sexta-feira, 4 de outubro de 2024

Sambizanga (1972) de Sarah Maldoror



por Estela Cosme 

Sarah Maldoror é uma realizadora com uma história pessoal que marcou afincadamente a sua filmografia. Nascida em Gers, na França, como Sarah Ducados, adotou mais tarde um nome artístico com base nos Cantos de Maldoror do conde de Lautréamont. O seu pai era um homem negro de Guadeloupe, nas Antilhas Francesas, onde alguns dos seus filmes foram rodados, nomeadamente Un homme une Terre e Regards de mémoire, filmes exibidos na sessão da passada terça-feira do Lucky Star. Neles o tema do anticolonialismo está bem presente, e é através da voz do poeta Aimé Césaire que Maldoror demonstra a identidade negra em conflito com o domínio francês. Para além das suas raízes caribenhas, Maldoror foi casada com Mário Pinto de Andrade, escritor e sociólogo angolano e um dos membros fundadores do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA). 

Foi juntamente com Andrade e com Maurice Pons que Maldoror adaptou a obra do escritor angolano José Luandino Vieira A Vida Verdadeira de Domingos Xavier para o guião do seu filme Sambizanga, considerado a sua obra-prima. Foi a primeira longa-metragem produzida, quer em Angola quer na África Lusófona, e foi também a primeira longa-metragem africana realizada por uma mulher.1 A sua importância cultural é apenas igualada pela sua proeza cinematográfica, onde a luta contra o colonialismo está bem demarcada. Aliás, o filme foi rodado no Congo e não em Angola, onde certamente o regime colonial teria impedido a sua produção. O filme só seria exibido em Angola e em Portugal após o 25 de Abril de 1974. A sua produção contou ainda com a participação ativa do MPLA, como Maldoror explicou em 2008: "O MPLA pôs toda a estrutura à minha disposição. Explicámos aos militantes que este filme era importante, porque ia incidir sobre Angola. Expliquei-lhes o que era o cinema e o que queria do filme. Todos participaram sem hesitar." 

Sambizanga é o nome de um dos distritos do norte da cidade de Luanda, onde fica a prisão da PIDE na qual Domingos Xavier acaba por ficar preso. Um tratorista com interesses no movimento revolucionário angolano, Domingos é levado um dia por agentes da autoridade que o removem de forma violenta de sua casa num musseque. A assanha impiedosa não impede que a sua mulher Maria parta à sua procura, com o seu filho às costas, determinada a encontrar o seu marido, que acredita ser inocente. O caminho é longo e árduo mas Maria é destemida, e quando sabe que Domingos foi levado para Luanda, Maria parte para a capital, cheia de mágoa e de garra, e com a ajuda da comunidade consegue visitar várias prisões da cidade e questionar sobre o seu paradeiro. É bem recebida em todas menos em Sambizanga, onde Domingos é cruelmente humilhado e torturado quando se nega a dar informação sobre o movimento revolucionário aos seus captores. A tragédia é inevitável e a viagem de Maria acaba em desgosto, uma mulher inconsolável com a morte do marido. Ele, por seu lado, torna-se um herói na causa da libertação angolana. 

O cruel destino de Domingos é desumano e é captado de forma feroz por Maldoror, que certifica que o público não fica indiferente aos horrores do colonialismo português, levado a cabo não só pela brutalidade branca de figuras como o português Pereira, mas também pelos homens negros que servem o regime colonial. No entanto, Maldoror também enfatiza a solidariedade que surge entre os revolucionários quando se sabe que Domingos é preso mas não se conhece a sua identidade, levando vários dos seus camaradas a grandes esforços para encontrá-lo. 

Embora seja Domingos quem sofra mais diretamente pelo regime colonial, é Maria que é o rosto do filme e, como consequência, o rosto da libertação angolana. Maria é uma mulher arrasada pelas ações das autoridades e que mesmo assim junta a coragem para sair do seu porto seguro para bater nas portas dos estabelecimentos mais temidos pela sociedade. Mesmo quando os seus gritos são mais fortes do que o choro do filho que leva às costas, Maria não se cansa de procurar o seu marido e de protestar a barbárie a que é sujeito. Maria é uma manifestação andante de uma sociedade cativa que começa a revolucionar-se contra o seu colonizador. Maldoror refletiu sobre a questão na mesma entrevista: "O filme mostra que as mulheres também participaram da luta. Mulheres com filhos nos braços, que lhes tinham que explicar porque é que o pai partiu, quais os riscos e a própria realidade."[2] Em retrospectiva, Maria simboliza a força e determinação que levou à independência das colónias e à reformulação de Angola como país livre. 

O caminho de Maria é árduo e ingrato dado o seu final, mas não por isso menos poético ou valente. É um caminho motivado pelo amor, justo e nobre, tal como ilustrado no poema de Agostinho Neto, que é cantado enquanto assistimos ao percurso de Maria:

Caminho do mato 
caminho da gente 
gente cansada 
ó ó ó-oh 

Caminho do mato 
caminho do soba 
soba grande 
ó ó ó-oh 

Caminho do mato 
caminho de Lemba 
Lemba formosa 
ó ó ó-oh 

Caminho do mato 
caminho do amor 
amor do soba 
ó ó ó- oh 

Caminho do mato 
caminho do amor 
do amor de Lemba 
ó ó ó-oh 

Caminho do mato 
caminho das flores 
flores do amor."[3]

[3] "Caminho do Mato" de Agostinho Neto: https://agostinhoneto.org/poesias/caminho-do-mato-2/



quarta-feira, 2 de outubro de 2024

360ª sessão: dia 3 de Outubro (Quinta-Feira), às 21h30


Longa-metragem de Sarah Maldoror para ver na BLCS

Durante o mês de Outubro, o Lucky Star – Cineclube de Braga exibe catorze filmes em parceria com os Encontros da Imagem, com sessões às terças e quintas-feiras no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva. O ciclo adopta um termo cunhado pelo poeta e ensaísta Édouard Glissant, intitulando-se “Cinema Todo-Mundo — colonialismo e a memória do futuro”. 

Sambizanga, de Sarah Maldoror, baseado no romance do autor angolano José Luandino Vieira, A Vida Verdadeira de Domingos Xavier, será exibido na quinta-feira dia 3 de Outubro, em cópia restaurada e gentilmente cedida pela Cineteca di Bologna.

Sarah Maldoror nasceu em Gers, na França, em 1929. Apesar de nascer com o apelido de "Ducados", escolheu o nome de "Maldoror" como nome artístico, a partir dos Cantos de Maldoror do conde de Lautréamont.

Foi co-fundadora da companhia de teatro Les Griots, em Paris, onde encenou peças de Jean-Paul Sartre e Aimé Césaire. Estudou no Studio Gorki nos anos sessenta sob a orientação de Mark Donskoi, onde conheceu Ousmane Sembène, realizando a sua primeira curta-metragem, Monangambê, em 1969, baseada como Sambizanga numa obra do escritor José Luandino Vieira.

Sambizanga é a sua primeira longa-metragem de ficção. Nela acompanhamos uma mulher, com o seu bebé às costas, na sua longa caminhada dos musseques até aos arredores da cidade de Luanda, em busca do seu marido desaparecido. As paisagens tipicamente africanas, cheias de cor e sons luminosos, que Maria atravessa são contrapostas com a violência infligida pela PIDE sobre aqueles que lutam pela liberdade.
 
"O MPLA pôs toda a estrutura à minha disposição," disse Maldoror sobre o seu filme em entrevista a Pedro Cardoso para o Novo Jornal de Angola em 2008. "Explicámos aos militantes que este filme era importante, porque ia incidir sobre Angola. Expliquei-lhes o que era o cinema e o que queria do filme. Todos participaram sem hesitar."

"O filme mostra que as mulheres também participaram da luta," disse a cineasta na mesma entrevista. "Mulheres com filhos nos braços, que lhes tinham que explicar porque é que o pai partiu, quais os riscos e a própria realidade."

As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, durante este ciclo às terças e quintas às 21h30. A entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Até Quinta!

terça-feira, 1 de outubro de 2024

Aimé Césaire, un homme une terre (1976) + Regards de mémoire (2003) de Sarah Maldoror



por Duarte Carvalho

Após a visualização destas duas curtas, existe a sensação de que estamos a ser introduzidos a uma nova cultura, num resort transatlântico em dia de passeio, por um brilhante guia, Aimé Césaire. 

A civilização que nos é apresentada é das ilhas Antilhas, marcada por séculos de escravatura e exploração de pessoas e terras. Passamos pelas marcas da história visíveis no território, algumas antigas, outras pequenos memoriais mais recentes do que se passou. Ao longo da explicação é-nos introduzido o conceito de Negritude, a ligação partilhada entre os descendentes dos escravizados, espalhados por todo o mundo mas principalmente nas ilhas Antilhas, nos Estados Unidos e em África. O nosso guia acredita que esta ligação ajuda a evolução económica, cultural e evolutiva, e segundo ele, permite à árvore, finalmente, encontrar os nutrientes para que consiga crescer, florir e deixar a sua dependência e não sendo suficiente ganhar, por fim, força própria. 

Começamos numa jornada que parte como a dos escravos, pela porta do não retorno, fazendo lembrar as portas de Auschwitz; passamos pelo equivalente do palácio de Versailles, Citadelle Laferrière, onde nos é contada a história “trágica como Shakespeare” do primeiro rei do Haiti; e terminamos a primeira curta numa ruína de uma fábrica colonial, a Bibliothèque Schœlcher, e num memorial às vítimas da escravatura, onde é entrevistado Césaire. Esta visita mostra o caminho de reconstrução, reconhecimento e evolução que terá de ser percorrido pela população de Martinique. A segunda curta mostra o dia-a-dia desta ilha, o mercado, a arte local, as casas e uma construção em desenvolvimento. 

Para além destes sítios são introduzidos alguns dos heróis da Negritude mais proeminentemente das Antilhas: Toussaint Louverture, governador do Haiti, descrito por Césaire como uma fusão de Napoleão com Spartacus. Louverture é conhecido pelas suas vitórias e sucesso em combate e por liderar a primeira e maior revolução de escravos sendo um símbolo de heroísmo para as colónias e um terror para os colonizadores nas Américas. Outro herói, Henri Christophe, o primeiro rei do Haiti e concretizador da formação do estado após revolução começada por Toussaint, marcado pela sua influência para o bem e para o mal dos monarcas europeus. E por fim, Patrice Lumumba, que na era de Kennedy e Martin Luther King partilha muitas das suas características, até na morte. 

Césaire, como um guia de turistas, usa a língua francesa dos visitantes, mas também usa hábitos de expressão, comunicação visual, narrativa e expressiva, produz peças de teatro, poesia, citando como referências escritores francófonos e usando pontos de referência da história europeia, da qual parece ser um grande conhecedor. A certa altura evoca como comum às duas culturas o surrealismo, do qual admite ser admirador acreditando ser a ponte entre as duas culturas. Nas entrevistas aqui presentes parece estar numa constante busca do seu lugar, recusa-se a ser francês para não querer dar poder ou legitimidade à ainda abusadora e ex-esclavagista europa, e ao mesmo tempo sente-se demasiado rebelde para a sua ilha de Martinique, que aparenta ter aceitado a situação em que se encontra. 

Césaire, admitindo o peso da natureza que o rodeia, acredita que membros desta grande família africana, separada forçosamente, reencontrar-se-á na expansão das suas raízes. A jornada dos povos das Antilhas é antítese da jornada europeia, ao invés da expansão, há nos descendentes de escravos uma busca e descoberta do interior - tal como os antigos edifícios coloniais inevitavelmente foram engolidos pela natureza, também as semelhanças entre os homens prevalecerão sobre as suas diferenças.



domingo, 29 de setembro de 2024

359ª sessão: dia 1 de Outubro (Terça-Feira), às 21h30


Dois filmes de Sarah Maldoror no auditório da BLCS

Durante o mês de Outubro, o Lucky Star – Cineclube de Braga exibe catorze filmes em parceria com os Encontros da Imagem, com sessões às terças e quintas-feiras no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva. O ciclo adopta um termo cunhado pelo poeta e ensaísta Édouard Glissant, intitulando-se “Cinema Todo-Mundo — colonialismo e a memória do futuro”. 
 
Os primeiros filmes exibidos, terça-feira à noite, serão Un homme une terre e Regards de mémoire da cineasta pioneira Sarah Maldoror, que apresenta a problemática do colonialismo através das palavras de Aimé Césaire e Édouard Glissant. 
 
Em Un homme une Terre, Aimé Césaire reflecte sobre o colonialismo e as suas consequências, fala de literatura e do surrealismo, procurando pontes entre a cultura africana e europeia, cuja inconciliabilidade persiste enquanto o domínio de uma sobre a outra persistir. Aborda a condição neocolonial das ilhas francesas, tidas como Departamentos Ultramarinos, estatuto que ainda hoje mantêm e contra o qual vozes continuam a erguer-se incansavelmente. Oportunidade para reflectir sobre os diferentes tipos de colonialismos na contemporaneidade. 
 
Em Regards de mémoire, Sarah Maldoror conversa com vários escritores e pensadores, inclusive com Aimé Césaire, na Martinica, e com Édouard Glissant em Fort de Joux, na cela onde o general Toussaint Louverture, líder da Revolução Haitiana, foi mantido prisioneiro até à sua morte, em 1803. Louverture lutou contra a escravatura e pela independência do Haiti, na mesma altura em que decorria a Revolução Francesa. 
 
Em entrevista a Beti Ellerson em Burquina Fasso, em 1997, Maldoror disse que "eu fiz muitos filmes em África. Mas sinto, em primeiro lugar, que as fronteiras não existem. Vamos deixar isso claro! Seja em África, em Guadalupe, ou nos Estados Unidos. 

"Aquilo que eu estou a dizer é que o cinema é a única arte em que não existem fronteiras. Claro, eu sinto-me muito mais próxima de África do que dos Estados Unidos. Mas ao mesmo tempo, sou afectada pelos Estados Unidos e a sua vontade tremenda de esmagar o mundo. Sinto que neste ponto vocês americanos se desenvencilham muito bem. O vosso cinema está em todo o lado. Vocês impuseram o vosso cinema. Não há uma única pessoa no mundo que não conheça um western ou um filme americano em geral. Vocês impuseram-se a vós próprios, e nós temos de nos proteger de vocês. Invadiram o mundo com os vossos westerns. E têm todo o direito a fazê-lo, mas o que é que nós podemos fazer? Hoje em dia, alguém pode passar sem cinema americano? Não. Até vamos ver o Malcolm X. Vocês negros americanos têm um cinema, vão ver os vossos próprios filmes bem como outros, o que não é o nosso caso. É aí que reside a vossa força."
 
As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, durante este ciclo às terças e quintas às 21h30. A entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Até Terça-Feira!

quinta-feira, 26 de setembro de 2024

Cinema Todo-Mundo: colonialismo e a memória do futuro



por Jessica Sérgio Ferreiro

O Todo-Mundo, termo cunhado por Édouard Glissant, ensaísta e poeta da Martinica, representa o conjunto de comunidades idiossincráticas que na relação se constituem como um todo (Mundo relacional), são coletividades não-sistémicas, fluidas, dinâmicas e compósitas, como ilhas de um mesmo arquipélago, nunca subsidiárias ou submissas a um centro ou a uma referência-mestre, a um Universal. 

É assim que Glissant sonha o Mundo não-colonial, sem assimetrias, assim pode ser o cinema: um reflexo do Todo-Mundo, um vislumbre, um grito em manifesto ou um poema sobre mundos caóticos e produtivos. 

O cinema coloca-nos em relação com experiências múltiplas e polissémicas, imperfeitamente traduzíveis. Através de olhares não-convencionais, o objeto cinematográfico transporta-nos para realidades complexas e inefáveis, para passados inacessíveis, cujos modos e marcas habitam o presente, mas que, também, contém nele o poder de informar o futuro. 

Começa-se este ciclo com três filmes de Sarah Maldoror, cineasta pioneira, que nos traz as palavras sábias do poeta e escritor da Negritude Aimé Césaire, un homme une terre (1976), a par com as de Édouard Glissant, em Regards de mémoire (2003), introduzindo, desde modo, a problemática do colonialismo e das suas repercussões. Em Sambizanga (1973), através de uma poética da imagem, caminhamos com a personagem Maria na busca pela verdade, ao passo que desperta a consciência política de um povo que procurará libertar-se das amarras violentas da colonização. 

Depois de navegarmos pelo movimento emancipatório em Angola, atracamos no Acto dos Feitos da Guiné (1979), do realizador Fernando Matos Silva que, com seu olhar crítico sobre a História (ou das “narrativas” sobre esta), coloca os seus heróis a apresentar os feitos dos portugueses. Com partida nos Descobrimentos e chegada na antiga Guiné do século XX, confronta a palavra e o discurso ébrio com imagens reais que denunciam as consequências do jugo colonial na antiga Guiné portuguesa. Em contraponto, na sessão seguinte, o mestre Sana Na N'Hada, na sua mais recente longa de ficção, intitulada Nome (2023), oferece-nos uma visão, a partir de dentro, da Guiné-Bissau de outrora e da sua realidade contemporânea, misturando a alegoria com imagens de arquivo, captadas por ele, aquando das lutas de libertação colonial. 

Na mesma linha de pensamento, apresenta-se Kuxa Kanema (2003) de Margarida Cardoso que, através do documentário, retrata, também, o fim da utopia, do sonho revolucionário que se encontrava espelhado no projeto de cinema ambulante, implementado pelo então governo de Moçambique, após a independência, e que pretendia restituir, ao seu povo, imagens de si próprio. Por sua vez, a curta- metragem KARINGANA os mortos não contam estórias (2020), do realizador moçambicano Inadelso Cossa, representa o cinema como pós-memória e como documento histórico incompleto, meio pelo qual a personagem principal procura entender a história do seu país e forjar a sua identidade, fora da linha de tempo a que pertence e da qual não é possível retirar-se. 

Ainda por terras moçambicanas, a antropóloga Catarina Alves Costa traz-nos o sujeito colonial para a cena com Margot (2022). A realizadora viaja até Moçambique para devolver, décadas depois, as imagens que a musicóloga e etnógrafa Margot Dias registou do povo Maconde para a Missão de Estudos das Minorias Étnicas do Ultramar Português, levando-nos a problematizar posicionamentos ético-políticos que definiram as crises da antropologia na época colonial e pós-colonial, a par com as ambivalências intrínsecas ao ser(-se) humano. 

Por sua vez, sob os preceitos de uma “antropologia partilhada” (anti-colonial), na docuficção Moi, un noir (1957) de Jean Rouch, é o protagonista do filme que narra as imagens captadas de si mesmo, contando a sua estória imaginada, mesclada com o seu quotidiano na Costa do Marfim. Na mesma sessão, Les Maîtres fous (1955), do mesmo realizador, expõe os rituais praticados pelos Haouka, oriundos da Nigéria e imigrados no Acra (Gana), e que, alcançando um estado de transe, encarnam e imitam, subversivamente, figuras de poder arquetípicas do colonialismo. Figuras, as quais, parecem habitar o imaginário coletivo dos Haouka que, através do escárnio grosseiro, expurgam e expulsam, através do corpo e da performance, a violência multissecular do mundo-caos[1] que lhes coube. 

O realizador Ousmane Sembène, considerado pai do cinema africano, nos seus vários filmes, esmiúça a sociedade moderna e estratificada do Senegal em relação ao neocolonialismo estrutural que molda caoticamente o dia a dia dos seus cidadãos, tal como em Mandabi (1968), revelando que o colonialismo tem muitas formas e não termina com as efemérides que dividem o tempo histórico entre o antes e o após

Por último, atravessamos o oceano e a Abrir Monte (2023), curta de Maria Rojas Arías, deparamo-nos com a história da primeira guerrilha colombiana que se tentou libertar da opressão do Estado conservador e da brutalidade policial, cuja violência espectral sombreia os planos de imagem narrados em voz-off. Seguimos rumo a uma cidade assombrada do Brasil, na floresta Amazónica, cuja montagem fílmica e edição sonora, de Susana Sousa Dias, nos faz experienciar Fordlandia Malaise (2019), cujo empreendimento massivo e devastador, epítome do capitaloceno, foi finalmente vencido pela própria Natureza. Por fim, ainda na selva Amazónica, entre o Peru e o Equador, cuja fronteira é desenhada pelas Águas do Pastaza (2022), Inês T. Alves revela-nos o dia a dia das crianças de uma aldeia que vive em simbiose com a natureza indomável, aparentemente inóspita, da selva. 

Assim, o cinema revela-se como meio por excelência do pensamento arquipelágico (Édouard Glissant), ou seja, do conhecimento partilhado, diverso e construído em conjunto, sempre que é visionado e debatido em contextos e tempos particulares. As experiências e perspectivas múltiplas, transplantadas na imagem em movimento, permitem compreender e refletir criticamente sobre passados coloniais e presentes ainda opressivos. Através da materialização de uma percepção sobre o real, é possível espelhar heterotopias várias (Foucault) que derivam de diferentes realidades e desenham outras possibilidades. Quiçá contribuirão, também, para quebrar, um dia ou gradualmente, os sistemas atávicos que persistem em estruturar a vida conjunta. O cinema, enquanto documento histórico, extravasa a tradução de eventos passados e suas circunstâncias, reflecte, também, para além do que sucedeu, o que (ainda) não adveio, o invisível. Como Marc Ferro já defendia, as intenções e investidas, as crenças e os sonhos, o imaginário, são igualmente férteis, fazem e são História. 

Filmar é um ato de memorar que produz efeito a posteriori, aquando da sua partilha. Na sua concepção é visualizado a priori, é imaginado, antecipando-se o seu todo, o seu resultado e a sua recepção ou “leitura” por terceiros. Em suma, o objecto cinematográfico é pensado para o devir, permite rememorar o passado, pensar sobre presente(s) e imaginar futuro(s). Como forma de expressão artística e ferramenta política, produz sentido e cumpre-se na comunhão, quando possibilita fazer corpo social (Stiegler). 

A arte é a partilha do sensível (Rancière), é um acto inerentemente político e poético, voltado para o colectivo, para o público. Como descrito por José Gil, em O Tempo Indomado (2020), o objeto artístico facilita a produção de um bom caos que, convocando os sentidos e a reflexão, “vai querer fazer mais do que exprimir, vai querer ser expressivo como um ente vivo, vai encarnar o mundo que exprime, existir como coisa-expressão interagindo com as coisas e seres reais da vida”, sendo, por fim, uma forma profícua de “domar” o próprio tempo. 

Assim se espera com este ciclo de cinema do Todo-Mundo para todos. 

Uma civilização que se revela incapaz de resolver os problemas que o seu funcionamento suscita, é uma civilização decadente. 
Uma civilização que prefere fechar os olhos aos seus problemas mais cruciais, é uma civilização enferma. 
Uma civilização que trapaceia com os seus princípios, é uma civilização moribunda. 
A verdade é que a civilização dita «europeia», a civilização «ocidental», tal como a modelaram dois séculos de regime burguês, é incapaz de resolver os dois problemas maiores a que a sua existência deu origem: o problema do proletariado e o problema colonial; que, essa Europa acusada no tribunal da «razão» como no tribunal da «consciência», se vê impotente para se justificar; e se refugia, cada vez mais, numa hipocrisia tanto mais odiosa quanto menos susceptível de ludibriar. 
Aimé Césaire 
Discurso sobre o colonialismo (1978 [1955]). 

[1] Conceito de Édouard Glissant para se referir ao encontro e choque entre culturas (aqui entende-se cultura no seu sentido lato, incluindo sistemas, economia, ciência, lazer, artes, etc.), bem como às interinfluências e impactos inelutáveis que daí advêm, corresponde ao real, ao contemporâneo e aos processos em que se dão essas transformações graduais e dinâmicas (os quais são afetados pelas assimetrias de poder e desigualdades). Difere do conceito de Tout-Monde (concepção utópica do Mundo em que, também, várias culturas estão em contacto ou em relação, pela qual se fazem trocas e aprendizagens em conjunto, corresponde a um conjunto de mundos “crioulos”, mas em que cada grupo detém o direito à sua opacidade (a não ser objeto de exploração e de análise com base em paradigmas científicos universalistas convencionais), não existem culturas hegemónicas, é anti-universal).

quarta-feira, 28 de agosto de 2024

Rosa de Areia (1989) de Margarida Cordeiro e António Reis



por João Palhares

Antes de conhecer Margarida Cordeiro, António Reis foi membro muito activo do Cineclube do Porto, publicando também ao longo desse tempo nove livros de poemas: Chamas, Luz, Roda de Fogo, Ronda do Suão, Poemas do Cais, Poemas do Escritório, Ode à Amizade, Poemas Quotidianos e Novos Poemas Quotidianos. Publicados durante os anos quarenta e cinquenta entre a Portugália, a Tipografia do Carvalhido e o próprio autor, estão há décadas esgotados, tendo os primeiros sete sido inclusivamente deserdados por Reis, que os apagou da sua bibliografia, e apenas Poemas Quotidianos e Novos Poemas Quotidianos foram recentemente reunidos num único volume pela Tinta da China, também já esgotado. 

No Cineclube do Porto, Reis investigou teoria do cinema com amigos e colegas e juntos fundaram a Secção de Cinema Experimental, acabando por produzir uma importante média-metragem, Auto da Floripes, transposição cinematográfica desse auto encenado, representado, aprendido e vivido por muitos séculos pelas gentes do lugar das Neves, perto de Viana do Castelo, entroncamento partilhado das freguesias de Barroselas, Mujães e Vila de Punhe. O trabalho do colectivo, que incorporava também um pequeno prelúdio documental que acompanhava alguns dos intérpretes do Auto da Floripes nos seus afazeres de todos os dias, impressionou Manoel de Oliveira, que chamou António Reis para o assistir na realização do Acto da Primavera, rodado na aldeia da Curalha, em Trás-os-Montes, nos anos sessenta e tido por muitos como a grande linha de demarcação ou a grande fissura que todo o novo cinema português teria de atravessar sob pena de morte. Uns anos depois, Reis assina os diálogos de Mudar de Vida, de Paulo Rocha, já marcados por uma atenção fora do comum aos ritmos e às entoações, caros a Reis por ser de perto da zona e conhecer a sua fala, co-realizando ainda com César Guerra Leal Painéis do Porto e Do Céu ao Rio, duas curtas-metragens encomendadas respectivamente pela Câmara Municipal do Porto e a Hidro-Eléctrica do Cávado. 

Transmontana, Margarida Cordeiro estudou Medicina e especializou-se em Psiquiatria em Lisboa, começando a trabalhar no hospital Miguel Bombarda em Lisboa poucos meses depois de Jaime Fernandes, paciente no hospital, ter falecido. Conhecera António Reis no Porto uns anos antes e este encontro inaugurou aquela que é sem dúvida uma das obras mais especiais e fabulosas do cinema português. Um dia, Cordeiro reparou num desenho que a princípio confundiu com uma reprodução, de tão bom que era. Fazendo algumas perguntas, descobriu que era original e fora desenhado por um antigo paciente, Jaime Fernandes, nascido no Barco, na Covilhã, e internado aos 38 anos, que começara a pintar febrilmente apenas aos 65 anos e daí até à morte, quatro anos depois. O casal reuniu vários dos seus desenhos e fez-se ao trabalho, inspirado também pelo talento do pintor, falando com a família e utilizando uma truca, máquina de efeitos de trucagem que lhes permitia aproximar-se perpendicularmente dos desenhos que esticavam entre duas transparências. 

Jaime, num primeiro contacto, não pode deixar de impressionar pela sua inventividade na ligação entre sons e imagens. O trecho em que aparece “St. James Enfermary” de Louis Armstrong não nos abandonará nunca a retina pelo jogo incessante que é praticado entre o ritmo da música e o ritmo dos planos. Um jogo perigoso que Reis e Cordeiro souberam solucionar prodigiosamente. Trás-os-Montes é fruto de um labor delicado, o princípio de uma belíssima aventura pelo Trás-os-Montes de Margarida Cordeiro que já se dá sob o signo da despedida, ficando a ressoar o comboio final e os seus apitos e os seus vapores que irrompem pelos últimos planos e o longo adeus da menina que é longo porque assim aconteceu à mãe de Cordeiro, Ana Maria Martins Guerra, que ficou meia hora a acenar e a acenar talvez por não se conseguir convencer em criança de que o pai se ia embora para muito longe. É ela a intérprete principal do filme seguinte, Ana, poema à terra que gradua as suas tonalidades como as estações do ano equiparando-as às estações da vida, facto sublinhado pela sequência maravilhosa da caminhada da avó pelas florestas e em que a sua sombra chega à altura das das árvores que a amparam. O ser humano como igual dos verdes campos, de uma floresta ou de uma montanha, as colinas ao longe sempre trabalhadas em pano de fundo pictórico com os primeiros planos dos corpos e dos rostos dos homens. Chave possível para um poema de Wallace Stevens que sempre achámos enigmático, “There are men of the East, he said, / Who are the East. / There are men of a province / Who are that province. / There are men of a valley / Who are that valley.” 

Nos final dos anos setenta, António Reis começou a dar aulas no Conservatório Nacional, hoje Escola Superior de Teatro e Cinema. As suas aulas funcionavam a partir de vinte e dois filmes fundamentais da história do cinema: Intolerância de David Wark Griffith, Fausto de Friedrich Wilhelm Murnau, A Paixão de Joana d’Arc de Carl Theodor Dreyer, O Vento de Victor Sjöström, A Linha Geral de Sergei M. Eisenstein & Grigori Aleksandrov, Alexandre Nevski de Eisenstein, O Mundo a Seus Pés de Orson Welles, O Quarto Mandamento de Welles, Dia de Cólera de Dreyer, Alemanha, Ano Zero de Roberto Rossellini, Stromboli de Rossellini, O Rio Sagrado de Jean Renoir, Viagem em Itália de Rossellini, Johnny Guitar de Nicholas Ray, Fugiu um Condenado à Morte de Robert Bresson, A Desaparecida de John Ford, O Carteirista de Bresson, O Acossado de Jean-Luc Godard, O Gosto do Saké de Yasujiro Ozu, O Deserto Vermelho de Michelangelo Antonioni, Marnie de Alfred Hitchcock e Pedro, o Louco de Godard. 

Pode por vezes ser má ideia invocar demasiado cinema para falar do próprio cinema. Pode-se entrar num jogo que se ache proveitoso e motivador no próprio instante mas que no final perde de vista os resultados reais e concretos daquilo que se quer descrever. Só que talvez pouco se escreva das relações dos filmes de Margarida Cordeiro e António Reis com o próprio cinema e os filmes que amam. Os vermelhos de Ana podem ter algo que ver com os vermelhos de Marnie, outro filme com o nome da sua heroína e que equilibra as tonalidades em função das tribulações da sua personagem. O homem e as estações, como credo, e os homens e a paisagem, como paleta, não estarão certamente muito longe das semelhantes posturas de Ozu, Renoir ou Ford para com o seu trabalho. E é aí que os filmes de Reis e Cordeiro estão ou deviam estar, no grande firmamento das obras que formam o nosso inconsciente e os nossos sonhos, a constelação a que se convencionou chamar um dia de história do cinema. 

A procissão com a bandeira de Rosa de Areia vem directamente das batalhas de Alexandre Nevsky, enquadrando o céu por inteiro. Em Marnie, quando a personagem de Sean Connery se tem de dedicar a leituras durante o cruzeiro de lua de mel, acaba por falar à esposa de algo que parece uma flor, no Quénia, mas se transforma numa nuvem de insectos quando nos aproximamos e lhe tentamos tocar. Uma rosa de areia será algo semelhante? Aquilo que é belo esconde sempre um crime fundacional? Quando pensamos que estamos próximos de uma revelação ou de algo que se possa equiparar à felicidade, a realidade há-de fazer sempre das suas e reduzir os nossos sonhos a poeira? Quem são as crianças que sempre ligam ou comentam os episódios de fome, de sede e de sofrimento dos nossos antepassados como se de um coro grego se tratasse? É possível chamar almas errantes, dizer-lhes para voltar “dos montes, / Da floresta, / Dos caminhos / Ou das fontes, / Das sombras / Ou das névoas, / Dos lodos / Ou do fundo do mar.”? Dar-lhes algum descanso e a nós na última das travessias? Quem decidiu que um porco pode ser acusado de homicídio e que o seu dono deve pagar as cento e setenta e cinco libras e oito soldos de despesa da execução? Como se procura um lugar puro declinado na areia, quando as constelações alteram o vocábulo? Em dezenas de milhares de anos, ou desde “o crepúsculo inicial da história”, ainda não se encontrou melhor forma de lidar com quem sofre e é obrigado a ajoelhar-se e a rastejar para viver que não seja pegar num cassetete e castigar-lhes os corpos até eles também se transformarem em rosas de areia? Será possível fazer um filme cujo fio condutor seja apenas o plano, que por sua vez cria outro plano que por sua vez cria outro plano que por sua vez cria outro plano até se transformar nesse sonho impossível, desmedido e utópico de um cinema sem montagem aparente?




Post scriptum digital: como é bom acontecer em sessões com convidados envolvidos na produção dos próprios filmes, soube-se que não é consensual o envolvimento de António Reis na produção e na rodagem do Auto da Floripes, bem como o convite de Manoel de Oliveira a Reis dever-se ao facto de ter visto essa média-metragem, pois as produções foram praticamente concorrentes. Os filmes nas aulas de António Reis também variavam ao longo dos anos, dependendo às vezes da disponibilidade dos próprios arquivos do Conservatório Nacional. A história do cinema português continua a ser feita. Os nossos agradecimentos ao Manuel Mozos e ao Carlos Gonçalo pela sua disponibilidade e pelos seus testemunhos.

sábado, 24 de agosto de 2024

358ª sessão: dia 26 de Agosto (Segunda-Feira), às 21h30


Última obra de Cordeiro e Reis para ver no Theatro Circo 

No mês de Agosto, o Lucky Star – Cineclube de Braga exibe as três longas-metragens assinadas por Margarida Cordeiro e António Reis, bem como as primeiras curtas-metragens de António Reis. As sessões realizam-se às segundas-feiras no pequeno auditório do Theatro-Circo e as cópias foram cedidas e digitalizadas pela Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema. 
 
Margarida Martins Cordeiro (Bemposta, 1938) e António Ferreira Gonçalves dos Reis (Valadares, 1927) conheceram-se no Porto entre finais dos anos sessenta e inícios dos anos setenta. Ela, médica psiquiatra, ele poeta e cineclubista. Juntos, criaram uma das obras mais inclassificáveis não só do cinema português, como do cinema mundial. 
 
A retrospectiva termina segunda-feira à noite, às 21h30, com a exibição de Rosa de Areia, a terceira e última longa-metragem assinada em conjunto pelos dois cineastas. Com fotografia de Acácio de Almeida, o filme conta ainda com as presenças de Artur Semedo, Francisco Nascimento, Pedro Tamen e o cineasta Fernando Lopes. 
 
Usando textos do Atharvaveda, de Carl Sagan, Kafka, Montaigne, Rilke e Saint-John Perse, bem como um conto zen, um texto jurídico medieval e escritos da própria Margarida Cordeiro, Rosa de Areia tem um grande elenco de actores não-profissionais dos concelhos de Vimioso e de Mogadouro na pele de personagens em cujas palavras e gestos se expõe a condição humana. 
 
A sessão será apresentada por Manuel Mozos, realizador de filmes como Xavier, Ruínas ou Atrás Dessas Paredes depois de se especializar em Montagem na Escola Superior de Teatro e Cinema nos anos oitenta. Foi aluno de António Reis nessa escola e assistente de montagem em Rosa de Areia
 
“O cinema que fazemos num país como o nosso e neste tempo,” disseram Cordeiro e Reis em entrevista sobre este filme durante o festival Xociviga, na Galiza, “procura exprimir um modo de ver e de sentir a vida. Há quem diga que os nossos filmes não têm acção mas repara, uma pessoa a olhar para uma paisagem é acção, a acção que nos interessa, a interior, porque da actividade das ideias e da comoção dos sentimentos é que nasce a verdadeira evolução.” 
 
Terminavam dizendo que “é a legibilidade da contemplação das formas naturais e a sua componente emocional que procuramos exprimir nos nossos filmes.” 
 
As sessões do cineclube ocorrem este mês às segundas-feiras, às 21h30, no pequeno auditório do Theatro Circo. Os sócios do Lucky Star - Cineclube de Braga têm entrada livre.

Até Segunda!

terça-feira, 20 de agosto de 2024

Ana (1982) de António Reis e Margarida Martins Cordeiro



por Cristina Fernandes

A natureza como imemorial casa 

Naqueles dias a neve e o vento eram mais puros, as estrelas mais próximas de nós. 
Sob o teu olhar de mãe, a natureza continuamente se ia recolhendo ao invisível. 

Ana (1982), António Reis e Margarida Cordeiro 

Os filmes de António Reis e Margarida Cordeiro inserem-se numa comunidade com algumas influências reconhecíveis e muitos herdeiros apaixonados; o que eles fazem é cinema. Podemos começar por defender esta verdade necessária. Mas, em rigor, não sabemos bem, ou sabemos cada vez menos, o que se agrega sob a palavra «cinema», por isso a proposição não faz justiça a uma obra cujos pontos de fuga nos levam para muito longe. Quer dizer, eles usam a linguagem primitiva do cinema mas depois estabelecem um diálogo intenso com muitas outras coisas: pintura, música, literatura, e ainda mais o conhecimento da terra e das pedras, dos animais e dos frutos, das estações, das construções das casas ou dos barcos, da vida e da morte — ou seja, nos seus filmes todos os elementos fundamentais da cultura vibram e isso dá-lhes um carácter de objectos raros e preciosos. Como se o cinema fosse um olhar cosmológico. Como se eles fossem feiticeiros[1]. 

Numa entrevista ao Jornal de Letras[2], António Reis disse: «... num filme como o nosso, em que não há psicologia nem simbolismo, tudo está em tudo, a nossa defesa é muito menor, a nossa exigência muito maior e o espectador... Margarida Cordeiro: O espectador tem que contribuir mais...» 

É verdade, a relação tem de ser mútua. Então, antes ainda de começar a falar de Ana, é importante lançar algumas ideias sobre o trabalho exigente desta dupla de cineastas, parar para compreender a sua coesão material e o seu alcance de voo. Trata-se de uma força inédita que não só garante uma enorme profundidade de conhecimento, mas também um tempo prolongado de leitura. Roubando alguns versos de Reis, arrisco dizer que os seus filmes correm como rios, duram com pedras, lançam raízes[3]. E o seu encantamento há-de perdurar pelos séculos, basta dar um passo de aceitação. 

Antes de mais, são filmes exigentes que nos obrigam a entrar na sala com um olhar disponível. Em certa medida parece que estamos a entrar num mosteiro sem tecto, porque cada uma das suas obras põe em prática uma ligação estreita entre o sagrado e o profano, vai ao mais escondido e violento que há na vida. E mesmo para falar e escrever sobre eles, é preciso escolher as palavras mais simples e não seguir nunca uma busca de narrativas ou um interrogatório banal de significações — é outra coisa mais volátil que temos de encontrar. Todas as nossas reflexões serão sempre uma aprendizagem do desconhecido; a gratificação há-de crescer por dentro, na sombra, e muitas vezes muda. 

Não posso falar de Ana, sem fazer a ligação a Trás-os-Montes porque ambos captam o movimento histórico e cultural de um povo e de um território, mas também, ao aproximarem-se do grão mais pequeno, encontram a universalidade do tempo e do espaço. Assim como Kafka ou um poema chinês convivem lado a lado com a história da Branca-Flor, também Rilke nos guia até Miranda do Douro e Bragança para compreender o que é dar vida e enfrentar a morte. Encontrássemos nós também uma pura, contida, estreita parcela de humano, uma faixa nossa de terra fértil Entre rio e rocha![4] É como se os segredos do universo se concentrassem nestas terras agrestes e, por uma estranha alquimia, ficassem gravados numa película que testemunha o mistério que nos envolve desde sempre. 

António Reis dizia que «se olhas para alguma coisa e ela te retribui é porque está lá uma parte de ti». E é isso que acontece nos seus filmes. Há uma parte de nós nesses gestos primordiais que eles registam com um rigor absoluto, nos rituais que nos ligam ao sol e à lua, aos rios e ao vento. Não é preciso sermos daquela terra, porque não se trata só do nordeste de Portugal, não se trata só da presença do homem num lugar duro e esquecido. São as raízes da nossa vida. Uma presença real tremendamente rude e meiga em diálogo com todos os elementos que a rodeiam. 

E então, Ana? Ana é um filme de mistérios: o mistério da vida e o mistério da morte — simultaneamente graves e radiosos. Não há propriamente uma história[5], não se trata de uma série de acções encadeadas de forma lógica, mas sequências de planos inesperados e poderosos que atingem os nossos sentidos e o nosso subconsciente[6]: a rapariga vestida de branco com a raposinha (kitsune?) nos braços; os homens a comer morangos à porta da igreja românica de Algosinho; a cor vermelha que passa pelo filme criando um novo tipo de raccords; a gravidade do azul no rosto de Ana; o tapete estendido ao vento, os números do Circo Cardinali numa gruta que parece saída das Mil e Uma Noites; a menina que leva uma garrafa (não se sabe de onde vem nem para onde vai) e pára um pouco junto ao homem morto deitado num caixão. Estes fragmentos afectam o nosso sistema nervoso como uma vertigem — para as compreendermos temos de desligar o nosso lado mais inquisitivo, temos de ver sem medo. Como explica Robert Bresson: [trata-se de um] «filme de cinematógrafo, onde a expressão se obtém por relações de imagens e sons (...). Que não analisa nem explica. Que recompõe.» 

Inicialmente o filme chamava-se Dezembro (as filmagens começaram no inverno e prolongaram-se pela primavera e verão), depois Ana e Alexandre e por fim apenas Ana, e já nessa mudança podemos compreender o modo como os dois trabalham, depurando ao máximo todos os elementos. Assim, ficamos com o nome da avó e da neta, uma palavra simétrica que não tem fim. E o primeiro plano é uma panorâmica vertical do céu para a terra — o princípio da aventura humana. Seguem-se segmentos, blocos extraordinários, porque são ao mesmo tempo austeros e sumptuosos, cheios de ressonâncias. Não te negues aos prodígios. Ordena à lua, ao sol. Desencadeia os raios e os trovões[7]. 

A representação do ritual da amamentação com a ama sentada num trono (Godard filmara assim O recém-nascido, de George de La Tour, um ano antes — um filme desconhecido, quase perdido) é perfeita: ela coberta por um manto, com uma almofada vermelha aos pés e o menino envolto numa manta azul. A narração do eclipse: a luz do fim da tarde faz a terra dourada, ouve-se o vento, a câmara inicia uma panorâmica lenta de reconhecimento para a direita até encontrar a avó e a neta sentadas no campo, e aí fica um pouco enquanto a avó conta o desassossego daquela noite súbita, o aperto no coração. Fazia frio. Todo o silêncio caíra sobre o mundo... Depois a câmara regressa ao ponto inicial, num nesses movimentos lassos que fazemos quando queremos abarcar uma paisagem por inteiro. Ou a aprendizagem de Alexandre tão natural e tão vasta: o prisma decompõe as cores, mercúrio é um metal líquido que não se mistura mas também o deus mensageiro dos romanos; e essa aula magnífica e longa em que Octávio lhe explica o que é a Mesopotâmia — uma terra entre rios, fértil, propícia à vida — e fala das jangadas de odres para atravessar a água. Nessa altura nós percebemos a profundidade da palavra passagem. E os pássaros dos sonhos de Alexandre são um auspício. Assim como a cena de Ana na barca com a cabra ou as rachadelas nas paredes (que nunca mais se esquecem) ou o sangue nas suas mãos — tudo é prenúncio de morte. Já perto do fim, Ana está deitada na cama e diz à neta: O menino? Não te esqueças de dar de comer à Miranda. Deita-lhe feno e uma mão cheia de centeio. São as suas última palavras. 

Todos estes momentos são quadros universais e eternos; o que está a acontecer perante os nossos olhos é um impulso vital, um verbo omnipresente. Paradoxalmente, Ana tem também esse carácter das grandes obras abstractas que, sem seguir uma trama convencional, nos oferecem conceitos que definem o que é o nascimento, a mudança das estações, o crescimento dos frutos e das crianças, a morte. E não há uma classificação vertical, tudo é uma dádiva, tudo emana do mesmo gesto avassalador e horizontal de alegria. 

A alegria nos filmes de António Reis e Margarida Cordeiro é um movimento inteiro e arrebatador. Ana sabe que a morte faz parte de um ciclo natural, assemelha-se a uma travessia num barco frágil ou às folhas que amarelecem e caem das árvores — uma passagem. A renovação da terra é uma das coisas mais belas que existe (o belo não é senão o começo do terrível[8]) e deve ser festejada. Por isso a última imagem do filme é um lago, circular como o nome Ana. Tudo refloresce.

[1] Certeiro, Jacques Rivette classificou o cinema de António Reis e Margarida Cordeiro como «pré-socrático». 
[2] Feita por Pedro Borges em Maio de 1985. 
[3] Poemas Quotidianos, de António Reis. Edições Tinta-da-China, Julho de 2017.
[4] Dos últimos versos da Primeira Elegia de Duíno, de Rainer Maria Rilke. Tradução de Paulo Quintela. Inova, 1969. 
[5] Mas reparem na beleza e simplicidade da sinopse: Naqueles dias... A lenda do leite na casa sombria. Tempo interior. Quase silêncio. Luz. A natureza como imemorial casa exterior. Inverno. O sangue recolhido nas duas mãos, mãe Ana. (Três gerações: uma avó, um filho cientista que vive na cidade e passa férias na aldeia, duas crianças – neto e neta. Harmonia só quebrada com a morte de Ana...)
[6] Numa entrevista ao programa Ecran (RTP), António Reis diz: Há o menino e a avó porque também há... O nosso rigor também vai a uma fraga e a uma erva. Se quiseres, a uma sombra e a uma luz. Não damos privilégio ao menino e à avó. Uma árvore tem o mesmo privilégio. Uma seara tem o mesmo privilégio
[7] Notas sobre o Cinematógrafo, de Robert Bresson. Tradução de Pedro Mexia. Porto Editora, 2000. 
[8] Dos primeiros versos da Primeira Elegia de Duíno, de Rainer Maria Rilke. Op. Cit. Rilke é um poeta essencial na relação entre Reis e Cordeiro e As Elegias de Duíno talvez sejam o livro mais esclarecedor sobre Ana.



sábado, 17 de agosto de 2024

357ª sessão: dia 19 de Agosto (Segunda-Feira), às 21h30


Segunda longa de Reis e Cordeiro para ver no Theatro Circo 
 
No mês de Agosto, o Lucky Star – Cineclube de Braga exibe as três longas-metragens assinadas por Margarida Cordeiro e António Reis, bem como as primeiras curtas-metragens de António Reis. As sessões realizam-se às segundas-feiras no pequeno auditório do Theatro-Circo e as cópias foram cedidas e digitalizadas pela Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema. 
 
Margarida Martins Cordeiro (Bemposta, 1938) e António Ferreira Gonçalves dos Reis (Valadares, 1927) conheceram-se no Porto entre finais dos anos sessenta e inícios dos anos setenta. Ela, médica psiquiatra, ele poeta e cineclubista. Juntos, criaram uma das obras mais inclassificáveis não só do cinema português, como do cinema mundial. 
 
A retrospectiva continua segunda à noite, às 21h30, com a exibição de Ana, a segunda longa-metragem assinada em conjunto pelos dois cineastas. Com fotografia de Acácio de Almeida, tal como Trás-os-Montes, o filme é protagonizado por Ana Maria Martins Guerra, mãe de Margarida Cordeiro, que interpreta uma versão ficcionada de si própria. 
 
A longa é sobre três gerações de uma família transmontana. Uma avó, Ana, um filho antropólogo que vive na cidade e passa férias na aldeia, e duas crianças, neto e neta, ela também Ana. Filmado com a família de Margarida Cordeiro e António Reis, a obra é dominada pela figura da mãe e avó que lhe dá o nome, e começa num dia “em que a neve e o vento eram mais puros.” 
 
A sessão será apresentada por Cristina Fernandes, escritora e tradutora natural do Porto que publicou recentemente C de C, um livro que reúne vários dos seus textos sobre cinema e não só. Mantém o blog bicho ruim com Rui Manuel Amaral. 
 
No Diário de Notícias de 30 de Junho de 1983, o cineasta francês Joris Ivens escreveu sobre este filme de António Reis e Margarida Cordeiro, dizendo que “há proliferação de símbolos em Ana, símbolos que são também signos, um código: a história, a mitologia com o discurso sabedor do professor. Flash-backs de 5000 anos!” 
 
“E Reis e Cordeiro,” prosseguia, “têm a coragem de recuar no tempo e no espaço, dizendo-nos: são as mesmas, são as mesmas gentes; os mesmos movimentos da humanidade que, finalmente, têm lugar nesta casa, é o próprio ciclo da vida: as montanhas, a água, o rio, e a relação do homem com a natureza, com o animal.” 
 
As sessões do cineclube ocorrem este mês às segundas-feiras, às 21h30, no pequeno auditório do Theatro Circo. Os sócios do Lucky Star - Cineclube de Braga têm entrada livre.

Até Segunda-Feira!

quarta-feira, 14 de agosto de 2024

Trás-os-Montes (1976) de António Reis e Margarida Martins Cordeiro



por Jessica Sérgio Ferreiro

Filme estreado em 1976, Trás-os-Montes leva-nos a percorrer o planalto Mirandês e os quotidianos dos seus habitantes, cujo registo nos dá testemunho de um mundo em vias de extinção. Apesar da recepção fria que este filme recebeu em Portugal, este foi bastante apreciado internacionalmente, inclusive por vultos do cinema do real. Trás-os-Montes é, indubitavelmente, a prova de um cinema pela arte, ou seja, de uma arte de comunicar e de criar sentido, envolvendo e convocando a comunidade local (atores não profissionais). Apesar dos meios de realização modestos (no interior transmontano, afastado dos centros urbanos e culturais, poucos recursos técnicos e financeiros disponíveis), Margarida Cordeiro e António Reis conseguem criar uma obra que nos transporta para o domínio da imaginação, onde o arcaico e o prosaico se cruzam com o sublime e o pitoresco. Trás-os-Montes poderia ser categorizado, de forma redutora, como uma docuficção ou uma etnoficção, pela qual retratos de vidas reais nos são apresentados de forma ficcionada. Porém, a estética poética e o lirismo que caracterizam este filme, afasta-o dos documentários e docudramas etnográficos da altura, para se firmar como um cinema de vanguarda, não-convencional, cuja originalidade ainda hoje se faz sentir. 

Realizado numa época conturbada, marcada pelo fim da ditadura, não nos remete directamente para um antes ou depois de um momento tão crucial e marcante da história portuguesa. Pelo contrário, a Terra Fria, região localizada no nordeste transmontano, surge como uma realidade paralela, um domínio à parte e não subalterno – um mundo que não se deixa incomodar pela fugacidade dos tumultos da civilização moderna. A imensidão da paisagem transmontana é a protagonista, as planícies e montanhas são habitadas por povoados exíguos que não perturbam a sua imponência magistral. As típicas casas de pedra e os hábitos que as ocupam ornamentam-na, a par com os sons naturais e as ladainhas entoadas. Por vezes, o filme parece carregar tons nostálgicos e melancólicos (ou talvez este sentimento seja mero efeito provocado no espectador contemporâneo, afastado desta realidade). Os planos longos surgem como pinturas vivas de lugares virginais, cuja candura e simplicidade é transposta para os modos de vida. As crianças têm uma presença forte no filme, reforçando uma ideia de inocência jovial ou de uma liberdade pura, possível entre campos, rios e searas. 

A cultura popular é-nos mostrada como lugar de memória e de conhecimento arquissecular, como um ente vivo que atravessa gerações para se pousar em cada corpo que a receba. É composta por práticas, cultos, rituais e labores que compõem os gestos diários que reproduzem e perpetuam uma memória incorporada capaz de resistir à erosão da matéria. Encontra-se presente na tecelagem da lã, na música e danças tradicionais que ocupam os tempos de ócio rural, nas brincadeiras de criança, nas lengalengas e ditados populares, bem como nas típicas lendas transmontanas de princesas mouras encantadas. Por vezes, também se ouve a língua Mirandesa, prova da capacidade de permanência da História oral. A narração e a representação ficcionada ou performativa destas práticas e tradições orais colocam em cena uma identidade transmontana performatizada. A par com estes elementos “invisíveis”, afigura-se a cultura material, tal como o pião de brincar, o velho gira-discos de caixa, os antigos teares, ou, ainda, os potes de ferro, com os quais se cozinha lentamente nas lareiras antigas das casas. O filme também articula arquétipos que nos remetem para um arcaísmo rural, figurado na mulher vestida de negro, no homem de capote transmontano (Capa de Honra Mirandesa), ou ainda no jovem pastor com o seu rebanho. Assim, o tempo ganha outra velocidade, outra dimensão história e sensorial, facilitada tanto pela estrutura e forma (tipos de planos, tempo de imagem, etc.) do filme como pelo conteúdo. 

Não obstante, estas visões aparentemente exaltadas ou romantizadas do mundo rural são subtilmente contrapostas com planos que nos contam que a morte coexiste, quando nos são relatados as longas jornas e os perigos do trabalho nas minas, onde, também, as crianças trajadas de adultos dedicam o seu tempo e esforço. Os problemas e dificuldades que afectam as gentes daquela região, bem como o subsequente êxodo crescente que levará à desertificação do interior, são compreensíveis quando se ouve a leitura de uma carta endereçada a um familiar emigrado ou, ainda, no depoimento audível, na segunda parte do filme. Subtilmente, é-nos contado que afinal este “mundo paralelo” faz parte de outro e é igualmente afectado pelas suas convulsões, remetendo-nos, por exemplo, para o conjunto de “Mundos perdidos” que Vittorio De Seta captou ou, ainda, para o filme O Movimento das Coisas (1985) de Manuela Serra. 

Assim, Trás-os-Montes revela-se como um conjunto de contos bucólicos antitéticos ao hipermodernismo industrial, apresentados de forma fragmentada, numa cronologia não-linear, veiculada através de uma poética da imagem que nos faz imaginar para além do imaginário colectivo, ou seja, do cliché, relembrando-nos, contudo, que no idílio coabita a aspereza da realidade.



sábado, 10 de agosto de 2024

356ª sessão: dia 12 de Agosto (Segunda-Feira), às 21h30


Primeira longa de António Reis e Margarida Cordeiro em Braga 
 
No mês de Agosto, o Lucky Star – Cineclube de Braga vai exibir as três longas-metragens assinadas por Margarida Cordeiro e António Reis, bem como as primeiras curtas-metragens de António Reis. As sessões realizam-se às segundas-feiras no pequeno auditório do Theatro-Circo e as cópias foram cedidas e digitalizadas pela Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema. 
 
Margarida Martins Cordeiro (Bemposta, 1938) e António Ferreira Gonçalves dos Reis (Valadares, 1927) conheceram-se no Porto entre finais dos anos sessenta e inícios dos anos setenta. Ela, médica psiquiatra, ele poeta e cineclubista. Juntos, criaram uma das obras mais inclassificáveis não só do cinema português, como do cinema mundial. 
 
A retrospectiva continua segunda-feira à noite, às 21h30, com a exibição de Trás-os-Montes, a primeira longa-metragem assinada em conjunto pelos dois cineastas. Com fotografia de Acácio de Almeida, o filme foi rodado nos anos de 1974 e 1975 em dezenas de freguesias da região de Trás-os-Montes, como Rio de Onor ou Bemposta, entre Bragança e Miranda do Douro. 
 
Trás-os-Montes conta com a participação de habitantes da região, que interpretam versões ficcionadas de si próprios e dos seus antepassados. Através dos anos e dos séculos, re-encenam os seus ritos nas suas paisagens ancestrais, indagando sobre a sua origem e o seu destino. Teve ante-estreia em Bragança, a 1 de Maio de 1976, e em Miranda do Douro no dia seguinte. 
 
Numa carta endereçada ao director do Centro Português de Cinema, em 1976, o cineasta francês Jean Rouch elogiou a obra escrevendo que “para mim, este filme é a revelação de uma nova linguagem cinematográfica. Nunca, tanto quanto sei, um realizador se havia empenhado, com tal obstinação, na expressão cinematográfica de uma região: quero dizer, a difícil comunhão entre homens, paisagens e estações. Só um poeta insensato poderia exibir um objecto tão inquietante.” 
 
O francês terminava dizendo que “apesar da barreira de uma linguagem áspera como o granito das montanhas, aparecem, de repente, na curva de um caminho novo, os fantasmas de um mito sem dúvida essencial já que o reconhecemos antes mesmo de o conhecer. Fico à espera, com uma curiosidade apaixonada, de uma versão legendada em francês para me poder aventurar neste fabuloso labirinto.” 
 
As sessões do cineclube ocorrem este mês às segundas-feiras, às 21h30, no pequeno auditório do Theatro Circo. Os sócios do Lucky Star - Cineclube de Braga têm entrada livre.

Até Segunda!

terça-feira, 6 de agosto de 2024

Jaime (1974) de António Reis



por António Cruz Mendes

A notoriedade de Jaime, logo depois da sua estreia considerado como uma referência fundamental do Cinema Novo na área do documentário, deve-se, tanto à sua qualidade cinematográfica, como ao facto de ter revelado a obra artística, até então desconhecida, de um doente do Hospital Miguel Bombarda. 

Em 1974, quando realizou este filme, António Reis era já um homem com uma estreita ligação ao cinema. Membro activo do Cineclube dos Porto, tinha sido assistente de realização de Manoel de Oliveira no Acto da Primavera (1963) e tinha realizado duas curtas-metragens, Painéis do Porto (1963) e Do Céu ao Rio (1964), em parceria com o produtor César Guerra Leal, que também serão exibidas nesta sessão do Lucky Star – Cineclube de Braga. Margarida Cordeiro, psiquiatra, trabalhava no Miguel Bombarda quando descobriu uma grande quantidade de desenhos a lápis e esferográfica realizados por Jaime Fernandes, um doente já falecido que esteve aí internado grande parte da sua vida. Jaime é o primeiro passo de uma fecunda colaboração entre os dois da qual nasceriam mais três filmes, obras telúricas e poéticas que, neste ciclo, teremos a oportunidade de visualizar. 
 
Jean Dubuffet criou o conceito de “arte bruta” para designar a produção artística de pessoas sem qualquer formação académica, totalmente alheados do “mundo da arte”, e que, por esse motivo, seriam capazes de transmitir com uma autenticidade mais crua e directa os sentimentos e visões que povoavam o seu mundo interior. Muitos desses artistas eram indivíduos alienados e os seus trabalhos manifestam de uma forma muito expressiva a sua complexa e perturbada visão do mundo. Durante muito tempo, a obra artística de Jaime Fernandes foi sobretudo conhecida através do filme de António Reis. Mas, em 1980, a Fundação Calouste Gulbenkian expôs setenta e quatro dos seus desenhos e, um ano depois, cinquenta desenhos de Jaime Fernandes figuraram na Bienal de S. Paulo na exposição Arte Incomum. Mais recentemente, em 2023, o Centro de Arte Oliva (S. João da Madeira) reuniu numa grande exposição muitas obras suas que, entretanto, se tinham dispersado por múltiplas colecções públicas ou particulares. 

Jaime Fernandes nasceu na aldeia de Barco, na Covilhã. Diagnosticado como doente esquizofrénico quando tinha 38 anos, viveu mais de 30 anos em regime de internamento hospitalar. Morreu em 1969, com 69 anos de idade. Poucos anos antes, começou inesperadamente a desenhar, com esferográficas coloridas, densas teias de linhas donde emergem figuras antropomórficas ou de fantásticos animais, cujos olhos, sempre representados em posição frontal, nos perscrutam e interrogam. 

O filme de António Reis organiza-se como que por camadas, onde se sucedem imagens do austero ambiente hospitalar, feito de silêncios e solidões, com as da terra de Jaime, onde, em condições de um grande primitivismo e pobreza, os seus familiares prosseguem a sua vida. E é sobre esse pano de fundo que nos são dadas a ver as imagens dos seus desenhos, bem como das longas cartas que escrevia à sua mulher e que esta confessa mal perceber. Nuns e noutros, Jaime revela os seus sonhos, tecidos entre as memórias de uma vida perdida e a experiência da sua reclusão hospitalar. São tentativas patéticas de lhe dar um sentido e, ao mesmo tempo, uma demonstração de como a arte pode surgir como força libertadora no seio das mais terríveis circunstâncias.



domingo, 4 de agosto de 2024

355ª sessão: dia 5 de Agosto (Segunda-Feira), às 21h30


Três curtas-metragens de António Reis para ver em Braga 
 
No mês de Agosto, o Lucky Star – Cineclube de Braga vai exibir as três longas-metragens assinadas por Margarida Cordeiro e António Reis, bem como as primeiras curtas-metragens de António Reis. As sessões realizam-se às segundas-feiras no pequeno auditório do Theatro-Circo e as cópias são cedidas e digitalizadas pela Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema. 
 
Margarida Martins Cordeiro (Bemposta, 1938) e António Ferreira Gonçalves dos Reis (Valadares, 1927) conheceram-se no Porto entre finais dos anos sessenta e inícios dos anos setenta. Ela, médica psiquiatra, ele poeta e cineclubista. Juntos, criaram uma das obras mais inclassificáveis não só do cinema português, como do cinema mundial. 
 
A retrospectiva terá amanhã à noite, às 21h30, com a exibição de Painéis do Porto, curta-metragem de António Reis apoiada pela Câmara Municipal do Porto nos anos sessenta, Do Céu ao Rio, outra curta de Reis co-realizada com César Guerra Leal e Jaime, um trabalho sobre o artista Jaime Fernandes que marca o primeiro encontro com Margarida Cordeiro. 
 
Jaime Fernandes nasceu em 1900 na freguesia do Barco, na Beira Baixa, trabalhando como camponês e casando com Evangelina Delgado, de quem teve um filho aos 24 anos. Aos 38 foi diagnosticado com esquizofrenia e internado no Hospital Miguel Bombarda, em Lisboa. Começou a pintar aos 65 anos, ainda internado, e faleceu quatro anos depois. Por essa altura, Margarida Cordeiro trabalhava lá como psiquiatra e reparou nos desenhos enigmáticos e penetrantes de Jaime, propondo a António Reis que se fizesse um filme sobre eles. 
 
Apoiada pela Câmara Municipal do Porto, nos anos sessenta, Painéis do Porto é um ensaio visual sobre a cidade, com sequências filmadas entre a Ribeira e a Baixa e leituras de poemas de Vasco de Lima Couto, Egito Gonçalves, Rosália de Castro, Pedro Homem de Mello, Fernando Pessoa, e do próprio António Reis. A música é assinada por Francisco Rebelo. 
 
O segundo trabalho realizado por António Reis em parceria com César Guerra Leal, Do Céu ao Rio, estreou no cinema Ódeon, em Lisboa, a 29 de Janeiro de 1964, e presume-se que seja uma encomenda da Hidro-Eléctrica do Cávado, pois revela vários aspectos da construção da rede de barragens dessa bacia hidrográfica. É narrado por Fernando Pessa. 
 
As sessões do cineclube ocorrem este mês às segundas-feiras, às 21h30, no pequeno auditório do Theatro Circo. Os sócios do Lucky Star - Cineclube de Braga têm entrada livre.

Até amanhã!

quarta-feira, 31 de julho de 2024

Em Agosto, no Lucky Star:




Glocken aus der Tiefe - Glaube und Aberglaube in Rußland (1993) de Werner Herzog



por Jessica Sérgio Ferreiro

A dissolução da União Soviética e a subsequente instabilidade vivida na Rússia colocou em xeque a ideologia defendida pela União Soviética, baseada no materialismo histórico, pelo qual o devir civilizacional se cumpriria pela modernização tecnológica e pela colectivização dos meios de produção, intento que uniria nações neste projeto comum. Esta premonição teleológica, preconizada pelo racionalismo científico não se coadunava com a religião e a crendice que eram consideradas contra-produtivas e contrárias ao sentido ou destino, tido como único, da história humana e que a União Soviética idealizava. 

Contrariamente ao postulado, Herzog, na procura constante de imagens do mundo, ou de diferentes mundos, que fujam do brutalismo dos blocos de cimento impessoais da civilização moderna, como reitera no documentário de Wim Wenders, Tokyo-ga de 1985, mostra-nos uma Rússia supersticiosa e sedenta por uma transcendência religiosa. 

Nesta procura pelo exótico, proporcionada pela imensidão da massa terrestre e diversidade cultural que compõem a Rússia, Herzog encontra, nas zonas mais recônditas (e ainda no rescaldo da dissolução da União Soviética), pessoas e comunidades que aderem a performances de devoção ao sagrado. Na busca pelo sublime, por um sentido para a existência além do mundo material, Herzog traz para a cena pessoas que, unidas pela crença, encontram nas práticas místicas, xamânicas e religiosas, o apaziguamento necessário para as suas inquietações mundanas. 

No primeiro acto, entra em cena um homem, pertencente aos povos autóctones da Sibéria, que perfomatiza um cântico difónico e gutural para comunicar com os espíritos, o qual vemos, depois, a realizar uma cerimónia/bênção xamânica em casa de uma família. De seguida, é-nos apresentado outro género de Xamã: Vissarion – “O Redendor” (The Redeemer), reencarnação de Deus na terra, que tem a aparência de um ícone vivo e universal, que qualquer pessoa reconheceria como a personificação de Jesus Cristo. Vissarion está em todo o lado, abençoa uma devota na floresta e, logo depois, de frente para a câmara e de costas para o lago, enquadrado num plano médio, professa um sermão coerente sobre as desigualdades no Mundo e a opressão que uns exercem sobre os outros. Vissarion também realiza visitas para reconfortar aqueles que precisam, atenuando aflições com as palavras do Senhor. O profeta voltará a entrar em cena, na parte final do filme, para abençoar os espectadores com o seu derradeiro discurso. 

Ainda na primeira parte, são mostrados diversos pastores, curandeiros e líderes espirituais a realizar “transmissões cósmicas”, baptismos e outros tipos de expurgações dos males que acossam a alma. A narração de Werner, que nos traduz o que é dito pelas curiosas personagens, dá uma ênfase dramática extra ao conteúdo, por exemplo, aquando do exorcismo a um grupo de mulheres, ouve-se relatar o seguinte: “I sorcerer of Russia, command you open your hearts like the gates of Hell”, enquanto assistimos e ouvimos os gritos de desespero de uma das participantes. 

No entreacto, somos confrontados com a estória de um ex-operador de projecção de cinema que se dedica a arte de tocar os sinos. Os planos médios e aproximados permitem-nos observar de mais perto cada gesto e movimento do músico, enquanto ouvimos as intrincadas melodias que nos transportam às profundezas de um mundo antigo. A graciosidade da música ilude-nos por instantes, o relato do artista denuncia os modos de um mundo violento, assim como as mágoas, a solidão e a melancolia que dele resultam, encontrando, contudo, na prática artística, a fé e alegria necessária para dar sentido à sua condição humana. 

Na segunda parte são-nos contadas as estórias em torno da cidade perdida de Kitezh, a qual se encontraria submersa, no fundo do lago Svetloyar, segundo reza a lenda ortodoxa, a par com a estória da catedral soterrada debaixo de uma montanha, cheia de crianças com velas na mão. Relato, o qual, se faz acompanhar por imagens de peregrinos a cumprir promessa de joelhos pelos trilhos da floresta verdejante até alcançarem o lago. Já na parte final do filme, vemos outros peregrinos, no inverno, a rastejarem, deitados de barriga para baixo, contra o gelo do lago cristalizado, como que à procura de um vislumbre da cidade afundada por Deus. Porém, sabe-se que esta última cena foi simulada a pedido do realizador. No final do filme, vemos o mesmo lago cheio de pessoas, umas a pescarem, outras a patinarem sobre o gelo, emergindo, deste modo, à superfície o mundo que até agora nos tinha sido escondido pelo realizador. 

Ao longo do filme, somos confrontados com o nosso cepticismo, sensação que nos chega através da dobragem feita por Herzog, levando-nos a questionar, por vezes, o que está realmente a ser dito, mas, também, quando, ironicamente, nos é traduzido que Vissarion alerta, os seus crentes, sobre possíveis impostores, disfarçados de profetas. O formato do filme, também, exacerba este pressentimento, por nos remeter para o documentário televisivo ou jornalístico que pregoa a neutralidade e assume para si mesmo o status de comunicador da verdade, mas que, geralmente, se sustém num par de factos recolhidos que carecem de um contexto. Assim, Herzog consegue confundir o espectador, mesclando real e ficção, cepticismo e empatia. Porém, é através de elementos ficcionais que verdades “mais verdadeiras” emergem, ou seja, que melhor se representa o real e a complexidade humana, favorecendo a identificação e a introspeção por parte dos espectadores. 

Em Badaladas das Profundezas a submissão dos sujeitos a um qualquer poder misterioso confere ao humano a qualidade de humano, assumindo-se o seu aspecto frágil e sensível, a sua condição vulnerável num Mundo imenso e repleto de mistérios. É assim que Werner Herzog nos ensina que lendas e mitos, rituais religiosos e práticas místicas são, de facto, tão história quanto a História. É a componente poética que caracteriza o seu cinema de verdade-extática – o que é mostrado trespassa a verdade factual, transcende-a para se encontrar com o âmago da experiência humana, deixando, contudo, espaço para o espectador tirar as suas ilações.