por João Garção Borges
Basta olhar para um planisfério para se perceber que o Chile na sua extensão linear possui, para o melhor e para o pior, uma imponente e geológica coluna dorsal, a Cordilheira dos Andes, que, por um lado, protege os que lá vivem num improvável ventre materno a que nem sempre os seus cidadãos podem dar o nome de pátria amada e, por outro, oculta o que realmente se passa nas suas entranhas e nos labirintos urbanos de uma megacidade como Santiago, impedindo a melhor percepção dos factos e acontecimentos da História por quem se encontra fora das suas fronteiras. Mesmo os que lá nasceram mas optaram pelo exílio sentem esse isolamento do mundo, como o realizador do documentário La Cordillera de los sueños (“A Cordilheira dos Sonhos”), 2019, o cineasta Patricio Guzmán. O filme começa com uma série de planos aéreos da capital do Chile; vemos as nuvens, vemos o longo e montanhoso muro de rocha que se ergue majestoso coberto de brumas, rasgos negros e neve, e lá em baixo um labirinto infernal, semelhante a uma superfície imensa estilhaçada em mil pedaços por uma qualquer força da natureza ou pelo destino que os chilenos, homens e mulheres, lhe quiseram dar. Será então o próprio realizador a dizer o que lhe vai na alma: “Cada vez que passo por cima da cordilheira sinto que estou a chegar ao país da minha infância, ao país das minhas origens. Cruzar a cordilheira é como chegar a um lugar muito longe, no passado. Tudo me parece irreal. Sinto-me um ser de outro planeta. Santiago, a cidade em que nasci, recebe-me com indiferença. Sempre que regresso sinto a mesma distância. Não reconheço a cidade que agora encontro. No fundo, não sei onde estou. Tenho a sensação que passou mais tempo do que realmente passou. Lembro-me de um país em que me sentia mais em casa, com a minha família, com os meus amigos. Mas agora os cheiros são outros. Não são como os ares que outrora respirava”. E prossegue sugerindo que as suas memórias parecem desaparecidas por entre as fissuras das pedras e planos rochosos que pavimentam o solo, como se fossem relevos abstractos esculpidos por gigantes. Por contraste, vemos a seguir uma bela imagem da cordilheira exposta como um amplo mural nas paredes do metropolitano. Por momentos pensamos estar a ver a imagem que justifica por si só a referência maior desta obra, ou seja, A Cordilheira dos Sonhos.
Mas será Patricio Guzmán a despertar-nos dessa atmosfera meio onírica das sequências iniciais para nos continuar a falar de si, mas desta vez em relação aos outros e na relação com os seus compatriotas: “Em Santiago, muitas pessoas só olham para a cordilheira quando andam de metro”. Mais claro não podia ser: numa cidade em que a formação natural está bem presente, os seus habitantes só nos caminhos que lhe rasgam as profundezas se dão conta da sua imponência, e eventualmente da influência nas suas vidas e no seu quotidiano, ao dar de caras com a sua luminosa representação pictórica num dos vários frescos com paisagens chilenas pintados por Guillermo Muñoz Vera. E continua o autor: “O pintor vive em Espanha. Eu vivo em França. Nem eu nem ele regressámos ao nosso país para aí viver. Nós sonhamos com o Chile de longe. Pela sua força e personalidade, a cordilheira surge como a metáfora desse sonho”. E acrescenta que quando era jovem não sentira qualquer curiosidade pelos Andes. Na verdade, a sua geração estava mais preocupada em construir uma sociedade nova. E, com uns pozinhos de ironia, em jeito de síntese conclui: “Os assuntos ao redor da cordilheira não eram revolucionários”. Por fim, abre a porta para a matéria primordial do projecto, enunciando: “Com o passar dos anos o meu olhar dirigiu-se para as montanhas. Elas intrigam-me. Talvez sejam a porta de entrada que me permita compreender o Chile de hoje”.
Daqui para a frente somos levados pela sua mão, pelas suas palavras e pelos depoimentos dos seus companheiros até ao profundo modo de ser e estar de um Chile que ficou adiado com o golpe militar de 11 de Setembro de 1973, que instaurou uma das mais brutais ditaduras da América Latina e do mundo. Serão muitas as vozes que nos falam do antes e depois, assim como do agora. Testemunhos vivos de muitas situações, muitas contradições, muitos retrocessos económicos e sociais mascarados pelos defensores do capitalismo selvagem como a fórmula do sucesso, do falacioso milagre económico chileno fruto da aplicação sem rei nem roque das estratégias de exploração definidas pela Escola de Chicago. O Chile foi a cobaia onde os seus mentores experimentaram a sua cartilha. Mas a memória maior desses anos de brasa será perante nós revelada ao conhecermos a dimensão dos arquivos áudio e visuais de Pablo Salas, um homem destemido que ousou estar onde era necessário para denunciar as investidas da ditadura, alguém que foi e continua a ser nos dias de hoje o fiel depositário das provas dadas pelos que resistiram nas lutas pela liberdade, nas manifestações reprimidas com violência desproporcionada, que superaram o medo no confronto com o poder. Percebemos que Patricio Guzmán sente uma admiração muito sincera por este realizador e operador que guarda em suportes frágeis mas preciosos os sinais vitais de um povo que não se deixou amordaçar nem se rendeu ao que na altura parecia ser o mais forte.
No fim, voltamos a ouvir a voz do realizador que nos diz: “Encontrei fragmentos do universo na cordilheira. Estão em museus chilenos. São meteoritos, pedras que caem do céu. São pequenos pedaços de planetas que vieram de muito longe. Dizia a minha mãe que cada vez que um cai de noite podemos pedir um desejo, um dos que se cumprem desde que o mantenhamos em segredo. Mas eu quero dizê-lo em voz alta. Quero que o Chile recupere a sua juventude e a sua alegria”.
E neste desejo de regressar a uma infância perdida, cuja metáfora material podemos vislumbrar na casa materna em ruínas, A Cordilheira dos Sonhos cumpre cabalmente o seu propósito, que completa por assim dizer a Trilogia do Chile iniciada em 2010 com Nostalgia de la luz e reforçada em 2015 com El botón de Nácar.
in «A Cordilheira dos Sonhos, em análise», Magazine HD, 20 de Maio de 2022.
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