por João Palhares
“(...) mas o velho respondeu apenas que era inútil falar de um mundo onde não existissem cavalos, pois Deus não permitiria tal coisa.”
Cormac McCarthy, in «All the Pretty Horses».
Por meados dos anos 30 do século XX, oitenta e cinco por cento dos cinemas norte-americanos apresentava sessões duplas. Era também uma altura em que praticamente dois terços da população do país ia ao cinema todas as semanas. Qualquer coisa como setenta e cinco milhões de pessoas, se o
conseguirmos imaginar. As salas eram exploradas pelos grandes estúdios, como a MGM ou a Warner Brothers, o que quer dizer que estes controlavam os meios de produção, distribuição e exibição, todo o espectro da actividade cinematográfica, garantindo sempre uma sala para todos os seus filmes. Quando a segunda sessão se tornou uma necessidade por vontade do público, que nesses anos dependia do cinema quase como único entretenimento, abriu-se todo um novo mercado para a produção de filmes. Os grandes estúdios não conseguiam dar vazão à imensa procura de cinema, nem queriam relegar as suas grandes produções à segunda parte de uma sessão, portanto foram-se criando pequenas unidades nos estúdios e foram nascendo pequenas produtoras como a Republic Pictures, a Grand National Films, Inc, a Monogram Pictures e a Eagle- Lion Films, dedicadas a produzir filmes pequenos orçamentados entre 12,500 a 500.000 dólares (embora às vezes também se aventurassem nas grandes produções) que podiam fazer um pequeno lucro nas bilheteiras. E assim nasceu o filme de série B. Não um mau filme ou um filme barato, que talvez seja o que hoje mais se associe à expressão, mas um filme pensado como segunda parte para uma sessão e produzido neste contexto alargado que se tentou aqui descrever.
Estes pequenos filmes tinham perto de sessenta minutos e inseriam-se em géneros americanos populares como o western, o musical e o policial. Eram rodados numa semana, preparados e terminados em cerca de seis. Para se poupar no orçamento, eram filmados ao ar livre ou em cenários mínimos. Para se poupar no tempo, condição não negociável porque no dia seguinte faziam-se as cenas que já se tinham predeterminado, podia haver entre sessenta a oitenta mudanças de posições de câmara e de equipamento de luz por dia. Utilizavam-se retro-projecções e imagens de arquivo na montagem, às vezes de forma muito inventiva. Se os guiões instruíssem que um actor abrisse uma porta, entrasse numa sala e acendesse um
cigarro, os produtores corrigiam a cena colocando a personagem já na sala com o cigarro acesso. Os colaboradores eram atribuídos pelo estúdio, havendo alguma margem para a escolha do director de fotografia pelo realizador, sendo também os guiões atribuídos a quem estivesse disponível, embora quem já tivesse algum sucesso pudesse beneficiar de maiores orçamentos, escolher o material e até trabalhá-lo com mais tempo. Havia realizadores tão prolíficos que tinham de criar pseudónimos para continuar a fazer filmes. Restrições várias à parte, algumas delas já enumeradas, o realizador tinha toda a liberdade para experimentar o seu ofício durante a rodagem, fosse com enquadramentos fora do comum ou diálogos entre a luz e a sombra que faziam da própria pobreza de meios um dado narrativo.
Este esquema das coisas[1], que durou cerca de duas décadas, foi produtivo para a maior parte dos envolvidos, dos criadores aos investidores. O pioneiro americano Allan Dwan, que desde o início do século vinte tinha trabalhado com todas as metragens e orçamentos, acabou a carreira na série B, onde devido às constrições acabou por inventar de novo o cinema numa série de filmes produzidos por Benedict Bogeaus nos anos cinquenta. Entre os grandes cultores da série B, e que nunca deixaram as suas fileiras, estão Kurt Newmann, George Sherman, Joseph H. Lewis e o enorme Edgar G. Ulmer, cujos talentos e ensinamentos não deixam de nos pasmar e ainda não foram totalmente estudados e compreendidos até aos dias de hoje. Os estúdios da chamada “Poverty Row” também foram importantes para iniciar certos cineastas no ofício, ajudá- los a entrar nos grandes estúdios, que estavam sempre interessados em novos talentos. Foi onde começaram Edward Dmytryk, Jacques Tourneur, Anthony Mann, Phil Karlson, Robert Wise, Richard Fleischer, Don Siegel e, chegando finalmente ao que nos interessa, Budd Boettcher, que nesses anos assinava ainda “Oscar Boetticher, Jr.” para não irritar o pai, que odiava cinema.
Antes de realizar Black Midnight, Budd Boetticher trabalhou no Hal Roach Studios, depois na Columbia, onde foi consultor técnico de Rouben Mamoulian em Sangue e Arena e mais tarde assistente de realização de Charles Vidor em The Desperadoes e Cover Girl. Não creditado, realizou os últimos dois dias e os primeiros dois dias de rodagem de dois filmes de Lew Landers, Submarine Raider e U-Boat Prisoner.
Assinou o primeiro filme, One Misterious Night, que foi estreado em Portugal com o título de O Diamante Roubado, em 1944, aos 28 anos. “Eu suspeito que as pessoas compravam muitas pipocas quando os meus filmes apareciam,” escreveu ele na sua auto-biografia[2]. “Fosse como fosse, Harry Cohn certificou-se que eu tinha os melhores operadores de câmara da velha guarda. Era suposto eles estarem lá para me ajudar, mas descobri cedo que eles estavam lá para me mostrar aquilo que sabiam e o quanto eu estava enganado em relação a tudo o que me propunha a realizar. Não me interpretem mal, eles eram todos uns cavalheiros. Mas eu era jovem, e verde como a erva, e presunçoso, e portanto eu e os meus idosos operadores de câmara nunca avançámos realmente ao nível de "amigalhaços". Eu inventei um sistema que funcionava. Quando um deles me questionava em relação a um plano que eu tinha pedido, eu simplesmente abanava a cabeça, dava-lhe uma palmadinha no braço, e dizia: "Não percebes mesmo o que é que eu estou a tentar fazer, pois não?" Depois virava-lhe as costas. Claro que a maior parte do tempo eles estavam certos e eu estava errado, e sentia isso. Mas estar errado como realizador de cinema pode- nos custar um naco de prestígio numa pressinha. Portanto fingi. Uns anos mais tarde um apresentador da televisão perguntou-me quando é que me tinha apercebido ao certo de que era um cineasta de pleno direito. Eu disse-lhe que foi logo a seguir ao meu décimo filme. Mas, com os diabos, eu fingi mesmo aqueles primeiros cinco com montes de falsa confiança.”
Só não discordamos de Boetticher por puro desconhecimento dos seus primeiros cinco filmes, mas já
descrevemos o sétimo, Escape in the Fog, como uma bizarria fascinante e inventiva regada a pesadelos e
nevoeiros. O décimo, Behind Locked Doors, é um policial fabuloso em que um detective privado, contratado por uma jornalista, se infiltra como doente num asilo de loucos. Foi feito para a Eagle-Lion Films, em 1948,
quinze anos antes de Shock Corridor de Samuel Fuller, grande obra com um ponto de partida muito semelhante. E o filme seguinte é Black Midnight, primeiro dos dois que fez com o jovem Roddy McDowall para a Monogram Pictures. McDowall interpreta Scott, um miúdo que vive com um homem que todos tratam por “Uncle Bill” e cujo filho fugiu há algum tempo para lugar incerto, farto da vida na quinta do pai. Sabemos isto desde os primeiros momentos do filme, depois de um primeiro plano fabuloso em que a câmara acompanha o “Uncle Bill” da cozinha até ao quarto de Scott, para o acordar, e depois Scott até à cozinha, para tomar o pequeno-almoço. Deslocado desde o início, seja por se sentir um mero substituto do filho de Bill ou por sentir também já o peso do trabalho de todos os dias, que ainda assim continua a realizar afincadamente, Scott vai-se afeiçoar a um cavalo selvagem trazido pelo filho de Bill, Daniel, que regressa de forma tão misteriosa como tinha partido, enquadrado pelos pés enquanto se aproxima do pai durante a festa organizada pela Sra. Baxter, primeiro sinal de uma tensão latente que continuará ao longo do filme e só se resolverá em pleno mesmo no final. O cavalo chama-se “Black Midnight”, é ele que dá o nome ao filme, e Scott deve ver nele algo de si, algo do seu sentido de isolamento no seio daquela comunidade. Quando Daniel decide que quer abater o cavalo, que não se deixa domar por ninguém e se mostra agressivo e perigoso para com as pessoas, Scott chega-se à frente e oferece todas as suas poupanças para ficar com ele e o tentar cavalgar. Não se deixa demover dessa missão nem quando Cindy, a filha da Sra. Baxter e prometida de Scott desde criança, parece favorecer os avanços de Daniel, nem quando o “Uncle Bill” parece tomar o lado do filho e lhe quer tirar o cavalo nos últimos momentos da narrativa. Numa sociedade e numa cultura que sempre favoreceu a ainda favorece os laços de sangue, não será um dado insignificante que Budd Boetticher tenha sido adoptado depois da morte dos pais quase imediatamente a seguir ao seu nascimento, pois não é nada comum ver um filme, americano ou não, em que a odisseia de uma criança adoptada em busca de respostas e propósito seja o tema central. Esse propósito vai ser “Black Midnight”, o cavalo negro que não se dá com ninguém a não ser com a ovelha negra da família Jordan. E é o laço que esses dois criam que resolverá todas as tensões deste filme, da reconciliação entre pai e filhos aos votos de amor renovados das duas crianças prometidas, outrora selado com um coração gravado nas rochas, particularmente evidente na cena em que o cavalo de Scott encosta o focinho à égua de Cindy e ele consegue finalmente cavalgar o seu cavalo negro, havendo ainda tempo para um confronto com um puma que ameaça “Midnight” e acelera o entendimento para a vida entre Scott e o “Uncle Bill”, agora sim o seu pai verdadeiro. Absolutamente admirável, absolutamente tocante para uma obra com 66 minutos apenas.
Repare-se ainda nas belas sequências de planos que mostram Scott nas suas tarefas de todos os dias, sacrificando o seu tempo com Cindy e “Midnight” para tratar das galinhas e dos campos. Na cena da festa da Sra. Baxter, a certa altura uma das poucas aliadas de Scott, junto ao xerife, ouve-se a canção popular
americana, “Cindy”, que se conhecia de Rio Bravo de Howard Hawks, realizado onze anos depois. O final do
filme foi rodado nos Alabama Hills, na Califórnia, onde Boetticher rodaria mais tarde 7 Homens para Matar,
The Tall T, Ride Lonesome e Comanche Station com Randolph Scott. Mas isso, como se costuma dizer, é uma história para outro dia.
[1] Leia-se o livro fabuloso organizado por Todd McCarthy e Charles Flynn, «Kings of the Bs – Working within the Hollywood System», E. P. Dutton & Co., Inc., Nova Iorque, 1975. É a fonte de quase toda a informação recolhida para este texto sobre a organização da indústria norte-americana de cinema durante os anos trinta e quarenta.
[2] «When in Disgrace», Neville Publishing Inc., Santa Barbara, Califórnia, 1989.
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