cineasta (Frank Borzage: The Life and Films of a Hollywood Romantic), um dos seus colaboradores, Joseph Ruttenberg, admite que "embora nos filmes dele nunca pareça, Borzage trabalhava imenso no aspecto técnico; delineava os seus planos e a sua iluminação com imenso cuidado, e era muito prestável para todos os técnicos, preparando tudo de antemão." 

7th Heaven foi rodado no cenário de Aurora, de F.W. Murnau, também com Janet Gaynor. Os filmes eram para ser rodados mais ou menos na mesma altura, mas a Fox interrompeu todas as outras rodagens para os seus realizadores estudarem os métodos do cineasta alemão recentemente trazido para a América. Borzage esteve lá e prestou muita atenção aos movimentos de câmara, às construções de cenários com camadas múltiplas, a utilização de miniaturas e falsas perspectivas, passando depois dois meses em Paris com o irmão e trazendo centenas de desenhos e fotografias da sua viagem para ajudar a modelar o seu cenário. “Para o Charlie [Farrell] e para mim, [os cenários eram] um lar mais até do que a nossa casa,” disse Janet Gaynor a Kevin Brownlow em 1976. “Mal podíamos esperar por estar lá às nove horas. E saíamos a que altura fosse – sabe, trabalhava-se até o realizador nos dispensar. Não havia horas. Ora, para mim, eu simplesmente ia para casa e ia para a cama, estava tremendamente cansada, mas adorava aquilo e mal podia esperar por voltar na manhã seguinte... O chefe do estúdio [Winfield Sheehan] disse que se se conseguisse o intelecto de Murnau e o coração do Frank, ter-se-ia o realizador perfeito.”[1]
 
Sempre se disse que Borzage era o cineasta do amor. Mas como filmou ele o amor? Sabe-se há muito tempo que o cinema não é uma transposição literal das palavras que estão escritas num argumento, que as suas páginas não podem nem sequer dar uma ideia, por mais pequena que seja, do que será o resultado final. Porque se dessem, não valia a pena fazer os filmes. E por isso os grandes cineastas se aventuraram em pequenas e grandes descobertas durante a rodagem, às vezes com grandes custos para as suas carreiras. Por uma luz diferente, nunca filmada, nunca tentada, nunca criada, nunca descoberta. É trabalho custoso mas necessário para fazer ressaltar o que se acredita ser a verdade da cena, para diluir a técnica e o talento em emoção. Além de deter a chave de tudo isto, Borzage era também o mais humano dos profissionais, uma excepção notável num meio tão competitivo e sem tréguas como o do cinema. Um exemplo para qualquer aspirante a cineasta. Nas palavras de Hervé Dumont, "passeando pelo seu plateau, poder-se-ia pensar que Borzage nunca encontrou dificuldades. Raros são os que o viram zangar-se: quando estava enervado, saía e fumava um cachimbo lá fora. Arranjava sempre um momento para conversar com toda a gente e diz-se que tratava o ajudante do electricista com o mesmo respeito que o chefe do estúdio. Contrariamente a Preminger, não gritava nem apressava ninguém. Borzage dispensou a coreógrafa Albertina Rasch do plateau de I Take This Woman (1939) por ter gritado e praguejado. A sua calma proverbial era contagiosa, abundavam as piadas e o bom humor. Encorajava os jogos de cartas e truques de magia entre takes, e disse que retirava tanto prazer de filmar que queria que as pessoas partilhassem da sua alegria." Amor com amor se paga.

[1] in “Hollywood: A Celebration of the American Silent Film”, de Kevin Brownlow e David Gill, mini-série em treze episódios produzida pela Thames Television e difundida na ITV.
 


sexta-feira, 7 de julho de 2023

301ª, 302ª e 303ª sessões: dias 11, 13 e 14 de Julho às 21h30


Borzage, Ângelo e Honigmann, esta semana no cineclube. 

Na continuação das celebrações da sua tricentésima sessão, o Lucky Star – Cineclube de Braga vai exibir três filmes durante a próxima semana no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva: A Hora Suprema, de Frank Borzage, Morada de Eva Ângelo e O Olvido de Heddy Honigmann. 

A Hora Suprema será exibido na terça-feira às 21h30, estando marcadas as sessões de Morada e O Olvido para quinta e sexta-feira, respectivamente, à mesma hora. Estas últimas duas sessões contarão com a presença da realizadora Eva Ângelo, que para o seu filme Morada será acompanhada por Rosa Cabecinhas, professora e investigadora na Universidade do Minho. 

O filme de Borzage a exibir na terça-feira é protagonizado por Charles Farrell e Janet Gaynor, naquela que é a sua primeira colaboração. Farrell interpreta Chico, um rapaz que trabalha nos esgotos de Paris e sonha tornar-se um dia varredor de rua, e Gaynor interpreta Diane, uma rapariga que é obrigada a ganhar a vida como prostituta e é agredida pela irmã. 

Com o título original de 7th Heaven, a alcunha carinhosa por que é tratado o pequeno sótão de Chico ao longo do filme, A Hora Suprema foi nomeado para cinco Oscars na primeira edição dos Prémios da Academia, vencendo os de Melhor Argumento Adaptado, Melhor Realizador para Borzage, e Melhor Actriz para Janet Gaynor, também pelas interpretações em Aurora de Murnau e O Anjo da Rua do mesmo Frank Borzage. 

A exibir no dia 13 de Julho, Morada, de Eva Ângelo, é um documentário sobre um grupo de cineclubistas que partilham as suas histórias de espectadoras de cinema na cidade do Porto, associando-se actualmente para continuar a ver cinema e ter aulas de várias disciplinas num espaço que reclamaram à cidade. 

Eva Ângelo é realizadora, montadora e designer. Nasceu nas Caldas da Rainha em 1977 e dedica-se ao documentário desde 2005. Água, de 2010, foi exibido pelo cineclube de Braga o ano passado, a propósito dos Encontros da Imagem, também com a presença da realizadora. 

A sessão de dia 14, O Olvido, marca o regresso da realizadora Heddy Honigmann, falecida em maio do ano passado, à cidade onde nasceu: Lima, no Peru. Uma cidade esquecida em que os contrastes são grandes e a corrupção impera. 

As sessões do Lucky Star ocorrem às terças-feiras e, excepcionalmente este mês, na segunda quinta e sexta-feira, às 21h30. A entrada custa um euro para estudantes e utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Bons filmes!

quinta-feira, 6 de julho de 2023

Lucky Star (1929) de Frank Borzage



por António Cruz Mendes

Tal como um funâmbulo, o melodrama percorre um cabo lançado sobre um abismo. Pode vencê-lo e ser sublime ou despenhar-se e tornar-se ridículo. Borzage, em Lucky Star, ganha esse desafio. Em seu auxílio, vão estar Janet Gaynor e Charles Farrell. Vamos voltar a vê-los, neste ciclo que dedicamos a Borzage, em A Hora Suprema e O Anjo da Rua. Juntos, fizeram mais nove filmes e eram, à época, os “America’s favorite lovebirds”. 

Mas, pode um paraplégico, apenas movido pela força da sua vontade, levantar-se da sua cadeira de rodas e, depois de várias quedas e com a temporária ajuda de umas muletas, ser capaz de caminhar sobre a neve para resgatar a sua amada de um destino infeliz? Quem já viu A Palavra, de Carl Dreyer, sabe que, pelo menos no cinema, os milagres são possíveis. Toda a obra de arte contém um elemento retórico. Saber usar os recursos de que um meio artístico dispõe para convencer o público da sua verdade é o repto do artista. A magia de Borzage está em fazer-nos aceitar como possível, por ser tão desejada, a reunião de Tim e Mary, no preciso momento em que ela se prepara para partir com Wrenn, sacrificando a sua felicidade ao bem-estar da família. Como poderia terminar de outra forma esta história de amor banhada de ternura e casta sensualidade? 

A relação entre os dois começa pelas valentes palmadas com que ele a castiga por causa de uma pequena vigarice. Mais tarde, ela vingar-se-á desse castigo partindo à pedrada uma janela da sua casa. Mas, Tim, isolado e preso a uma cadeira de rodas, acolhe com simpatia aquela miúda selvagem, mas de bom coração. Afinal, não foi ela que lhe escreveu para a trincheira a desejar-lhe boa sorte e a oferecer-se para lhe tricotar umas meias? E ela descobre, nessa casa limpa e ordenada, e no sorriso amigável do seu anfitrião, um mundo que lhe era estranho. Ela pergunta-lhe: "o que aconteceu às suas pernas?”. “Nada”, é a resposta: “estou a poupá-las para uma ocasião especial”. E lava-lhe as mãos e oferece-lhe um lenço para que não volte a precisar de limpar o nariz na manga do vestido. Quando ela se vai embora, promete-lhe voltar amanhã e no dia seguinte e todos os dias. 

Tim entretém-se a “consertar coisas” e ambos, ele e Mary, têm algo que precisa de ser consertado. Mary, pequena e suja, está habituada a recorrer a expedientes pouco correctos para garantir a sua sobrevivência, e ele próprio regressou estropiado da guerra. Os dois começam por se aproximar por curiosidade, depois, por simpatia. Mais tarde, um sentimento mais forte começa a uni-los. O bracelete que Tim oferece a Mary parece-lhe “um grande anel de noivado”. Na cena em que Tim lhe lava a cabeça, descobrindo que, afinal, os seus cabelos são louros, franqueia-se um limiar. E, quando se prepara para lhe lavar as costas (“afinal, quantos anos tens?”), recua pedindo-lhe para o fazer ela própria no regato próximo da casa. 

Não resisto a transcrever, do belíssimo texto que João Bénard da Costa escreveu sobre Lucky Star, a parte em que ele se refere a esta passagem do filme, na sua opinião, a sua sequência mais genial: “Começa com um balde. Tim decidiu dar um banho a Mary e a limpar de vez a imagem e o corpo dela. E são ovos o que usa para essa ablução, que a transforma também de morena em loura. À medida que a espuma aumenta e que a vergonha e a aflição de Mary crescem, sela-se a relação física entre os dois, sublinhada pelo plano magistral em que vemos a quantidade de cascas de ovo partidas. Tim começa a descer no corpo de Mary, que se lhe oferece. Mas, a dada altura, a evidência do corpo de mulher sobrepõe-se à da criança que até então vira nela. Detém o gesto de a despir e manda-a, para a profundidade de campo, continuar o banho que já não é capaz de lhe dar. Borzage abre, de novo, todo o espaço, para nos dar a entrever um pouco do corpo nu de Mary e um pouco do olhar que Tim não resiste a lançar sobre ela. E, desse banho, Mary sai mulher”. 

A transfiguração de Mary está completa quando ela se veste em casa de Tim para ir ao baile que se vai realizar no salão dos bombeiros. Mas, aí reaparece Wrenn. Conhecemo-lo desde uma das primeiras cenas do filme, quando se confronta com Tim no alto de um poste eléctrico que têm de reparar. Mary é já o motivo dessa disputa. 

Wrenn é um rufia, arrogante e mentiroso. Na guerra, é ele que envia Tim para a missão que o deixará paralítico. Não podia ir ele próprio porque tinha de ir visitar “umas damas”. A melhor forma de conquistar uma mulher, confidencia a um soldado, é prometer-lhe casamento e “prometer não custa nada”. Antes disso, tinha mostrado a Tim uma carta de Mary semelhante àquela que ele recebera. Nessas breves cenas, onde, da guerra, só percebemos o clarão das explosões, podemos antecipar o drama que se vai seguir. 

Dois anos depois, Wrenn expulso do exército, pavoneia-se fardado na sua terra, onde seduziu uma rapariga. No baile, vai abandoná-la, enfeitiçado pela beleza de Mary. Repudiado por ela, passa a insinuar-se junto da sua mãe como alguém que, desposando-a, poderá tirar a família da miséria em que vive. A Sra. Tucker rende-se a essa esperança e o futuro de Mary parece estar decidido quando o milagre acontece e o amor triunfa. 

A história baseia-se num pequeno conto de Tristan Tupper, Três episódios da vida de Timothy Osborn, mas o argumento do filme altera-o significativamente. No conto, Tim, ferido na guerra, regressa a casa onde conhece uma rapariga rica e outra pobre, com quem acaba por casar. No filme, a rapariga rica desaparece e o final é completamente diferente. 

Se hoje podemos ver Lucky Star, isso deve-se a um acaso também, ele milagroso. O filme foi realizado na altura em que surgiram os primeiros filmes falados e, para poder acompanhar essa novidade, a produção encomendou, à pressa, uma versão com poucos diálogos e alguns efeitos sonoros para o mercado norte-americano. Parece ter tido pouco sucesso. No estrangeiro, foi distribuída uma versão muda. As duas foram consideradas perdidas até que uma cópia do filme mudo foi redescoberta, em 1990, nos arquivos do Museu do Cinema de Amesterdão, no meio de outros filmes antigos. A partir da versão holandesa e do roteiro original, foi possível reconstituir os intertítulos e o filme de Borzage “ressuscitou”. 

Quando o João Palhares e o José Oliveira fundaram este cineclube, decidiram baptizá-lo com o nome do filme de Borzage que hoje vamos ver. Das suas razões, caberá a eles falar. Mas, tendo em conta a simpatia de todos os que nos visitam e apoio dos nossos associados, parece-me que também o nosso cineclube nasceu sob a luz de uma estrela ditosa.




sexta-feira, 30 de junho de 2023

300 sessão: dia 4 de Julho (Terça-Feira), às 21h30


Lucky Star de Borzage é a 300ª sessão do cineclube

Na sua 300ª sessão, no dia 4 de Julho, o Lucky Star – Cineclube de Braga vai exibir o filme de Frank Borzage que lhe dá o nome, Lucky Star, no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva. 

Lucky Star foi um filme que esteve perdido durante muitas décadas, o que acabou por ser o destino de imensas obras do cinema mudo. No entanto, no final dos anos 80 encontrou-se uma cópia nos arquivos do Dutch Filmmuseum, em Amsterdão, procedendo-se ao seu restauro e lançamento nos anos seguintes.

No filme, Janet Gaynor interpreta Mary Tucker, a filha duma fazendeira viúva que chama a atenção de dois amigos, Timothy Osborn (interpretado por Charles Farrell) e Martin Wrenn. Nas vésperas da entrada dos Estados Unidos na Primeira Grande Guerra, ambos os amigos são chamados para a frente de batalha. Quando regressam, Osborn está confinado a uma cadeira de rodas.

Frank Borzage nasceu em Salt Lake City, no Utah, a 23 de Abril de 1894. Filho dum pedreiro natural duma área agora italiana do antigo Império Austríaco e duma empregada suíça duma fábrica de seda, chegou a Hollywood em 1912 e começou a trabalhar como actor, estreando-se na realização em 1915 com The Pitch of Chance.

Nos anos vinte, Borzage realizou vinte e seis filmes, ganhando o primeiro Oscar de Melhor Realizador com A Hora Suprema, o primeiro filme a reunir o par formado por Janet Gaynor e Charles Farrell, que trabalhariam juntos em mais onze filmes até meados dos anos trinta, duas vezes das quais com Frank Borzage, em O Anjo da Rua e Lucky Star.

Grande admirador do filme, João Bénard da Costa escreveu que “nenhum filme como Lucky Star existe talvez tão desarmantemente simples. Nenhum filme, como Lucky Star, existe talvez tão desarmantemente complexo. Só os grandes sentimentais são capazes de ser tão perversos e só o melodrama pode ser tão fundamentalmente transgressor.” 

Terminando a sua filha da Cinemateca, concluiu que “nunca ouvi uma história de almas tão bela como esta e nunca vi uma história de corpos tão poderosa e tão vulnerável como esta. E o milagre daqueles corpos - corpo de Janet Gaynor, corpo de Charles Farrell - é igual ao milagre daquelas almas. Só a carne ressuscita.”

As sessões do Lucky Star ocorrem às terças-feiras e, excepcionalmente este mês, na segunda quinta e sexta-feira, às 21h30. A entrada custa um euro para estudantes e utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Até Terça!

Em Julho, no Lucky Star:




quinta-feira, 29 de junho de 2023

Au Hasard Balthazar (1966) de Robert Bresson



por Alexandra Barros

Encontrado recorrentemente em listas de “melhores filmes de sempre”, Au hasard Balthazar acompanha um burro desde o baptismo, com o sal da sabedoria, até à morte. Atirado, por sucessivas casualidades, de dono em dono, (quase) tudo o que a vida reserva a Balthazar são trabalhos árduos e sofrimento. Por causa dos muitos símbolos cristãos presentes no filme, nele podemos ver uma representação da passagem de Cristo pela Terra, mas as suas imagens enigmáticas evocam diversos outros significados mais vulgares (no sentido de não divinos) e o filme pode ler-se – também – como uma alegoria da condição humana. 

Marie “apaixona”-se por Balthazar e, durante a infância, divide o seu afecto entre o burrinho e o seu querido Jacques. A vida é doce para todos, mas a morte de uma irmã de Jacques altera inesperadamente o rumo das suas existências. Balthazar fica sujeito aos grilhões dos senhores que lhe vão calhando em sorte. Marie, amarrada ao domínio de um pai ultraprotector e ao desgosto amoroso que por causa dele vai sofrer, tentará libertar-se, mas vai substituir estas amarras por outras, sem nunca conseguir realmente escapar. 

Quando Marie é abandonada, sem explicação, por Jacques, devido a desavenças entre os respectivos pais, a sua ternura e essência amorosa passam a ser totalmente dirigidas para Balthazar. Acontece-lhe então a força do desejo de Gérard. Unidos pelo impulso sexual, que Marie confunde com o amor, Gérard e Marie têm uma relação física, cheia de indeterminações e duplicidades. Marie parece submeter-se a Gérard, mas essa submissão é uma via (que se vem a revelar sacra) para a auto- afirmação, uma forma (ilusória) de se evadir da prisão atrofiante de um pai que pretende amá-la, mas é indiferente aos seus sentimentos. A liberdade ansiada lança Marie numa sucessão atribulada de acontecimentos, que aparentemente espelham o martírio de Balthazar. Porém, a mortificação de Marie tem origem, mais do que na crueldade dos homens, nos arreios que lhes tolhem e determinam os movimentos: o orgulho e inflexibilidade do pai, a cobardia e inconsequência de Jacques, a procura de prazeres imediatos e a vida delinquente e sem sentido de Gérard, a avareza e egoísmo de um comerciante rico. 

A ambiguidade de Marie em relação a Gérard, fica expressa logo na primeira tentativa de aproximação. Na cena nocturna em que Gérard espia Marie no seu jardim, esta, sabendo-se observada, “oferece” a mão, pousando-a ao alcance de Gérard, no banco em que está sentada. Retira-a, porém, bruscamente quando Gérard está prestes a tocá-la. 

Nesta, como em diversas outras cenas, Bresson filma apenas as mãos e os seus gestos, sugerindo o que se passa no interior das personagens, sem nunca o explicitar. Para Bresson, o cinema não é a reprodução ou narração de uma história, nem consiste em filmar actores a interpretá-la. Numa entrevista realizada a propósito deste filme[1], Bresson afirma que o poder do cinema está no carácter simbólico das imagens. Para si, o cinema como arte (não o cinema-entretenimento) é feito da justaposição de imagens, da justaposição de imagens e sons e da justaposição de sons com outros sons. É através deste processo que há criação porque através dele as imagens transformam-se. "É necessário que uma imagem se transforme em contacto com outras imagens, como uma cor em contacto com outras cores. Um azul não é o mesmo azul ao lado de um verde, de um amarelo ou de um vermelho. Não há arte sem transformação".[2] Para o processo resultar, cada imagem tem que ter uma certa neutralidade, não pode ter demasiado significado dramático. Esse significado deve emergir da interacção com as outras imagens. Entre o que é mostrado e o que não é mostrado surge a complexidade, a riqueza artística. Daí Bresson recusar o sentimentalismo encenado e a teatralidade, e preferir trabalhar com actores não profissionais. Daí, também, as personagens serem, muitas vezes, mostradas em enquadramentos onde cabem o tronco ou as pernas ou as mãos, mas não o rosto. Neste como noutros filmes, é repetidamente pelas mãos que as personagens “falam”. Além das mãos, e da linguagem corporal, Bresson recorre frequentemente a portas e janelas como elementos simbólicos. Estas estruturas têm uma intrigante e quase surreal presença no encontro final (que Bresson não mostra) entre Marie e o bando de Gérard, quando estes infligem a Marie o seu mais duro golpe. Também Balthazar está prestes a sofrer, uma última vez, às mãos do mesmo bando. 

As metáforas e alusões abundam nestas cenas finais. Balthazar é obrigado a transportar pesados alforges carregados de ouro e perfume, as ofertas dos Reis Magos por ocasião do nascimento de Jesus. Atingido por uma bala, a ferida circular por onde escorre o seu sangue, assemelha-se às Chagas de Cristo. Ferido, Balthazar deixa a protecção da cerrada floresta alpina e desce para um vale a céu aberto onde pasta um rebanho. Rodeado por montanhas ao longe e ovelhas ao perto, deita-se, por fim. Estas belíssimas imagens são mais luminosas que quaisquer outras no filme: o sol está radioso, a paisagem natural é encantadora, no ar ressoam apenas os indolentes sinos das ovelhas. De Marie nada mais se sabe, além de que partiu sem despedidas. 

J.L.Godard, com um invejável poder de síntese, descreveu assim o filme: “o mundo numa hora e meia”.




sexta-feira, 23 de junho de 2023

299ª sessão: dia 27 de Junho (Terça-Feira), às 21h30


Obra-prima de Robert Bresson na BLCS 
 
O ciclo “Da Revolução à Queda de Vichy - Clássicos do Cinema francês”, promovido pelo Lucky Star - Cineclube de Braga em parceria com a Alliance Française, termina na próxima terça-feira às 21h30 no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva com a exibição de um dos mais célebres filmes de Robert Bresson, Peregrinação Exemplar

Bresson nasceu a 25 de Setembro de 1901, na comuna de Bromont-Lamothe, departamento de Puy-de-Dôme, região de Auvergne-Rhône-Alpes, no centro de França. Formou-se no Lycée Lakanal, perto de Paris, virando-se para a pintura e para a fotografia depois da formatura. Realizou a primeira curta-metragem, Les affaires publiques, em 1934. 
 
Durante a Segunda Guerra Mundial, foi prisioneiro de guerra por um ano, uma experiência que transpôs para a sua quarta longa-metragem, Fugiu um Condenado à Morte, de 1956. Em 1959, realiza aquele que é provavelmente o seu filme mais conhecido, Pickpocket, sobre um carteirista vigiado pela polícia que se apaixona por uma vizinha. 
 
O seu último filme, L’argent, sobre o destino duma nota falsa de quinhentos francos à medida que passa pela mão de vários proprietários, e baseado numa história de Lev Tolstoi, estreou-se em 1983, arrecadando o prémio de Melhor Realizador no Festival de Cannes e na NSFC, a Sociedade Nacional de Críticos de Cinema fundada em 1966 por Hollis Alpert e com sede em Nova Iorque. 
 
Au Hasard Balthazar, conhecido entre nós pelo título de “Peregrinação Exemplar”, foi lançado a 15 de Maio de 1966 no Festival de Cannes, e centra-se sobre a vida dum burro chamado Balthazar e a violência de que é alvo por parte dos vários donos que tem, representando cada um segundo o realizador francês um pecado capital. 
 
Escrito e realizado por Bresson, o filme é interpretado principalmente por não-actores, destacando-se nele a estreante Anne Wiazemsky, que trabalharia depois com Jean-Luc Godard em La Chinoise, Week-end, One + One e Tout va bien, Pier Paolo Pasolini em Teorema e Pocilga, e Philippe Garrel em L’enfant secret de 1979. 
 
Segundo João Bénard da Costa, que foi um dos grandes admiradores deste filme e do seu realizador, Au Hasard Balthazar é “um filme ímpar, não só na filmografia do autor, como em qualquer obra do cinema sua contemporânea.” 
 
As sessões do Lucky Star - Cineclube de Braga ocorrem sempre às terças-feiras, às 21h30, e a entrada custa um euro para estudantes e utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os associados do cineclube têm entrada livre.

Até Terça-Feira!

quinta-feira, 22 de junho de 2023

Les diaboliques (1955) de Henri-Georges Clouzot



por Joaquim Simões

Diz-se que o Hitchcock falhou por apenas algumas horas em comprar a tempo os direitos do livro Celle qui n’était plus, e que, se a História permitisse divergências, poderia ter sido o mestre do suspense a realizar mais um dos melhores filmes do género. Mas acontece que foi Clouzot que, após ter lido o romance inteiro numa noite, decidiu imediatamente adaptá-lo, comprando os direitos na manhã seguinte e cancelando assim esse outro hipotético filme que, conquanto possamos desejar ter coexistido com o atual, dificilmente desejaríamos que o substituísse: Clouzot não fez menos do que criar um dos mais inesquecíveis clássicos de mistério e subtil terror. 

O filme teve um período de adaptação de 18 meses, um processo de co-escrita do realizador com o seu irmão, Jean Clouzot (sob o pseudónimo Jérome Géronimi) que transformou vários aspetos do romance, incluindo uma transposição de parte da ação para Niort, lugar de nascimento do realizador, e uma troca de géneros do casal (no filme, Christina e Michel Delassalle) que não só permitiu eliminar um caso lésbico e evitar complicações de censura, mas também dar maior relevo ao papel de Christina, interpretada pela mulher do realizador, Véra Clouzot. Para que a sua mulher tivesse ainda mais relevo no filme, Clouzot esforçava-se por iluminá-la propositadamente, mantendo a Simone Signoret na sombra, escreveu o ator Paul Meurisse nas suas memórias. 

A história é ao mesmo tempo um drama psicológico da descida para os infernos do remorso criminoso e um mistério policial. No entanto é o primeiro aspeto que dá ao filme a sua força: durante e depois do crime cometido não podemos deixar de sentir a tensão que os objetos e as situações mundanas exercem sobre a consciência da personagem de Christina. Esta tensão é manejada soberbamente por Clouzot, e embora seja a curiosidade e a procura de respostas que conduzem o filme, são o sofrimento e a culpa que lhe conferem o tom e criam o ambiente sobrenatural que nos permite, dentro de um universo realista, acreditar no fantástico. Neste aspeto o filme relaciona-se novamente com Hitchcock, e não é difícil de encontrar semelhanças com o seu estilo e especialmente no que toca à presença invisível do sobrenatural. Mas para isso há também outra razão: é que o mestre aprendeu a lição e segurou a tempo os direitos do próximo romance dos mesmos autores; já com a influência do filme soberbo que Clouzot legou ao mundo, fez outro chamado Vertigo.



sexta-feira, 16 de junho de 2023

298ª sessão: dia 20 de Junho (Terça-Feira), às 21h30


Lucky Star exibe filme de Henri-Georges Clouzot 

As Diabólicas, de Henri-Georges Clouzot, é a próxima sessão do ciclo “Da Revolução à Queda de Vichy - Clássicos do Cinema francês”, promovido pelo Lucky Star - Cineclube de Braga em parceria com a Alliance Française, na próxima Terça-Feira às 21h30 na Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva. 

O filme é uma adaptação do romance Celle qui n’était plus, da dupla Boileau-Narcejac, formada pelos escritores franceses Pierre Louis Boileau e Pierre Ayraud, que adoptou o pseudónimo de Thomas Narcejac. A dupla é também responsável pelo policial D’entre les morts, que daria origem a Vertigo de Alfred Hitchcock, e foi publicado entre nós pela editora Europa-América em 1959 sob o título de “A Mulher que Viveu Duas Vezes”. 

As Diabólicas, de 1955, conta com as interpretações de Simone Signoret e de Véra Clouzot, esposa do cineasta. Foi um grande sucesso em França, onde conseguiu um total de 3,674, 380 espectadores, vencendo ainda o Prémio Louis Delluc para Melhor Filme, e o de Melhor Filme Estrangeiro dos New York Film Critics Circle Awards e dos Edgar Allan Poe Awards. 

Ambientado num colégio interno em Saint-Cloud, Hauts-de-Seine, nos subúrbios de Paris, o filme descreve a aliança que duas mulheres (as “diabólicas” do título), Christina Delassalle e Nicole Horner, formam para assassinar o marido e amante delas, que antagoniza os alunos do colégio e maltrata as suas companheiras. 

Henri-Georges Clouzot nasceu em Niort a 20 de Novembro de 1907, ingressando em Ciências Políticas depois de não conseguir admissão na Escola Naval, devido a uma miopia no olho esquerdo. No início dos anos 30 vai para a Alemanha, e além de se tornar assistente de Anatole Litvak, supervisiona as versões francesas de filmes de Joe May e Karl Hartl, escrevendo ainda guiões para Jacques de Baroncelli, Carmine Gallone e Victor Tourjanski. 

Autor dos filmes L’assassin habite… au 21, O Corvo, Quai des Orfèvres e O Salário do Medo, Clouzot inicia em 1964 a produção dum filme que, segundo ele, iria revolucionar o cinema, “L’enfer”. Tem um enfarte durante a rodagem e o filme nunca será terminado. Ainda na década de 60, trabalha em televisão e realiza a sua última longa-metragem, La prisonnière, em 1968. Morrerá em Janeiro de 1977 em Paris. 

As sessões do Lucky Star - Cineclube de Braga ocorrem sempre às terças, às 21h30, e a entrada custa um euro para estudantes e utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os associados do cineclube têm entrada livre.

Até Terça!

quarta-feira, 14 de junho de 2023

Les enfants du paradis (1945) de Marcel Carné



por João Palhares

9 de Agosto de 1943, em Nice, nos estúdios da Victorine. Marcel Albert Carné, parisiense e filho de marceneiro, inicia a rodagem daquela que será a sua sétima longa-metragem, Les enfants du Paradis. O interesse e o tema surgem-lhe quando está com Jacques Prévert, o seu argumentista, e encontram por acaso Jean-Louis Barrault na Promenade des Anglais e este lhes começa a contar várias histórias sobre as suas experiências no mundo do teatro e sobre o lendário Baptiste Deburau. O episódio que os convenceu, apesar de não estar no filme, foi o do julgamento de Debureau pelo homicídio às claras dum bêbado que lhe insultou a namorada da altura no meio da rua. Bateu-lhe com uma bengala na cabeça e o golpe foi demasiado forte. Foi metade de Paris assistir ao julgamento, principalmente para conhecer a voz do mais famoso dos mimos. 
 
Prévert e Carné não acharam que esse episódio desse um filme, porque se usassem Barrault como actor (como acabaram por usar, e para encarnar mesmo a personagem de Baptiste, mas sem esse episódio na acção do filme) a sua voz não seria uma novidade e se apostassem num desconhecido ninguém estaria curioso em saber como era a voz dele. E Prévert não viu ali nada, de todo, mas Carné pensou que a personagem e a época podiam dar uma bela história: Baptiste Deburau, o rei da pantomima no século XVIII, o modelo e o ídolo dos miúdos da rua, Frédérick Lemaître, um dos actores preferidos de Victor Hugo, que lhe confiou vários papéis nas suas peças e lhe chamou mesmo “o actor supremo”, e o poeta assassino e guilhotinado Pierre-François Lacenaire. Todos apaixonados pela mesma mulher, uma “Garance” inventada mas que é o espelho das paixões e dos sonhos deles, da sua época e do seu ambiente entre idas e vindas pelo famoso Boulevard du Temple, “a alameda do crime” que os viu nascer, amar e morrer. 
 
O enorme cenário do Boulevard du Temple, construído no mesmo estúdio em que se tinha erguido o castelo de Les Visiteurs du Soir, o filme anterior de Carné, tinha 150 metros de comprimento e mais de cinquenta fachadas de prédios com uma altura de quinze metros, e era capaz de abarcar perto de 2000 figurantes. Foi desenhado por Alexandre Trauner, que teve de trabalhar clandestinamente a partir duma cabana isolada nos arredores de Nice com Léon Barsacq a servir de testa-de-ferro para enganar o regime de Vichy, que interditava judeus de trabalhar em produções de cinema. Havia membros da Resistência a trabalhar no filme, também, e pessoas que se tentavam inscrever como figurantes apenas para poder comer alguma coisa durante a rodagem. Os agentes da Gestapo visitavam a rodagem à paisana e com artimanhas e histórias elaboradíssimas, tentando e uma vez conseguindo levar membros da Resistência consigo. Entre avanços e recuos pela França livre e pela França ocupada, também ditadas pelo avanço das tropas alemãs, Robert Le Vigan, actor que já tinha trabalhado com Carné no seu primeiro filme, Jenny, e em Le quai des brumes, acabou substituído por Pierre Renoir, por ter fugido para Sigmaringen depois de colaborar com o regime nazi e ter abertamente insultado os judeus em programas de rádio. 
 
A rodagem foi interrompida em Setembro de 1943 por circunstâncias de guerra, no caso uma ofensiva dos Aliados perto de Nice, e a produção teve de levar todas as bobines filmadas e todo o equipamento e sediar-se em Paris, deixando os cenários como estavam na zona ocupada. Depois duma troca muito complicada de produtores, retomaram os trabalhos a 9 de Novembro nos estúdios da Pathé onde se construiu o cenário do Grand Théâtre, com capacidade para 600 figurantes. Quando voltaram a Nice no início do ano seguinte para terminar a rodagem, ele tinha sido totalmente destruído por um furacão que tinha assolado a costa sul de França, o que significou um atraso considerável e um custo acrescido de quase um milhão de francos para o reconstruir. O orçamento total do filme acabou nos 58 milhões de francos, quando na altura o custo médio duma produção de cinema em França rondava os 15 milhões. O filme terminava e a guerra estava para terminar, com o desembarque da Normandia, portanto Marcel Carné tinha agora apenas um desejo: “fazer arrastar o mais possível os trabalhos de finalização do filme, para que ele fosse apresentado como o primeiro da paz finalmente recuperada.”[1]
 
A produção de Les enfants du Paradis foi o canto de cisne do grande momento de glória da indústria de cinema francesa, arrasada pela segunda guerra mundial e por Hollywood a partir dos anos quarenta. Os seus grandes vultos foram, além de Carné, Jean Renoir, Marcel Pagnol, Jean Grémillon, Julien Duvivier, René Clair, Claude Autant-Lara, ou Jean Delannoy. Nos anos cinquenta, François Truffaut escreveu um texto fundador nos Cahiers du Cinéma, «Une certaine tendence du cinéma français», em que fez tábua rasa de praticamente toda a história do cinema do seu país mantendo Jean Renoir e Jean Vigo como únicos mestres duma nova geração de cineastas, sendo bastante injusto para com Carné nesse texto e nos anos seguintes, e tornando aceitável e de bom tom para outros desprezar a sua obra e dos colegas da sua geração. Algum tempo mais tarde, no entanto, disse à frente de Marcel Carné e duma audiência de quatrocentas pessoas que “eu fiz vinte e três filmes, e abdicava deles todos para ter feito Les enfants du Paradis.” 
 
No seu texto muito elogioso no «Dictionnaire du Cinéma - Les films» sobre esta obra, Jacques Lourcelles acaba a escrever que ele está “tão afastado de nós como um retábulo da Idade Média”. Face a um filme com quase oitenta anos, que descreve acontecimentos com quase duzentos anos, feito numa altura em que não havia televisão nem digital e o cinema ocupava palcos de guerra, salvava vidas, destruía outras, movia multidões e dependia dum aparato técnico que já nem conseguimos emular numa projecção, ficamos totalmente desarmados e apenas com o assombro disto ter sido possível. Há filmes que estão para lá da crítica e para lá da imagem, e contêm nos seus silêncios e nas suas margens a ideia e a concepção dum outro mundo, e foram agentes de verdadeira mudança nesse mundo. Les enfants du paradis é um deles.

[1] Quase toda a informação presente neste texto foi retirada dum documento precioso escrito pelo próprio realizador sobre a rodagem do seu filme, intitulado «Ce que fut la réalisation des Enfants du Paradis» e datado de 1980. Está disponível para leitura no site marcel-carne.com.