por João Palhares
A necessidade de duplos e de acrobacias perigosas em cinema impôs-se desde muito cedo. Com a ligação que se estabeleceu com circos ambulantes ou companhias de vaudeville que viajavam de terra em terra, com o incentivo para os figurantes em ganhar mais uns trocos ao fim do mês por uma queda ou um arremesso mais delicado, foi-se tornando aos poucos uma profissão. Equilibrismos perigosos a dezenas de metros de altitude, entradas e saídas de comboios em andamento, saltos de janelas para sair a cavalgar na montada, projecções e desabamentos provocados por explosões, salvamentos aéreos e marítimos, lutas mais agressivas ou domas de animais, situações-limite em tornados, incêndios, tremores de terra, dilúvios, tempestades, erupções, guerras, debandadas ou acidentes com os mais variados veículos, eis algumas das coisas que um bom duplo tinha de fazer. Sem reclamações de autoria e sem aclamação pública imediatas. Porque, para quem paga o bilhete, são as estrelas que fazem tudo e tem de se manter essa crença.
Uma das acrobacias mais celebradas da história do cinema é a do deslizamento de Yakima Canutt por baixo duma diligência e de três parelhas de cavalos durante uma perseguição em Stagecoach, de John Ford. Embora o feito pareça impossível à primeira vista, colocaram-se barras de metal entre as três parelhas para haver um espaço livre de manobra para o duplo. Os cavalos tiveram de ir bem rápido para se manterem em linha recta, o corpo do duplo teve de ir hirto com os ombros bem para baixo ou o eixo dianteiro da diligência ceifava-o. A manobra é uma variação doutro trabalho de Canutt em Riders of the Dawn, de Robert N. Bradbury, em que ele parece arriscar ainda mais e faz uma cambalhota invertida entre os cavalos e a diligência para conseguir amarrar-se à traseira do veículo e entrar. No entanto, esta sequência tem um corte na montagem, certamente para a segurança de Canutt. Conta-se que depois da filmagem do plano perigosíssimo de Stagecoach, Canutt foi ter com John Ford a correr para lhe perguntar se tinham apanhado tudo, e Ford respondeu-lhe que “mesmo que não se tenha apanhado, eu não volto a filmar isto.”[1]
"Eu criei mais duplos do que qualquer estúdio em Los Angeles,” disse Buster Keaton a Kevin Brownlow em 1964[2]. "Peguei nas pessoas mais incríveis e fiz delas duplos.”
"Sabe a cena em Sherlock Jr. quando eu chamo um polícia de motorizada, salto para cima dos guiadores dele e batemos numa lomba na rua, e eu perco o polícia? Bom, o polícia que caía era eu. Peguei no Ernie Orsatti, um assistente dos aderecistas, que era do meu tamanho —pus-lhe as minhas roupas e vesti as roupas do polícia.
"Depois tive que fazer a cena em que vou montado nos guiadores. Foi um trabalho dos diabos. Primeiro, não tenho travões—só tem travões de pedal, está a ver. Bem, consegui umas belas quedas, verdadeiras maravilhas. Parei mesmo em cima de um automóvel, uma vez. Atingi-o em cheio. Acabei com o traseiro virado para o pára-brisas, com os pés esticados para cima!"
Serve esta grande introdução para demonstrar que há uma diferença nestas coisas e que a sabemos distinguir. Arriscar o pelo e o corpo por um plano é algo que fica impresso nas imagens que vemos. A sensação provocada por uma explosão real não é a mesma que provoca uma criada digitalmente. Mesmo com uma miríade de outros efeitos e acertos na pós-produção, mesmo com a paleta cromática do laranja e azul que pareceu invadir os ecrãs no início deste século. Mad Max: Estrada da Fúria é tudo isto sob uma ambiência de fim do mundo, sempre com a esperança de um novo início nas margens. Assente sobre o artesanato das equipas de duplos, condutores, cenógrafos, figurinistas, maquilhadores, artistas prostéticos, operadores de câmara e de som (o que nem sempre é suficiente), o filme oferece-nos ainda o prazer de assistir a trocas de gestos e olhares como catalisadores de acções e decisões; tempos mortos para chorar ajoelhada nas dunas, para pensar, para contemplar, para resolver pequenos problemas e para testemunhar os outros; ver o centro gravitacional em que se torna a personagem de Charlize Theron, roubando o filme até ao personagem que lhe dá o nome desde os anos 70. Vislumbrar isto num filme de enorme orçamento e parte de uma indústria que entrou há anos em decadência, celebrado até pelas razões certas, é uma grande alegria, faz-nos acreditar novamente que é o trabalho formal e não os temas que cativam as pessoas, que elas não se deixam enganar pelos engodos do audio-textual no cinema, que ainda é possível contrabandear a excepção pela regra adentro.
Último momento. A caravana de mulheres chega à cidadela de Immortan Joe. Sem palavras de maior, só com as declinações e elevações de uma plataforma, o rugido de um motor, os bramidos da multidão. Os heróis são os oprimidos, o anti-herói desaparece. A câmara é grandiloquente e operática, vai do plano geral para o grande plano, transformando os estereótipos apocalípticos e os farrapos humanos que acompanhámos em arquétipos. Dois acenos, na confusão. E uma ideia: a plataforma é enquadrada de forma diferente e torna-se outra coisa, enquanto os tambores rufam em crescendo. E cai o pano.
[1] in «Print the Legend: The Life and Times of John Ford» de Scott Eyman, Simon and Schuster, 1999.
[2] in «The Parade's Gone By» de Kevin Brownlow, Alfred A. Knopf, Nova Iorque, 1968.
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