sábado, 19 de outubro de 2024

365ª sessão: dia 22 de Outubro (Terça-Feira), às 21h30


Dois filmes de Jean Rouch para ver na biblioteca 
 
Durante o mês de Outubro, o Lucky Star – Cineclube de Braga exibe catorze filmes em parceria com os Encontros da Imagem, com sessões às terças e quintas-feiras no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva. O ciclo adopta um termo cunhado pelo poeta e ensaísta Édouard Glissant, intitulando-se “Cinema Todo-Mundo - colonialismo e a memória do futuro”. 
 
Terça à noite, às 21h30, exibem-se dois filmes rodados pelo cineasta francês Jean Rouch nos anos cinquenta, a longa-metragem Moi, un noir e a curta Les maîtres fous
 
Em Moi, un noir, dois jovens nigerianos, inábeis nos modos de vida moderna regidos pelos primados do liberalismo económico, deambulam pela cidade de Treichville, na Costa do Marfim, ainda sob domínio francês, à procura de trabalho. 
 
Nesta etnoficção, Rouch aplica o que denominou por “antropologia partilhada”, incentivando os envolvidos a auto-representarem-se. Os protagonistas auto-nomeiam-se com nomes fictícios, recorrendo a referências de filmes estadunidenses que povoam o imaginário coletivo para construir a narrativa dos seus quotidianos, contada em voz-off, mesclando realidade e ficção. 
 
Les Maîtres Fous mostra-nos os rituais praticados no Gana pelos Haouka, um grupo de imigrantes originários da Nigéria. Durante as cerimónias, realizadas anualmente, incorporam e mimetizam as figuras do poder colonial em estado de transe, como que possuídos por demónios antigos. Entre coreografias e expurgações, o trauma colonial é desvelado, pondo a nu a violência arqui-secular cravada nos corpos e nas mentes.
 
"O latim é uma coisa essencial que se abandonou," disse Jean Rouch em entrevista a José da Silva Ribeiro quando este lhe perguntou qual deveria ser a formação de alguém que quer fazer filmes etnográficos. "Foi um erro enorme, os grandes poetas franceses faziam versos latinos, Rimbaud, Baudelaire, que acabei de citar, faziam versos latinos. Porquê? Porque um verso latino constrói-se pelas últimas palavras, para obter a rima. Por isso, constrói-se ao contrário, o cinema é isso. A narrativa cinematográfica deve saber para onde vai. Assim monta-se um filme ao contrário. Parte-se da última imagem e faz-se a montagem para sabermos para onde vamos. E é assim que eu faço a montagem e é também assim que faço a realização. Plano a plano. Eu filmo, sempre que possível, os meus filmes, nem sempre é possível, por ordem. Como tenho cenários naturais, não há cenários a construir, é fácil partir de uma história e saber como terminamos cada sequência e aí, de repente, há um momento extraordinário, quando se filma com pessoas que improvisam, eu próprio improviso e a um determinado momento, alguém tem a última palavra e ter a última palavra é contar uma boa história. Em francês dizemos “uma história sem pés nem cabeça”. A cabeça está à frente dos pés, é por isso que é muito importante sabermos para onde vamos. É isso que faz o raccord. Na dança é a mesma coisa. O importante é a paragem. Em música é a mesma coisa, é a pausa, por isso, a primeira coisa é aprender esta espécie de ritmo, de montar as coisas pelo fim."

As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, durante este ciclo às terças e quintas às 21h30. A entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Até Terça-Feira!

sexta-feira, 18 de outubro de 2024

Margot (2022) de Catarina Alves Costa



por Virgílio Oliveira e Jessica Sérgio Ferreiro

Vigarizaram-nos de forma inenarrável ao ensinar-nos sobre a África “portuguesa”. Fizeram-nos aprender os rios, as vias-férreas o nome das províncias e os nomes das respetivas capitais, e dramaticamente não nos ensinaram nada sobre os afetos. A dada altura, quando nos é mostrado um excerto de um filme feito pelo Estado Novo, com aquela voz de timbre e tom decentes e que era indubitavelmente reconhecida como voz da propaganda, quase que choramos de raiva. Choramos porque os desordeiros têm a mania de ordenar os outros. A instrumentalização das imagens das danças Mapiko, que Margot recolheu dos Maconde, é desvirtuada por uma narração sobranceira e preconceituosa. 

Margot Dias (1908 - 2001) foi uma pianista alemã e etnomusicóloga que, juntamente com o antropólogo Jorge Dias, realizou várias missões etnográficas em África durante a ocupação colonial, confrontando-se com problemas ético-políticos inerentes ao sistema colonial e que, por conseguinte, afectavam o trabalho de campo e a relação que mantinha com a comunidade Maconde, especialmente após o Massacre de Mueda, em 1960. 

O filme começa com a entrevista que a realizadora fez a Margot em 1996, esta já com 88 anos. Várias passagens dos diários de Margot são lidos por esta, à medida que também nos conta as suas memórias de África. Catarina Alves Costa recorre aos diários de campo de Margot para nos narrar (em voz-off) as imagens que Margot registou, proporcionando-nos profundidade e complexidade aos apontamentos ou fragmentos vídeo-sonoros que isolam as práticas musicais e ritualísticas, ou seja, dão-nos uma visão do que ficou fora do campo de imagem. Assim, é nos dado a conhecer o contexto político-social da altura, bem como as impressões pessoais de Margot acerca da sua relação com as comunidades e das circunstâncias vividas. 

Partimos/transitamos, deste modo, entre a crítica a um regime de pensamento e de representação, que podemos classificar de “ocidental” (modo de fazer ciência), que tem o “outro” e a sua cultura como objecto de estudo. A obsessão em dissecar, descrever e compreender as práticas e hábitos culturais do “exótico”, bem como registar, guardar e conservar os objectos retirados do seu contexto, usos e simbolismo, está patente nas estantes do Museu Nacional de Etnologia, em Lisboa, que as imagens atuais, captadas por Catarina Alves Costa, nos mostram das máscaras, usadas no rito de iniciação Likumbi, e dos vasos de barro escuro e de desenhos brancos. Em contraponto, vemos as filmagens antigas de Margot que nos esclarecem sobre a origem e função destes objectos e rituais, de par com a música e os instrumentos musicais tradicionais, mas que revelam o mesmo interesse pelo desvendar dos segredos do “outro”[1] (ex: rituais de iniciação feminina, normalmente velada). 

Catarina Alves Costa revisita todo o material recolhido e viaja até Moçambique, como Margot fizera décadas antes, para devolver as imagens e registos sonoros que a musicóloga Margot Dias registou do povo Maconde para a Missão de Estudos das Minorias Étnicas do Ultramar Português, ou seja, para o Estado Novo, levando-nos a problematizar posicionamentos ético-políticos. 

Assim, Margot representa o sujeito colonial e encarna as “crises” da antropologia na época colonial e pós-colonial. Não obstante, o filme não se contenta com uma visão simples polarizada de Margot e do próprio trabalho antropológico, demonstrando e comprovando as ambivalências e complexidades intrínsecas ao ser(-se) humano. A leitura dos diários revela-nos o olhar crítico que Margot e Jorge já tinham da violência colonial, da desigualdade e falta de respeito para com os africanos. Percebemos, ainda, a relação emocional estabelecida entre as várias pessoas envolvidas nos estudos das missões etnográficas e a importância desta para Margot. 

Catarina Alves Costa percorre os locais e pisadas de Margot, na expectativa de, porventura, reencontrar pessoas que a tenham conhecido, para recolher, por sua vez, memórias acerca da destemida investigadora, e, em jeito de retorno, talvez reencontrar-se a si mesma, enquanto antropóloga, mulher e pessoa. Assim, à medida que a investigadora mostra aos moçambicanos de Hoje, as imagens do seu passado e sua cultura, são reativadas memórias, partilhas e emoções. A importância em descolonizar a cultura e o pensamento são evocadas pelos jovens músicos de origem Maconde que tentam recuperar as artes musicais do seu povo, bem como a emergência em resgatar a sua cultura e identidade, perdida gradualmente ao longo dos vários conflitos (guerra colonial e Guerra Civil Moçambicana) e do subsequente êxodo rural para as cidades, mas, também, em prol de uma cultura-mundo (conceito de Gilles Lipovetsky, entenda-se, cultura hegemónica como a cultura de consumo e das indústrias culturais). 

*

Assim, este filme leva-nos numa viagem pelo tempo, revisitando modos de vida que coabitavam com o passado colonial, para chegar à actualidade, composta pelos mesmos “lugares de memória” de outrora, estando, contudo, em cena, novos atores e costumes, salvaguardando-se o arquivo e a memória partilhada entre dois povos. 

Este documentário revela, ainda, a importância do trabalho etnográfico desenvolvido e do cinema como “lugar de memória viva”, que poderíamos precipitada e erradamente julgar como uma forma de mortificar a memória. Neste gesto que Margot, de forma pioneira, iniciou e que Catarina perpetua, a memória do passado, presente e futuro continuarão a nutrir os imaginários dos que virão depois, como é tão bem declarado por um escultor de estatuetas na segunda metade do filme. 

O filme termina com o fim da missão etnográfica e a despedida de Margot, “forçada” a deixar Moçambique devido à intensificação das tensões entre o poder colonial e as forças de libertação, pois sabemos que os Maconde, situados no planalto a norte e sul do rio Rovuma, foram guerrilheiros importantes, existindo um bairro específico para estes em Maputo (e que Catarina visita). Depois do Massacre de Mueda em 1960, em que centenas de trabalhadores (Maconde) das produções de algodão reclamavam por melhores condições de trabalho, foram assassinados pelas autoridades portuguesas, acontecimento dramático que teve impacto na relação que Margot tinha com a comunidade. Apesar de ter sido bem recebida e integrada quando voltou sozinha em 1961 a relação altera-se, como a própria narra emocionada na entrevista com Catarina, referindo a gentileza e o tacto com que foi tratada, relendo o momento em que lhe fizeram uma pulseira de barro e lha colocaram, como tipicamente fazem as mulheres Maconde quando vão pela primeira vez buscar barro. Contudo, o início do conflito armado (indícios que por vezes se notam quando surgem, inadvertidamente, no campo de imagem de Margot, uma ou outra AK-47, por entre aqueles que executam danças tradicionais) e a desconfiança ou, melhor, as precauções que os Maconde tomam em relação a Margot Dias, talvez por ordem da FRELIMO, impossibilitam o seu trabalho etnográfico e obrigam-na a regressar à metrópole. 

Em suma, o que a Catarina consegue é fazer um extraordinário filme que nos conta a história toda, alinhando os sucessivos apontamentos e registos que Margot deixou para a memória do futuro.

[1] Como o filósofo e escritor da Martinica Édouard Glissant acusa, defendendo o direito à opacidade.




quarta-feira, 16 de outubro de 2024

364ª sessão: dia 17 de Outubro (Quinta-Feira), às 21h30


Moçambique em foco esta semana no cineclube 
 
Durante o mês de Outubro, o Lucky Star – Cineclube de Braga exibe catorze filmes em parceria com os Encontros da Imagem, com sessões às terças e quintas-feiras no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva. O ciclo adopta um termo cunhado pelo poeta e ensaísta Édouard Glissant, intitulando-se “Cinema Todo-Mundo - colonialismo e a memória do futuro”. 
 
Esta quinta-feira exibe-se Margot de Catarina Alves Costa, antropóloga e realizadora portuguesa. Realizou vários documentários etnográficos, lecciona e desenvolve investigação na área do cinema e da antropologia. É, ainda, autora do livro Cinema e Povo. Representações da cultura popular no cinema português (2021) e estará presente nesta sessão. 

Em Margot, o passado colonial é explorado a partir do trabalho da etnomusicóloga alemã Margot Dias, realizado, entre 1958 e 1961, na região de Mueda, em Moçambique. Os registos das práticas culturais dos Maconde são revisitados pela realizadora que se desloca até Moçambique para os partilhar com a comunidade, num gesto de restituição da memória, procurando, por sua vez, testemunhos acerca da passagem de Margot.

"Foi um filme que comecei a trabalhar há muitos anos," disse Alves Costa sobre o seu filme em entrevista ao diário 7MARGENS no ano passado, "ainda quando trabalhava no Museu de Etnologia, então dirigido por Joaquim Pais de Brito e surgiu a ideia de fazer um guia dos filmes da Margot Dias. Nesta altura, conheci o trabalho dela e nunca mais deixei de pensar no assunto. Sonorizei para um DVD os seus arquivos para a Cinemateca e a ideia do filme foi surgindo. Já sabia tantas coisas sobre aquela história.

Quando lhe perguntaram na mesma entrevista como foi o encontro com Margot Dias, a realizadora respondeu que "foi uma pessoa com uma capacidade enorme para mudar a sua vida já numa fase madura. Foi inicialmente pianista e começou a dedicar-se à Antropologia quando conheceu Jorge Dias. Era uma pessoa muito fascinada por África. O filme conta um pouco a história do trabalho destes investigadores durante a guerra colonial, onde se cruzavam personagens complexas e não tanto os bons e os maus. Ela filmou o povo da etnia “Makonde”, no Norte de Moçambique e procurei ir à procura da forma como essas pessoas olham para esta história. É um filme com várias camadas e muito pessoal. Também entro no filme…"
 
As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, durante este ciclo às terças e quintas às 21h30. A entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Até Quinta!

KARINGANA os mortos não contam histórias (2020) de Inadelso Cossa



por Jessica Sérgio Ferreiro

Inadelso Cossa é um jovem realizador e produtor moçambicano, nascido em 1984, que conta com várias metragens que se focam, principalmente, nas memórias e pós-memórias da guerra colonial e da guerra civil moçambicana, tal como a curta-metragem Uma memória quieta (2014), que retrata a violência exercida pela PIDE em Moçambique, a longa de documentário Uma memória em três atos (2017), sobre o trauma pós-colonial e o esquecimento ou as rasuras da memória e, ainda, a sua mais recente longa de ficção As Noites ainda cheiram a Pólvora (2024), ainda a correr os festivais. 

Em KARINGANA os mortos não contam estórias (2020), o protagonista chega ao que nos parece uma terra desertificada. Trazido por um carroceiro e seu burro, relembra-nos o Caronte que transporta os mortos para o submundo. O protagonista chega, assim, à sua terra natal, à aldeia desaparecido depois da guerra colonial e da Guerra Civil Moçambicana, que durou 16 anos e teve início 2 anos após a Independência. Tema, o qual, o filme anterior Kuxa Kanema – O nascimento do cinema, exibido nesta sessão explora. 

O protagonista de KARINGANA os mortos não contam estórias, procura o velho Yamba para que lhe devolva a memória de um passado que esqueceu, ou seja, que não viveu, mas que sente no âmago do seu ser, um vazio que o desterro deixou antes do seu nascimento e da tomada de consciência na linha do tempo presente. Este exílio refere-se ao trauma da guerra e seus refugiados, ao stress pós-traumático, bem como todas as marcas que deixou naqueles que herdaram as dores que os seus ascendentes emanavam, expressavam ou reprimiam, refere-se assim à pós-memória e, em específico, à pós-memória do trauma. Em suma, a personagem principal procura entender a história do seu país e forjar a sua identidade, fora da linha de tempo a que pertence e da qual não é possível retirar-se. 

“Karingana wa Karingana” é uma expressão dos Ronga de Moçambique, similar a “era uma vez”, diz respeito à prática cultural de contar estórias (oralmente), ao conhecimento imbuído nas fábulas, nos contos e na poesia, ou seja, é o reportório cultural de um povo, a memória incorporada e a História Oral de um povo. Karingana é a prática através da qual a herança cultural é transmitida de geração em geração. Contudo, a necessidade do protagonista ouvir as estórias do velho Yamba não pode ser satisfeita, porque o velho sábio está surdo e mudo, de olhos inflamados e vidrados, preso no passado que o trauma lhe traz de volta à retina incansavelmente. A repetida ocorrência vívida e literal do trauma que surge na consciência pelo inconsciente do velho é declarada pelo protagonista/narrador que encontra o velho Yamba num canto escuro de um quarto/sala, em silêncio, com o olhar fixo num horizonte que não conseguimos ver, uma realidade paralela, um passado longínquo, incrustado na mente do velho sábio que já não pode contar estórias. 

Assim, como o olho gasto do velho Yamba que, através de uma visão esférica e constrita, revive as memórias traumáticas que lhe surgem no interior da mente e do olhar, o protagonista procura na sua câmara de filmar de 8mm, no arquivo e no cinema em geral, imagens do passado e do que dele restou. Olhar, o qual, nos é mostrado através de uma lente grande-angular, quase de olho-de-peixe, dando-nos a impressão de que também estamos a espreitar pelo ocular do visor da câmara de filmar, como o protagonista, tentando captar o passado (registado), surgindo as imagens de arquivo dos refugiados de guerra, mas também da bela mulher (Kaila) que se banhava nas águas calmas do rio, mas que já desaparecera com a possibilidade do sonho do protagonista se poder juntar a ela (morte da utopia). 

Esta procura do passado no que ficou registado dele e no acto de filmar o que dele restou no presente, não nos permite, contudo, aceder ao que o velho Yamba vivenciou, viu e vê na solidão do seu silêncio, pois, como a reaparição do trauma, mesmo que literal, é o atraso próprio do trauma e da sua re-ocorrência (reviver do trauma por aquele que sofre de stress pós-traumático) na linha de tempo presente que não nos permite testemunhar o próprio tempo e o que já aconteceu, muito menos participar ou alterar o passado que teima, também, em assombrar os contemporâneos que são os herdeiros da memória coletiva de um povo que sofreu. Não obstante, o esforço do protagonista na luta contra o tempo, através da sua máquina de filmar (câmara como arma) não é totalmente mal-sucedida. É no silêncio e no deserto das ruínas do passado, que a câmara de filmar do protagonista captou, que encontramos o indizível, o irrepresentável (como o próprio afirma no final: “Qual estória narrar?” Como representar o que não se vivenciou, o passado insondável e complexo? Como representar o irrepresentável, a violência e o terror?). 

O velho Yamba, de par com a bela jovem – o fantasma de Kaila, poderão significar, também, todos aqueles que pereceram na guerra e aqueles que já se foram e não puderam contar as suas estórias ou curar-se do trauma do terror, pois os mortos não dizem poesia, nem ouvem poesia. Os mortos não contam estórias.



Kuxa Kanema - O Nascimento do Cinema (2003) de Margarida Cardoso



por António Cruz Mendes

Margarida Cardoso, nascida em Tomar, viveu em Moçambique até aos 12 anos de idade. Regressada a Portugal, estudou cinema e comunicação visual na escola António Arroio e trabalhou como assistente de realização, anotadora e fotógrafa de cena com vários realizadores (Joaquim Leitão, João Botelho, Luís Galvão Teles, Luís Filipe Rocha...) e iniciou a sua carreira como realizadora em 1996. 

Kuxa Kanema, a sua segunda longa-metragem, uma montagem de imagens de filmes produzidos pelo INC intercalada por depoimentos de pessoas que estiveram envolvidas na sua realização, pode ser abordada a partir de diferentes linhas de leitura. 

Numa primeira abordagem, é um documentário que começa por nos informar das condições de vida do povo moçambicano, sobretudo nas zonas rurais, à data da independência. A imagem das palhotas, das crianças descalças, da ausência de estruturas básicas de saúde e educação, revelam uma situação de subdesenvolvimento económico fundado numa agricultura de subsistência. Mas dá-nos também notícia das esperanças emancipadoras despertadas pela independência, bem patentes nas imagens dos grandes comícios e do entusiasmo despertado pelas palavras de Samora Machel. E, depois, das consequências da guerra de agressão perpetrada pela África do Sul e pela Rodésia, mais tarde prolongada pela guerra civil desencadeada pela RENAMO, os “bandidos amados” de que nos fala a propaganda oficial. Acontecimentos trágicos que fizeram de Moçambique um dos países mais pobres do mundo. 

Ao mesmo tempo, o filme de Margarida Cardoso documenta a história do INC, criado logo após a independência e produtor de um jornal cinematográfico de actualidades, meio imprescindível de comunicação num contexto caracterizado por uma taxa de alfabetização muito baixa. O filme fala-nos do seu nascimento, do voluntarismo dos intervenientes e da criação necessariamente apressada dos recursos técnicos e humanos indispensáveis ao seu funcionamento, do acolhimento entusiasta das unidades móveis que se deslocavam às aldeias para aí projectar os filmes realizados. E, depois, a sua decadência, vítima das circunstâncias da guerra (salas de cinema destruídas, unidades móveis impedidas de se deslocarem com segurança) e, por fim, do advento da televisão como meio privilegiado da comunicação social. 

Mas, o filme de Margarida Cardoso pode ainda ser lido como uma reflexão acerca dos vínculos que relacionam o cinema com o poder e, neste caso, com o poder político. “Captar as imagens do povo e devolvê-las ao povo” era o lema do projecto do INC. Mas, esse processo teria que ter necessariamente um programa director. O que filmar? Que critérios deveriam presidir às filmagens? Quando Jean-Luc Godard, de visita a Moçambique, propôs que os meios de que dispunha fossem oferecidos à população para que ela os pudesse usar como entendesse, essa proposta “maluca” foi rejeitada pelo governo. As autoridades moçambicanas nunca poderiam abdicar completamente da sua supervisão sobre a actividade cinematográfica. Não havia, é certo, tal como nos é dito, uma “comissão de censura” e a liberdade dos realizadores era considerável. Mas, todos tinham consciência do significado político das suas opções e acabavam por ser eles próprios, a submeter-se a uma espécie de auto-censura. Não havia, nem nunca poderia haver, filmagens que, face a dilemas inevitáveis, pudessem assumir uma posição neutral. O que filmar? Como filmar? Qualquer opção que fosse tomada reflectiria necessariamente uma determinada perspectiva dos acontecimentos vividos. E isso tornou-se ainda mais patente num cenário de guerra de agressão e de guerra civil. Era inevitável tomar partido e, a partir de certa altura, essa obrigação foi-se traduzindo numa mensagem cada vez mais maniqueísta, mais simplista, mais distante da realidade. 

De certa forma, a história contada em Kuxa Kanema confunde-se com a história de Moçambique. O estado de abandono das suas instalações do INC, parcialmente destruídas por um incêndio e, desde então, nunca recuperadas, as bobinas enlatadas que apodrecem ao abandono, guardadas por funcionários que, inactivos, esperam o dia da sua reforma, podem também ser vistas como a metáfora de um sonho que se perdeu nas encruzilhadas da história. Neste sentido, o filme de Margarida Cardoso é também um acto de resistência. Ao ressuscitar desse cemitério as imagens de um tempo de grandes esperanças, ele recorda-nos que a crença num mundo melhor é, em última análise, imorredoura.



sábado, 12 de outubro de 2024

363ª sessão: dia 15 de Outubro (Terça-Feira), às 21h30


Moçambique em foco esta semana no cineclube 
 
Durante o mês de Outubro, o Lucky Star – Cineclube de Braga exibe catorze filmes em parceria com os Encontros da Imagem, com sessões às terças e quintas-feiras no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva. O ciclo adopta um termo cunhado pelo poeta e ensaísta Édouard Glissant, intitulando-se “Cinema Todo-Mundo - colonialismo e a memória do futuro”. 
 
Terça-feira à noite exibir-se-ão então dois filmes: Kuxa Kanema: O Nascimento do Cinema de Margarida Cardoso, importante cineasta portuguesa que realizou vários documentários e longas de ficção que exploram a temática colonial e pós-colonial, como Banzo, Yvone KaneCosta dos Murmúrios e Natal de 71. E a curta-metragem KARINGANA os mortos não contam estórias de Inadelso Cossa, jovem realizador moçambicano que conta várias metragens que se focam, principalmente, nas memórias e pós-memórias da guerra colonial e da guerra civil moçambicana.. 
 
Kuxa Kanema centra-se no Instituto Nacional de Cinema e no “cinema ambulante” implementados pelo governo moçambicano após a independência. A crença na possibilidade de uma política diferente, erigida sobre valores da liberdade e igualdade, uniu vários realizadores que aspiravam ver crescer Kuxa Kanema, o cinema de todos para todos. 

"Eu não fiz nada específico para voltar a África," disse Margarida Cardoso numa mesa-redonda de 2010 com Ana Paula Ferreira e a escritora Lídia Jorge, "aconteceu um dia ter ido lá, por questões de trabalho e, claro que aqui há uma grande diferença, eu voltei ao território da minha infância, Moçambique, e não fui recebida no aeroporto por um grupo de ninjas que me atacaram e que me fizeram fugir e eventualmente poderia nunca mais ter voltado a Moçambique. Porque eu sei que há muitas coisas que quero procurar. Sempre tive a fantasia de que as poderia encontrar, a essência do que se passou lá, que mal destruiu a minha narrativa. Houve qualquer coisa que a destruiu e o que a destruiu foi o mal. E eu sempre tive essa fantasia de que ia chegar lá e que me iria sentir melhor comigo mesmo se fisicamente eu fosse encontrar os traços e a razão daquele mal. Ele tinha que lá estar, ele tinha que lá estar, eu tinha a certeza. Mas, mesmo assim, tive a sorte de realmente não ser mal recebida, no sentido em que a questão não é ser mal recebida pelo ataque dos ninjas de que eu estava a falar, é só uma metáfora, porque, na realidade, hoje em dia, toda a minha relação com Moçambique, tem a ver com toda essa possibilidade de trazer os fantasmas e de os colocar lá, porque eles são meus, não estavam lá, eu levei-os para lá, levei-os e segui-os e eles puderam andar"
 
Em KARINGANA, Inadelso Cossa explora a pós-memória e a história oral – Karingana, a arte de contar estórias ou a História Oral de um povo. A personagem principal, de volta à sua aldeia natal, procura saber o que aconteceu, mas encontra o único habitante mudo, entorpecido pelo trauma da guerra, restando-lhe apenas o cinema para lhe dar respostas. 
 
As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, durante este ciclo às terças e quintas às 21h30. A entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Até Terça-Feira!

sexta-feira, 11 de outubro de 2024

Nome (2023) de Sana Na N'Hada



por Jessica Sérgio Ferreiro

Nome (2023) de Sana Na N’Hada, similarmente ao filme Acto dos Feitos da Guiné (1979) de Fernando Matos Silva, exibido na sessão anterior, é um trabalho de memória, de reflexão sobre o passado. Contudo, este filme não reflecte apenas sobre as consequências do colonialismo e das inevitáveis lutas de libertação, mas, e sobretudo, foca-se nas aspirações frustradas da luta pela liberdade e igualdade. Assim, este filme permite dar continuidade à história que Fernando Matos Silva nos contou em Acto dos Feitos da Guiné, a partir de uma visão de dentro, do olhar guineense e de alguém que esteve envolvido nas lutas de libertação e que viu e assiste às transformações que Guiné-Bissau sofreu. 

Sana Na N’Hada, como contou na entrevista à Films en Bretagne – Union des professionnels, no 12 de março de 2024, Nome é uma síntese do que aconteceu durante e depois da guerra pela Independência da Guiné, tendo-se inspirado em muitas das suas memórias pessoais, recorrendo ainda à memória do aquivo, composta de imagens e sons captados pelo realizador e seus colegas durante o conflito até ao momento que a independência fora declarada. Alguns excertos destes filmes foram usados por Fernando Matos Silva no filme Acto dos Feitos da Guiné de 1979/80. 

Sana Na N’Hada foi recrutado, ainda na sua adolescência, para ensinar a ler aqueles que não sabiam (como decretara Amílcar Cabral) numa aldeia onde se juntavam pessoas que lutavam pela independência. Sem a possibilidade de frequentar o curso para se especializar e tornar-se professor no Conacri, foi para um hospital de campanha para frequentar um estágio de enfermagem promovido pelo Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC). Por não ter idade e constituição suficiente para dar apoio no campo de batalha, foi enviado para Cuba em 1967 aos 17 anos, após terminar o liceu, juntamente com Flora Gomes, Josefina Lopes Crato e José Bolama, para aprender cinema no Instituto Cubano de Artes e Indústrias Cinematográficas. Voltaram em 1972 para registar o nascimento da Guiné livre, como desejava Amílcar Cabral, enquanto disseminariam, também, imagens da causa anticolonial e sensibilizariam a comunidade internacional. Após a independência Sana Na N’Hada co-fundou e foi eleito director do Instituto Nacional de Cinema e Audiovisual da Guiné-Bissau (INCA), em 1978. Infelizmente cerca de 60 por cento dos arquivos fílmicos foram danificados, devido à não conservação por parte das autoridades responsáveis. 

Os arquivos são usados em diversos momentos de Nome (2023), mesclando ficção e real, enriquecendo esteticamente e narrativamente o filme, conjugando os diferentes planos através de raccords que casam a estória, os elementos visuais e auditivos ficcionais com os do arquivo. 

Sana Na N’Hada proporciona-nos uma visão decolonial do conflito armado, onde as tradições, mitos e rituais dão profundidade à estória, expresso no espírito que anda em torno das personagens fulcrais do filme, como por exemplo: o menino Raci. Este tem o dever de construir um bombolom, como seu pai, a fim de restituir o equilíbrio na aldeia e dar descanso à sua alma. Este instrumento de percussão é um elemento crucial, pois era através deste que os guineenses convocavam as pessoas para reuniões secretas e alertavam a aproximação do conflito armado. O realizador, na entrevista dada, referiu que se inspirou na sua própria infância e vida da aldeia na criação da personagem Raci

Através de aspectos culturais específicos da Guiné é nos possível compreender os distúrbios que o domínio colonial e a guerra causou no “mundo antigo”, cujos ancestrais e espíritos deambulam errantes à volta dos vivos, por não respeitarem as tradições e os rituais antigos (como, por exemplo, os respeitantes aos funerais), testemunhando a destruição de um país que continuará a “corromper-se”, entregue às ambições materiais e à vanidade do homem “pequeno”, bem como aos “senhores” que a luta pela independência de uma nova Guiné queria anular, como referido no filme pelos guerrilheiros do PAIGC: “Na Guiné livre nunca mais terá senhores, nem brancos, nem pretos”. 

Assim o destino da Guiné-Bissau encontra-se personificado na personagem Nome (cujo nome significa “homónimo” em Crioulo da Guiné), denominação, a qual, encontra semblante nos companheiros de guerrilha oriundos de diferentes regiões, etnias e línguas da Guiné, sendo referido o equivalente nos grupos étnicos-linguísticos dos Manjacos, Balantas e Fulas. Assim, Nome (“o meu nome é o teu nome”) significa que existe apenas uma Guiné, que pertence a todos, por igual, sem fracções nem divisões, que segue unida na mesma direção sob os mesmos princípios e valores. Contudo, como alerta o espírito errante (ou o Deus Nindo[1], referido algumas vezes no filme), estará a Guiné “preparada para tanta felicidade?”. 

O primeiro aviso é feito quando observa Nome a escapulir-se de noite, com intuito de se juntar aos movimentos de libertação para fugir às suas responsabilidades com Nambú que engravidou, sussurrando-lhe: “(...) está lua cega, o Mundo está cego, não te deixes cegar” ou, ainda, quando Raci termina a construção do bombolom na floresta, diz: “conseguiu que a voz saísse de dentro da árvore e criou um mundo dentro de outro mundo, será isto a utopia? Nunca desistir? Estará a Guiné preparada para tanta felicidade?”. Aqui podemos relacionar o “mundo dentro de outro mundo”, ao conceito do Todo-Mundo, de Édouard Glissant e que dá nome a este ciclo de cinema, ou seja referente à ideia de um Mundo plural, anti-universal e anti-colonial, constituído por vários mundos e culturas que se relacionam em igualdade, sem a existência de comunidades subalternas. Sendo a Guiné um país pluricultural, dentro de um continente africano imenso e diverso que, por sua vez, está dentro de outro Mundo global. O qual se constituiu por meio da dominação e do estabelecimento de assimetrias o dividem em partes desiguais. Noutros momentos, o deus/espírito errante questiona: “Porque as pessoas se tornam tão más?” 

Seguimos a história da Guiné no pós-independência, acompanhando o percurso de Nome que, corrompido e corroído pelo amargor, se tornou num “homem mau” e ambicioso. Sob pretexto de ser compensado pelos seus esforços na guerra, quebra os princípios e valores que o PAICG defendia durante o conflito armado e procura aceder a um estatuto social elevado. Por conseguinte, Nome torna-se um homem da cidade. A aldeia, suas tradições e as árvores de grandes raízes ficam para trás. Nome consegue transformar-se num “Senhor” que atravessa e ocupa, com autoridade, os antigos edifícios e palácios, ou seja, os lugares de poder deixados pela administração colonial portuguesa. Da mesma forma, seguem os seus antigos companheiros de luta que, graças a Nome, obtêm uma posição de privilégio e a “sua parte” do negócio, roubando os bens e recursos que pertencem ao povo guineense. Apenas um dos antigos combatentes (), ferido em guerra, não se junta a Nome e seus comparsas, vigiando-os e acusando-os de ter traído o próprio país e a missão a que se tinham prometido. A personagem renega Nome (homónimo = Tó) e diz-se chamar doravante Tótala (que significa ninguém ou aquele que não tem nome). A personagem encontra-se numa cadeira de rodas, veste-se e usa o mesmo tipo de chapéu e óculos que Amílcar Cabral, relembrando esta figura e tudo o que defendia. A personagem é assassinada no final, como foi o líder da luta, significando, assim, o prenúncio do fim do sonho, da possibilidade de um país livre, cuja política assentaria nos princípios da igualdade, ou seja, denuncia o fim da utopia e sentencia todos os “espíritos”, que acreditaram na luta pelo bem-comum e se sacrificaram na guerra, à errância e à desonra, ao esquecimento. 

Não obstante, Sana Na N’hada deixa-nos um momento de esperança, figurados na personagem Nambú, antiga namorada de Nome que ficou muda (significando o silêncio associado ao trauma da violência da guerra e que Sana Na N’Hada se conteve de representar e que considera, de qualquer forma, irrepresentável), depois de lhe terem tirado o bebé durante as convulsões da guerra, e na personagem Quiti, antiga guerrilheira que salvou e adoptou a filha de Nambú e Nome. A criança representa o futuro e esperança da Guiné que sobreviveu graças ao amor de duas mães que lhe deram dois nomes diferentes, indicando-nos, de retorno, que sobrevive a possibilidade de um entendimento conjunto, se assim o entendermos: Poderá o amor salvar o mundo? Questão que nos impele a perguntar também: Poderá o cinema salvar o mundo?

[1] Nindo é um deus “Bijagó”, ligado à natureza que criou o primeiro homem. Este não deverá quebrar as regras ancestrais sob risco de causar desgraças.




quarta-feira, 9 de outubro de 2024

362ª sessão: dia 10 de Outubro (Quinta-Feira), às 21h30


Guiné-Bissau em foco esta semana no cineclube 

Durante o mês de Outubro, o Lucky Star – Cineclube de Braga exibe catorze filmes em parceria com os Encontros da Imagem, com sessões às terças e quintas-feiras no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva. O ciclo adopta um termo cunhado pelo poeta e ensaísta Édouard Glissant, intitulando-se “Cinema Todo-Mundo - colonialismo e a memória do futuro”. 
 
Esta quinta-feira exibe-se Nome de Sana Na N’Hada. Nascido em 1950, este cineasta guineense juntou-se à Guerra da Independência aos treze anos, sendo enviado quatro anos depois para Cuba junto a Flora Gomes e outros para aprender cinema e documentar a luta do povo da Guiné, a pedido do líder revolucionário Amílcar Cabral.

A sessão será de entrada gratuita para todo o público e conta com o apoio da Alliance Française e do Institut Français du Cinéma. 
 
“Nome” é o jovem oriundo de uma pequena aldeia que se junta ao grupo de guerrilheiros da PAIGC para combater as forças portuguesas. As representações ficcionais da luta fazem-se acompanhar de imagens de arquivo dos confrontos, captadas nos anos setenta por Na N’Hada, durante a guerra colonial. A estória prossegue após a independência com o retorno de “Nome”, onde nos deparamos com as incertezas, instabilidades e desvios que caracterizam a fragilidade de um “novo” país que, liberto, procura definir-se, mas que se encontra embrenhado nos modos e estruturas de funcionamento herdados da colonização.

"É revoltante," desabafou Sana Na N'Hada recentemente em entrevista à RTP África. "Tudo o que está a acontecer na Guiné-Bissau. Tudo, desde o fim da guerra até agora, bom ou mau, é da nossa responsabilidade. A única coisa que nos juntava e a única coisa que nos juntou até hoje foi a Guiné-Bissau. Antes, o desígnio era a edificação da Guiné-Bissau. Hoje, temos a Guiné. A minha questão para este filme é a que faço todos os dias: será que é essa a Guiné-Bissau que estou a sentir, que estou a ver e a ouvir, pela qual lutámos?"
 
As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, durante este ciclo às terças e quintas às 21h30. A entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Até Quinta!

Acto dos Feitos da Guiné (1979) de Fernando Matos Silva



por Jessica Sérgio Ferreiro

Acto dos Feitos da Guiné de Fernando Matos Silva pode ser visto como um importante documento histórico acerca da época colonial durante a ditadura do Estado Novo. O testemunho de Fernando Matos Silva transporta-nos não somente para um passado que conhecemos tal como nos foi contado e vem escrito nos livros de História, mas, e sobretudo, dá-nos acesso a uma verdade que transcende as narrativas históricas concertadas, ou seja, acedemos ao domínio da experiência e da subjectividade. 
 
Em suma, através da crítica aos discursos apologéticos da História Nacional e da partilha da experiência pessoal do realizador, permite-nos apreender e experienciar um passado vivido, mesmo que de forma limitada, pois a história vivida é insondável na sua totalidade, ou seja, na perspectiva do conjunto de pessoas que a experimentaram. O conjunto de vivências polissémicas, mesmo que documentadas, nunca podem representar a totalidade da experiência de um “povo” heterogéneo, nem a reproduzir na sua complexidade. Não obstante, o cinema surge como a ferramenta mais eficaz ou capaz de nos dar a conhecer, sentir e “viver” um mundo ou realidades desconhecidas ou não vividas. 
 
Assim, a razão pela qual se escolheu mostrar este filme neste ciclo de Cinema Todo-Mundo: colonialismo e a memória do futuro parece coincidir com aquela que o realizador poderá ter tido quando o realizou e montou: facultar uma visão alternativa aos discursos oficiais acerca da colonização portuguesa e estimular a reflexão das suas consequências. Em suma, confrontar memórias e cinema é memória. As imagens que Fernando Matos captou da Guiné-Bissau datam de 1969 e 1970, enquanto pertencia aos Serviços Cartográficos do Exército português. O filme foi montado posteriormente, alguns anos depois do 25 de abril de 1974, ou seja, Acto dos Feitos da Guiné é já um exercício de reflexão aquando da sua concepção, uma representação do passado ou de rememorar do passado no presente, assumindo a função de testemunho para o futuro. 
 
Este filme funciona como antítese aos filmes de propaganda desenvolvidos pela Agência Geral das Colónias ou, ainda, promovidos pela Comissão Nacional dos Centenários e pelo SPN/SNI (Secretariado da Propaganda Nacional/Secretariado Nacional de Informação), tal como Guiné, Berço do Império 1446-1946 (1946), realizado por António Lopes Ribeiro, durante a Missão Cinegráfica às Colónias de África, no âmbito das comemorações do 5º Centenário da Descoberta da Guiné pelo Estado Novo. Este “documentário cultural”, como foi apelidado, mostra a “obra” portuguesa na Guiné-Bissau e a sua relação com o seu povo, de forma a legitimar a sua ocupação territorial e administrativa (legitimação frágil posta em causa desde o período que antecedeu e sucedeu a Conferência de Berlim de 1884/1885, na qual se renegociaram as fronteiras e se redistribuíram os “direitos” de ocupação pelas diferentes potências europeias), tentando mostrar provas dos progressos que o território e suas gentes beneficiavam com a administração portuguesa. O documentário faz uso de uma eloquente voz-off que nos dirige e impõe uma interpretação rígida às imagens que discorrem ao longo do filme, sempre vangloriando o engenho e a benevolência do Estado Novo. 
 
Contrariando a narrativa paternalista, promovida pelo Estado Novo, e a Política do Espírito, desenvolvida por António Ferro, que difundia a grandeza da Nação e o seu papel na “História Universal” e deu “novos mundos aos Mundo” (Ferro, 1949, p. 41), Fernando Matos Silva subverte a sua função de operador de câmara do Exército português, atendendo ao facto que os Serviços Cartográficos realizaram vários filmes de propaganda (os primeiros inclusive) para o Estado Novo, tal como: Guiné: aspectos industriais e agricultura (1929) ou, ainda, a Inauguração das Comemorações Nacionais de 1940 (1940) para celebrar o duplo centenário (1140-1143/1640), relativo às datas da Fundação e Restauração de Portugal. Efemérides, as quais, são ainda hoje usadas como mote por grupos ultranacionalistas e neonazis. 
 
Para tal, Fernando Matos Silva recorre à encenação dramática e à sátira, convocando diferentes arquétipos que funcionam como lugares de memória, representados nas figuras emblemáticas da história nacional, em contraposição às imagens de arquivo da Guiné-Bissau sob domínio colonial. Assim, através de uma montagem dialéctica, os heróis mitificados são ridicularizados e contrariados (com exceção do guerrilheiro que no final reaparece como civil/ativista político e cuja luta continua). Por exemplo, aos tempos áureos dos “descobrimentos” e às missões de evangelização que lhes sucederam, é-lhes acusado a expropriação dos corpos, a escravidão que se perpetuou no trabalho forçado ainda praticado no século XX. 
 
O cenário de onde surgem as personagens míticas que saem dos diferentes “portais temporais” da História é, por vezes, percorrido pela câmara num movimento lateral que podemos associar ao travelling moral, para nos revelar a face oculta das narrativas oficiais promovidas pelo estado fascista, mostrando-nos e contando-nos a dura realidade da guerra colonial (as mortes, os feridos de guerra nos dois lados da luta armada), como resultado “natural” de uma longa história de opressão e violência, ou seja, como consequência das estruturas de ocupação imperial e colonial sedimentadas ao longo dos séculos, a par com a lógica extrativista e capitalista (e de domínio de uns sobre os outros) imposta, exacerbadas por influências externas (por exemplo, dos Estados Unidos da América – figurados na personagem Ulisses Grant, entre outras potências ocidentais). 
 
O realizador recorre ainda aos arquivos do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), como contraponto à narrativa portuguesa oficial, mas, também, como “narrador alternativo” aos seus próprios relatos, consciente da sua posição de privilégio que expressa a várias ocasiões quando, por exemplo, sobrepõe o som da metralhadora às imagens que captou da Guiné-Bissau, inclusive das suas paisagens e das práticas culturais dos Bijagós, ou seja, refere-se ao acto de filmar, criticando novamente a missão dos Serviços Cartográficos do Exército – extrair e representar etnicamente o “outro” e consolidar a imagem que o Estado quer transmitir de si e daqueles que domina para se legitimar. 
 
O uso dos arquivos do PAIGC[1]  que documentam as lutas de liberação e os discursos de Amílcar Cabral são interessantes por nos proporcionarem outras “narrativas” de um mesmo evento, mas, também, por nos revelarem como o cinema tem sido instrumentalizado, ora para a propaganda, ora para a militância e, em última instância, como meio pelo qual todos estes usos são contemplados e pensados para possibilitar a reflexão e a crítica, que se crê ser o objectivo último de Acto dos Feitos da Guiné
 
Por fim, são mostradas imagens do fim da guerra, figurado no lixo da indústria militar que restou, abandonado, na Guiné-Bissau livre, de par com as imagens de Lisboa no período que seguiu ao 25 de Abril de 1974, deduzindo-se o movimento convergente e interdependente das lutas pela liberdade, das quais somos ainda todos devedores e herdeiros da sua missão inacabada.


[1] Algumas das imagens da PAIGC usadas por Fernando Matos Silva voltarão a estar presentes no próximo filme deste ciclo: Nome (2023) de Sana Na N’Hada, realizador responsável por várias captações de imagens para o PAIGC quando jovem. Nome (2023) será exibido dia 10 de outubro de 2024.


Bibliografia consultada

Bernardo, L. & Laranjeiro, C. (2018). “Acto dos Feitos da Guiné: o início e o fim da história”. In Piçarra, M. do C. (ed.). A Coleção Colonial da Cinemateca. Cine Clube de Viseu, 88-103. 
Branco, S. D (2016). “O Cinema como Ética”. In Atas do V Encontro Anual da AIM, 135-143. Lisboa: AIM. ISBN 978-989-98215-4-5. 
Caetano, M. (junho de 1946). “Congresso do V Centenário do Descobrimento da Guiné portuguesa. Oração Inaugural de S. Ex.ª Ministro das Colónias”. In Boletim Geral das Colónias. Junho de 1946, Vol. XXII, Nº 252. pp. 3-10 
Ferro, A. (1949). Estados Unidos da Saudade. Edições SNI. 
Piçarra, M. do C. (2015). Azuis Ultramarinos. Propaganda Colonial e Censura no Cinema do Estado Novo. Edições 70. 

Filmografia

Lopes Ribeiro, A. (1946). Guiné, Berço do Império 1446-1946, acessível para visualização em: 



sábado, 5 de outubro de 2024

361ª sessão: dia 8 de Outubro (Terça-Feira), às 21h30


Guiné-Bissau em foco esta semana no cineclube 

Durante o mês de Outubro, o Lucky Star – Cineclube de Braga exibe catorze filmes em parceria com os Encontros da Imagem, com sessões às terças e quintas-feiras no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva. O ciclo adopta um termo cunhado pelo poeta e ensaísta Édouard Glissant, intitulando-se “Cinema Todo-Mundo - colonialismo e a memória do futuro”. 

O próximo filme do ciclo, marcado para terça-feira à noite, será Acto dos Feitos da Guiné de Fernando Matos Silva. Com música de Fausto, argumento de Matos Silva e Margarida Gouveia Fernandes e fotografia de José Luís Carvalhosa, o filme vai ser mostrado em cópia digitalizada e restaurada pela Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema. 

Em Acto dos Feitos da Guiné, os discursos hegemónicos e apologéticos sobre a História da Nação portuguesa são confrontados com as imagens captadas da “Guiné Portuguesa”, entre 1969 e 1970, a par com os registos de Lisboa após a Revolução dos Cravos. Desocultando eventos históricos vários, deparamo-nos com a brutalidade da ocupação portuguesa em África e a violência da guerra colonial. 

"O filme de Fernando Matos Silva guarda marcas autobiográficas," escreveu Maria João Madeira na sua folha da Cinemateca sobre este filme, "onde se conjugam as imagens documentais e a ficção, distintas, neste caso, pela cor das sequências de ficção que encenam um “Acto” onde os “feitos” são contados por personagens que representam voltadas para a câmara, saídas de portas temporariamente abertas, em contraste com o preto-e-branco das imagens filmadas no território da Guiné-Bissau no fim da década de 1960. O realizador parte da sua experiência pessoal, cruza-a com uma personagem de ficção, a “história”, para traçar uma história da passagem portuguesa pelo território africano: a da descoberta portuguesa da Guiné, a do reconhecimento da soberania portuguesa pelo Presidente dos Estados Unidos em 1870, a da exaltação do “fascista”, a da guerra colonial contada pelo “comando” e pelo “guerrilheiro”. Mas mais do que a encenação do “Acto”, são as imagens de guerra, cruas e extremas de ambos os lados, o mais impressionante. E além do horror explícito delas, a guerra, os estropiamentos, a morte, sobretudo impressionante é o profundo cansaço dos rostos dos soldados."

As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, durante este ciclo às terças e quintas às 21h30. A entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Até Terça-Feira!

sexta-feira, 4 de outubro de 2024

Sambizanga (1972) de Sarah Maldoror



por Estela Cosme 

Sarah Maldoror é uma realizadora com uma história pessoal que marcou afincadamente a sua filmografia. Nascida em Gers, na França, como Sarah Ducados, adotou mais tarde um nome artístico com base nos Cantos de Maldoror do conde de Lautréamont. O seu pai era um homem negro de Guadeloupe, nas Antilhas Francesas, onde alguns dos seus filmes foram rodados, nomeadamente Un homme une Terre e Regards de mémoire, filmes exibidos na sessão da passada terça-feira do Lucky Star. Neles o tema do anticolonialismo está bem presente, e é através da voz do poeta Aimé Césaire que Maldoror demonstra a identidade negra em conflito com o domínio francês. Para além das suas raízes caribenhas, Maldoror foi casada com Mário Pinto de Andrade, escritor e sociólogo angolano e um dos membros fundadores do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA). 

Foi juntamente com Andrade e com Maurice Pons que Maldoror adaptou a obra do escritor angolano José Luandino Vieira A Vida Verdadeira de Domingos Xavier para o guião do seu filme Sambizanga, considerado a sua obra-prima. Foi a primeira longa-metragem produzida, quer em Angola quer na África Lusófona, e foi também a primeira longa-metragem africana realizada por uma mulher.1 A sua importância cultural é apenas igualada pela sua proeza cinematográfica, onde a luta contra o colonialismo está bem demarcada. Aliás, o filme foi rodado no Congo e não em Angola, onde certamente o regime colonial teria impedido a sua produção. O filme só seria exibido em Angola e em Portugal após o 25 de Abril de 1974. A sua produção contou ainda com a participação ativa do MPLA, como Maldoror explicou em 2008: "O MPLA pôs toda a estrutura à minha disposição. Explicámos aos militantes que este filme era importante, porque ia incidir sobre Angola. Expliquei-lhes o que era o cinema e o que queria do filme. Todos participaram sem hesitar." 

Sambizanga é o nome de um dos distritos do norte da cidade de Luanda, onde fica a prisão da PIDE na qual Domingos Xavier acaba por ficar preso. Um tratorista com interesses no movimento revolucionário angolano, Domingos é levado um dia por agentes da autoridade que o removem de forma violenta de sua casa num musseque. A assanha impiedosa não impede que a sua mulher Maria parta à sua procura, com o seu filho às costas, determinada a encontrar o seu marido, que acredita ser inocente. O caminho é longo e árduo mas Maria é destemida, e quando sabe que Domingos foi levado para Luanda, Maria parte para a capital, cheia de mágoa e de garra, e com a ajuda da comunidade consegue visitar várias prisões da cidade e questionar sobre o seu paradeiro. É bem recebida em todas menos em Sambizanga, onde Domingos é cruelmente humilhado e torturado quando se nega a dar informação sobre o movimento revolucionário aos seus captores. A tragédia é inevitável e a viagem de Maria acaba em desgosto, uma mulher inconsolável com a morte do marido. Ele, por seu lado, torna-se um herói na causa da libertação angolana. 

O cruel destino de Domingos é desumano e é captado de forma feroz por Maldoror, que certifica que o público não fica indiferente aos horrores do colonialismo português, levado a cabo não só pela brutalidade branca de figuras como o português Pereira, mas também pelos homens negros que servem o regime colonial. No entanto, Maldoror também enfatiza a solidariedade que surge entre os revolucionários quando se sabe que Domingos é preso mas não se conhece a sua identidade, levando vários dos seus camaradas a grandes esforços para encontrá-lo. 

Embora seja Domingos quem sofra mais diretamente pelo regime colonial, é Maria que é o rosto do filme e, como consequência, o rosto da libertação angolana. Maria é uma mulher arrasada pelas ações das autoridades e que mesmo assim junta a coragem para sair do seu porto seguro para bater nas portas dos estabelecimentos mais temidos pela sociedade. Mesmo quando os seus gritos são mais fortes do que o choro do filho que leva às costas, Maria não se cansa de procurar o seu marido e de protestar a barbárie a que é sujeito. Maria é uma manifestação andante de uma sociedade cativa que começa a revolucionar-se contra o seu colonizador. Maldoror refletiu sobre a questão na mesma entrevista: "O filme mostra que as mulheres também participaram da luta. Mulheres com filhos nos braços, que lhes tinham que explicar porque é que o pai partiu, quais os riscos e a própria realidade."[2] Em retrospectiva, Maria simboliza a força e determinação que levou à independência das colónias e à reformulação de Angola como país livre. 

O caminho de Maria é árduo e ingrato dado o seu final, mas não por isso menos poético ou valente. É um caminho motivado pelo amor, justo e nobre, tal como ilustrado no poema de Agostinho Neto, que é cantado enquanto assistimos ao percurso de Maria:

Caminho do mato 
caminho da gente 
gente cansada 
ó ó ó-oh 

Caminho do mato 
caminho do soba 
soba grande 
ó ó ó-oh 

Caminho do mato 
caminho de Lemba 
Lemba formosa 
ó ó ó-oh 

Caminho do mato 
caminho do amor 
amor do soba 
ó ó ó- oh 

Caminho do mato 
caminho do amor 
do amor de Lemba 
ó ó ó-oh 

Caminho do mato 
caminho das flores 
flores do amor."[3]

[3] "Caminho do Mato" de Agostinho Neto: https://agostinhoneto.org/poesias/caminho-do-mato-2/



quarta-feira, 2 de outubro de 2024

360ª sessão: dia 3 de Outubro (Quinta-Feira), às 21h30


Longa-metragem de Sarah Maldoror para ver na BLCS

Durante o mês de Outubro, o Lucky Star – Cineclube de Braga exibe catorze filmes em parceria com os Encontros da Imagem, com sessões às terças e quintas-feiras no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva. O ciclo adopta um termo cunhado pelo poeta e ensaísta Édouard Glissant, intitulando-se “Cinema Todo-Mundo — colonialismo e a memória do futuro”. 

Sambizanga, de Sarah Maldoror, baseado no romance do autor angolano José Luandino Vieira, A Vida Verdadeira de Domingos Xavier, será exibido na quinta-feira dia 3 de Outubro, em cópia restaurada e gentilmente cedida pela Cineteca di Bologna.

Sarah Maldoror nasceu em Gers, na França, em 1929. Apesar de nascer com o apelido de "Ducados", escolheu o nome de "Maldoror" como nome artístico, a partir dos Cantos de Maldoror do conde de Lautréamont.

Foi co-fundadora da companhia de teatro Les Griots, em Paris, onde encenou peças de Jean-Paul Sartre e Aimé Césaire. Estudou no Studio Gorki nos anos sessenta sob a orientação de Mark Donskoi, onde conheceu Ousmane Sembène, realizando a sua primeira curta-metragem, Monangambê, em 1969, baseada como Sambizanga numa obra do escritor José Luandino Vieira.

Sambizanga é a sua primeira longa-metragem de ficção. Nela acompanhamos uma mulher, com o seu bebé às costas, na sua longa caminhada dos musseques até aos arredores da cidade de Luanda, em busca do seu marido desaparecido. As paisagens tipicamente africanas, cheias de cor e sons luminosos, que Maria atravessa são contrapostas com a violência infligida pela PIDE sobre aqueles que lutam pela liberdade.
 
"O MPLA pôs toda a estrutura à minha disposição," disse Maldoror sobre o seu filme em entrevista a Pedro Cardoso para o Novo Jornal de Angola em 2008. "Explicámos aos militantes que este filme era importante, porque ia incidir sobre Angola. Expliquei-lhes o que era o cinema e o que queria do filme. Todos participaram sem hesitar."

"O filme mostra que as mulheres também participaram da luta," disse a cineasta na mesma entrevista. "Mulheres com filhos nos braços, que lhes tinham que explicar porque é que o pai partiu, quais os riscos e a própria realidade."

As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, durante este ciclo às terças e quintas às 21h30. A entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Até Quinta!

terça-feira, 1 de outubro de 2024

Aimé Césaire, un homme une terre (1976) + Regards de mémoire (2003) de Sarah Maldoror



por Duarte Carvalho

Após a visualização destas duas curtas, existe a sensação de que estamos a ser introduzidos a uma nova cultura, num resort transatlântico em dia de passeio, por um brilhante guia, Aimé Césaire. 

A civilização que nos é apresentada é das ilhas Antilhas, marcada por séculos de escravatura e exploração de pessoas e terras. Passamos pelas marcas da história visíveis no território, algumas antigas, outras pequenos memoriais mais recentes do que se passou. Ao longo da explicação é-nos introduzido o conceito de Negritude, a ligação partilhada entre os descendentes dos escravizados, espalhados por todo o mundo mas principalmente nas ilhas Antilhas, nos Estados Unidos e em África. O nosso guia acredita que esta ligação ajuda a evolução económica, cultural e evolutiva, e segundo ele, permite à árvore, finalmente, encontrar os nutrientes para que consiga crescer, florir e deixar a sua dependência e não sendo suficiente ganhar, por fim, força própria. 

Começamos numa jornada que parte como a dos escravos, pela porta do não retorno, fazendo lembrar as portas de Auschwitz; passamos pelo equivalente do palácio de Versailles, Citadelle Laferrière, onde nos é contada a história “trágica como Shakespeare” do primeiro rei do Haiti; e terminamos a primeira curta numa ruína de uma fábrica colonial, a Bibliothèque Schœlcher, e num memorial às vítimas da escravatura, onde é entrevistado Césaire. Esta visita mostra o caminho de reconstrução, reconhecimento e evolução que terá de ser percorrido pela população de Martinique. A segunda curta mostra o dia-a-dia desta ilha, o mercado, a arte local, as casas e uma construção em desenvolvimento. 

Para além destes sítios são introduzidos alguns dos heróis da Negritude mais proeminentemente das Antilhas: Toussaint Louverture, governador do Haiti, descrito por Césaire como uma fusão de Napoleão com Spartacus. Louverture é conhecido pelas suas vitórias e sucesso em combate e por liderar a primeira e maior revolução de escravos sendo um símbolo de heroísmo para as colónias e um terror para os colonizadores nas Américas. Outro herói, Henri Christophe, o primeiro rei do Haiti e concretizador da formação do estado após revolução começada por Toussaint, marcado pela sua influência para o bem e para o mal dos monarcas europeus. E por fim, Patrice Lumumba, que na era de Kennedy e Martin Luther King partilha muitas das suas características, até na morte. 

Césaire, como um guia de turistas, usa a língua francesa dos visitantes, mas também usa hábitos de expressão, comunicação visual, narrativa e expressiva, produz peças de teatro, poesia, citando como referências escritores francófonos e usando pontos de referência da história europeia, da qual parece ser um grande conhecedor. A certa altura evoca como comum às duas culturas o surrealismo, do qual admite ser admirador acreditando ser a ponte entre as duas culturas. Nas entrevistas aqui presentes parece estar numa constante busca do seu lugar, recusa-se a ser francês para não querer dar poder ou legitimidade à ainda abusadora e ex-esclavagista europa, e ao mesmo tempo sente-se demasiado rebelde para a sua ilha de Martinique, que aparenta ter aceitado a situação em que se encontra. 

Césaire, admitindo o peso da natureza que o rodeia, acredita que membros desta grande família africana, separada forçosamente, reencontrar-se-á na expansão das suas raízes. A jornada dos povos das Antilhas é antítese da jornada europeia, ao invés da expansão, há nos descendentes de escravos uma busca e descoberta do interior - tal como os antigos edifícios coloniais inevitavelmente foram engolidos pela natureza, também as semelhanças entre os homens prevalecerão sobre as suas diferenças.



domingo, 29 de setembro de 2024

359ª sessão: dia 1 de Outubro (Terça-Feira), às 21h30


Dois filmes de Sarah Maldoror no auditório da BLCS

Durante o mês de Outubro, o Lucky Star – Cineclube de Braga exibe catorze filmes em parceria com os Encontros da Imagem, com sessões às terças e quintas-feiras no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva. O ciclo adopta um termo cunhado pelo poeta e ensaísta Édouard Glissant, intitulando-se “Cinema Todo-Mundo — colonialismo e a memória do futuro”. 
 
Os primeiros filmes exibidos, terça-feira à noite, serão Un homme une terre e Regards de mémoire da cineasta pioneira Sarah Maldoror, que apresenta a problemática do colonialismo através das palavras de Aimé Césaire e Édouard Glissant. 
 
Em Un homme une Terre, Aimé Césaire reflecte sobre o colonialismo e as suas consequências, fala de literatura e do surrealismo, procurando pontes entre a cultura africana e europeia, cuja inconciliabilidade persiste enquanto o domínio de uma sobre a outra persistir. Aborda a condição neocolonial das ilhas francesas, tidas como Departamentos Ultramarinos, estatuto que ainda hoje mantêm e contra o qual vozes continuam a erguer-se incansavelmente. Oportunidade para reflectir sobre os diferentes tipos de colonialismos na contemporaneidade. 
 
Em Regards de mémoire, Sarah Maldoror conversa com vários escritores e pensadores, inclusive com Aimé Césaire, na Martinica, e com Édouard Glissant em Fort de Joux, na cela onde o general Toussaint Louverture, líder da Revolução Haitiana, foi mantido prisioneiro até à sua morte, em 1803. Louverture lutou contra a escravatura e pela independência do Haiti, na mesma altura em que decorria a Revolução Francesa. 
 
Em entrevista a Beti Ellerson em Burquina Fasso, em 1997, Maldoror disse que "eu fiz muitos filmes em África. Mas sinto, em primeiro lugar, que as fronteiras não existem. Vamos deixar isso claro! Seja em África, em Guadalupe, ou nos Estados Unidos. 

"Aquilo que eu estou a dizer é que o cinema é a única arte em que não existem fronteiras. Claro, eu sinto-me muito mais próxima de África do que dos Estados Unidos. Mas ao mesmo tempo, sou afectada pelos Estados Unidos e a sua vontade tremenda de esmagar o mundo. Sinto que neste ponto vocês americanos se desenvencilham muito bem. O vosso cinema está em todo o lado. Vocês impuseram o vosso cinema. Não há uma única pessoa no mundo que não conheça um western ou um filme americano em geral. Vocês impuseram-se a vós próprios, e nós temos de nos proteger de vocês. Invadiram o mundo com os vossos westerns. E têm todo o direito a fazê-lo, mas o que é que nós podemos fazer? Hoje em dia, alguém pode passar sem cinema americano? Não. Até vamos ver o Malcolm X. Vocês negros americanos têm um cinema, vão ver os vossos próprios filmes bem como outros, o que não é o nosso caso. É aí que reside a vossa força."
 
As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, durante este ciclo às terças e quintas às 21h30. A entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Até Terça-Feira!

quinta-feira, 26 de setembro de 2024

Cinema Todo-Mundo: colonialismo e a memória do futuro



por Jessica Sérgio Ferreiro

O Todo-Mundo, termo cunhado por Édouard Glissant, ensaísta e poeta da Martinica, representa o conjunto de comunidades idiossincráticas que na relação se constituem como um todo (Mundo relacional), são coletividades não-sistémicas, fluidas, dinâmicas e compósitas, como ilhas de um mesmo arquipélago, nunca subsidiárias ou submissas a um centro ou a uma referência-mestre, a um Universal. 

É assim que Glissant sonha o Mundo não-colonial, sem assimetrias, assim pode ser o cinema: um reflexo do Todo-Mundo, um vislumbre, um grito em manifesto ou um poema sobre mundos caóticos e produtivos. 

O cinema coloca-nos em relação com experiências múltiplas e polissémicas, imperfeitamente traduzíveis. Através de olhares não-convencionais, o objeto cinematográfico transporta-nos para realidades complexas e inefáveis, para passados inacessíveis, cujos modos e marcas habitam o presente, mas que, também, contém nele o poder de informar o futuro. 

Começa-se este ciclo com três filmes de Sarah Maldoror, cineasta pioneira, que nos traz as palavras sábias do poeta e escritor da Negritude Aimé Césaire, un homme une terre (1976), a par com as de Édouard Glissant, em Regards de mémoire (2003), introduzindo, desde modo, a problemática do colonialismo e das suas repercussões. Em Sambizanga (1973), através de uma poética da imagem, caminhamos com a personagem Maria na busca pela verdade, ao passo que desperta a consciência política de um povo que procurará libertar-se das amarras violentas da colonização. 

Depois de navegarmos pelo movimento emancipatório em Angola, atracamos no Acto dos Feitos da Guiné (1979), do realizador Fernando Matos Silva que, com seu olhar crítico sobre a História (ou das “narrativas” sobre esta), coloca os seus heróis a apresentar os feitos dos portugueses. Com partida nos Descobrimentos e chegada na antiga Guiné do século XX, confronta a palavra e o discurso ébrio com imagens reais que denunciam as consequências do jugo colonial na antiga Guiné portuguesa. Em contraponto, na sessão seguinte, o mestre Sana Na N'Hada, na sua mais recente longa de ficção, intitulada Nome (2023), oferece-nos uma visão, a partir de dentro, da Guiné-Bissau de outrora e da sua realidade contemporânea, misturando a alegoria com imagens de arquivo, captadas por ele, aquando das lutas de libertação colonial. 

Na mesma linha de pensamento, apresenta-se Kuxa Kanema (2003) de Margarida Cardoso que, através do documentário, retrata, também, o fim da utopia, do sonho revolucionário que se encontrava espelhado no projeto de cinema ambulante, implementado pelo então governo de Moçambique, após a independência, e que pretendia restituir, ao seu povo, imagens de si próprio. Por sua vez, a curta-metragem KARINGANA os mortos não contam estórias (2020), do realizador moçambicano Inadelso Cossa, representa o cinema como pós-memória e como documento histórico incompleto, meio pelo qual a personagem principal procura entender a história do seu país e forjar a sua identidade, fora da linha de tempo a que pertence e da qual não é possível retirar-se. 

Ainda por terras moçambicanas, a antropóloga Catarina Alves Costa traz-nos o sujeito colonial para a cena com Margot (2022). A realizadora viaja até Moçambique para devolver, décadas depois, as imagens que a musicóloga e etnógrafa Margot Dias registou do povo Maconde para a Missão de Estudos das Minorias Étnicas do Ultramar Português, levando-nos a problematizar posicionamentos ético-políticos que definiram as crises da antropologia na época colonial e pós-colonial, a par com as ambivalências intrínsecas ao ser(-se) humano. 

Por sua vez, sob os preceitos de uma “antropologia partilhada” (anti-colonial), na docuficção Moi, un noir (1957) de Jean Rouch, é o protagonista do filme que narra as imagens captadas de si mesmo, contando a sua estória imaginada, mesclada com o seu quotidiano na Costa do Marfim. Na mesma sessão, Les Maîtres fous (1955), do mesmo realizador, expõe os rituais praticados pelos Haouka, oriundos da Nigéria e imigrados no Acra (Gana), e que, alcançando um estado de transe, encarnam e imitam, subversivamente, figuras de poder arquetípicas do colonialismo. Figuras, as quais, parecem habitar o imaginário coletivo dos Haouka que, através do escárnio grosseiro, expurgam e expulsam, através do corpo e da performance, a violência multissecular do mundo-caos[1] que lhes coube. 

O realizador Ousmane Sembène, considerado pai do cinema africano, nos seus vários filmes, esmiúça a sociedade moderna e estratificada do Senegal em relação ao neocolonialismo estrutural que molda caoticamente o dia a dia dos seus cidadãos, tal como em Mandabi (1968), revelando que o colonialismo tem muitas formas e não termina com as efemérides que dividem o tempo histórico entre o antes e o após

Por último, atravessamos o oceano e a Abrir Monte (2023), curta de Maria Rojas Arías, deparamo-nos com a história da primeira guerrilha colombiana que se tentou libertar da opressão do Estado conservador e da brutalidade policial, cuja violência espectral sombreia os planos de imagem narrados em voz-off. Seguimos rumo a uma cidade assombrada do Brasil, na floresta Amazónica, cuja montagem fílmica e edição sonora, de Susana Sousa Dias, nos faz experienciar Fordlandia Malaise (2019), cujo empreendimento massivo e devastador, epítome do capitaloceno, foi finalmente vencido pela própria Natureza. Por fim, ainda na selva Amazónica, entre o Peru e o Equador, cuja fronteira é desenhada pelas Águas do Pastaza (2022), Inês T. Alves revela-nos o dia a dia das crianças de uma aldeia que vive em simbiose com a natureza indomável, aparentemente inóspita, da selva. 

Assim, o cinema revela-se como meio por excelência do pensamento arquipelágico (Édouard Glissant), ou seja, do conhecimento partilhado, diverso e construído em conjunto, sempre que é visionado e debatido em contextos e tempos particulares. As experiências e perspectivas múltiplas, transplantadas na imagem em movimento, permitem compreender e refletir criticamente sobre passados coloniais e presentes ainda opressivos. Através da materialização de uma percepção sobre o real, é possível espelhar heterotopias várias (Foucault) que derivam de diferentes realidades e desenham outras possibilidades. Quiçá contribuirão, também, para quebrar, um dia ou gradualmente, os sistemas atávicos que persistem em estruturar a vida conjunta. O cinema, enquanto documento histórico, extravasa a tradução de eventos passados e suas circunstâncias, reflecte, também, para além do que sucedeu, o que (ainda) não adveio, o invisível. Como Marc Ferro já defendia, as intenções e investidas, as crenças e os sonhos, o imaginário, são igualmente férteis, fazem e são História. 

Filmar é um ato de memorar que produz efeito a posteriori, aquando da sua partilha. Na sua concepção é visualizado a priori, é imaginado, antecipando-se o seu todo, o seu resultado e a sua recepção ou “leitura” por terceiros. Em suma, o objecto cinematográfico é pensado para o devir, permite rememorar o passado, pensar sobre presente(s) e imaginar futuro(s). Como forma de expressão artística e ferramenta política, produz sentido e cumpre-se na comunhão, quando possibilita fazer corpo social (Stiegler). 

A arte é a partilha do sensível (Rancière), é um acto inerentemente político e poético, voltado para o colectivo, para o público. Como descrito por José Gil, em O Tempo Indomado (2020), o objeto artístico facilita a produção de um bom caos que, convocando os sentidos e a reflexão, “vai querer fazer mais do que exprimir, vai querer ser expressivo como um ente vivo, vai encarnar o mundo que exprime, existir como coisa-expressão interagindo com as coisas e seres reais da vida”, sendo, por fim, uma forma profícua de “domar” o próprio tempo. 

Assim se espera com este ciclo de cinema do Todo-Mundo para todos. 

Uma civilização que se revela incapaz de resolver os problemas que o seu funcionamento suscita, é uma civilização decadente. 
Uma civilização que prefere fechar os olhos aos seus problemas mais cruciais, é uma civilização enferma. 
Uma civilização que trapaceia com os seus princípios, é uma civilização moribunda. 
A verdade é que a civilização dita «europeia», a civilização «ocidental», tal como a modelaram dois séculos de regime burguês, é incapaz de resolver os dois problemas maiores a que a sua existência deu origem: o problema do proletariado e o problema colonial; que, essa Europa acusada no tribunal da «razão» como no tribunal da «consciência», se vê impotente para se justificar; e se refugia, cada vez mais, numa hipocrisia tanto mais odiosa quanto menos susceptível de ludibriar. 
Aimé Césaire 
Discurso sobre o colonialismo (1978 [1955]). 

[1] Conceito de Édouard Glissant para se referir ao encontro e choque entre culturas (aqui entende-se cultura no seu sentido lato, incluindo sistemas, economia, ciência, lazer, artes, etc.), bem como às interinfluências e impactos inelutáveis que daí advêm, corresponde ao real, ao contemporâneo e aos processos em que se dão essas transformações graduais e dinâmicas (os quais são afetados pelas assimetrias de poder e desigualdades). Difere do conceito de Tout-Monde (concepção utópica do Mundo em que, também, várias culturas estão em contacto ou em relação, pela qual se fazem trocas e aprendizagens em conjunto, corresponde a um conjunto de mundos “crioulos”, mas em que cada grupo detém o direito à sua opacidade (a não ser objeto de exploração e de análise com base em paradigmas científicos universalistas convencionais), não existem culturas hegemónicas, é anti-universal).