por Alexandra Barros
Holy Motors acompanha Monsieur Oscar desde a sua saída de casa para o trabalho, de manhã,
até ao seu regresso a casa, à noite, no fim de uma lista de actuações agendadas para o dia. Mas
nem estas casas são a mesma, nem a família da qual se despede de manhã é a mesma para a
qual regressa à noite. M. Oscar é actor de uma estranha forma de arte performativa. Percorre
Paris, numa limusine guiada por Céline (sua motorista-secretária-amiga), de encontro a diversas
situações, onde encarna personagens detalhadamente descritas nas instruções que recebe
diariamente. Transforma-se, ora no “camarim” do interior da limusine, ora não se sabe onde: numa
mendiga corcunda, num louco que habita os subterrâneos da cidade, num assassino e num
assassinado, num actor de motion capture[1] , no pai de uma (filha real?) adolescente, num vingador
que confronta uma das outras personagens que o próprio Oscar interpretou antes, num
acordeonista, num moribundo, ... Cada uma destas actuações parece ser parte de uma nunca
explicada história. Nalgumas situações pensamos estar perante a vida autêntica de M. Oscar, mas
logo de seguida somos deixados na dúvida. Tudo é ambíguo. Nunca percebemos o que realmente
se passa. Quem o contrata? Para que servem as actuações? Quem é a audiência e como é que
assiste às actuações? Porque é que M. Oscar desempenha estes papéis? Apesar do visível
cansaço que o “supervisor” lhe aponta, M. Oscar diz continuar a actuar “pela beleza do gesto”. Mas
a beleza de tantos e diversos gestos tem o seu preço. Que gestos são afinal os seus? Num
encontro fortuito (ou mais uma actuação?) com Eva Grace, uma colega de profissão que há muito
não via (e com quem terá tido uma relação amorosa), ela canta as angústias existenciais e
questões identitárias que os afligem.
“Quem éramos nós?Quem éramos quando éramos quem éramos, naquela época?Em que nos teríamos tornado se tivéssemos agido de outra forma, naquela época?Não existem novos começos.Alguns morrem, alguns continuam a viver”.
Terminado o dia de trabalho, e após estacionar a limusine entre muitas outras na garagem Holy
Motors, Céline retira a peruca e coloca uma máscara branca, sem expressão, para regressar a
casa. As limusines, finalmente sós, conversam entre si: “Shsss! Estou a tentar dormir. / Não
tardarás a dormir, quando estiveres destinada à sucata. / Estamos a tornar-nos inadequadas. / Os
homens já não querem máquinas visíveis.”
Nas palavras de Leos Carax: “As limusines estão em total sintonia com os nossos tempos – ao
mesmo tempo vistosas e saloias (…). Comovem-me. Estão ultrapassadas, como velhos brinquedos
futuristas do passado. Marcam o fim de uma era, a era das máquinas grandes e visíveis.”, “Holy
Motors é uma espécie de ficção científica, nas quais humanos e máquinas estão à beira da
extinção, escravos de um mundo cada vez mais virtual. Um mundo do qual as máquinas visíveis, as
experiências reais e as ações estão gradualmente a desaparecer“, “Na cena em que o Denis
Lavant está coberto por sensores brancos ele é um trabalhador especializado em motion capture.
Não muito distante de Chaplin em Tempos Modernos – exceptuando o facto de que o homem já
não está preso nas engrenagens da máquina mas nas malhas de uma rede invisível.”[2]
Estranho e enigmático, Holy Motors, como toda a grande arte, presta-se a múltiplas interpretações.
Carax novamente: “O filme é simples se se aceitar que não se sabe para onde se vai.”[3] Mais ou
menos como a morte, o envelhecimento, a vida.
[1] Processo em que câmeras captam movimentos dos atores, que serão depois processados digitalmente. É muito utilizado em filmes de animação, onde veio substituir as técnicas tradicionais.
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