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quarta-feira, 22 de março de 2023

Mashgh-e Shab (1989) de Abbas Kiarostami



por Alexandra Barros

Trabalhos de Casa é uma investigação em forma de filme (nas palavras de Kiarostami) sobre essa ferramenta pedagógica. Partindo das suas próprias dificuldades em ajudar os filhos a realizar as suas tarefas escolares e sem ideias pré-definidas sobre o que o filme deveria ser, Kiarostami decide interrogar alunos do ensino primário de uma escola iraniana acerca do tema. 

O filme, com o formato de um documentário, centra-se em grandes planos desses alunos captados durante a série de entrevistas. Estas imagens são recorrentemente intercaladas por imagens do operador de câmara a apontar-nos/-lhes a sua lente, uma decisão de montagem tomada por Kiarostami em função das declarações, nem sempre sinceras, que recolheu. Caso exemplar é o da reacção à pergunta “Preferes ver desenhos animados na televisão ou fazer os trabalhos de casa?”. Todas as crianças declaram a sua preferência pelos últimos. Estas respostas, tão claramente distorcidas pela vontade de “ficar bem na fotografia”, colocam em evidência o lado performativo dos depoimentos, induzido pelas circunstâncias em que decorrem. O efeito do observador, fenómeno com especial relevância na física quântica, designa as modificações que o processo de observação produz no objecto observado. Por exemplo, para que um electrão possa ser detectado é necessário que um fotão interaja com ele; porém, essa interacção altera necessariamente o estado inicial do electrão. Analogamente, por estarem sob o “olhar” de uma câmara de filmar, o comportamento dos filmados está sujeito ao efeito do observador

Mas não é só (nem principalmente) por causa do efeito do observador que a “verdade” de um documentário é dúbia. Mais do que o que é filmado, o que nos é dado a ver é determinado por como é filmado. No início do filme, vemos todos os alunos da escola alinhados no pátio para a endoutrinação diária. Em resposta a uma voz de comando, as crianças clamam em uníssono louvores aos seus líderes religiosos e políticos e dirigem ataques agressivos aos inimigos e ao mundo dos “infiéis”. Captadas em grandes planos, as imagens sugerem um grupo coeso, convicto e disciplinado. No final do filme, regressamos aos “cânticos” de adoração e ódio, mas agora a câmara aproxima-se das crianças e o som é eliminado. O que vemos então não podia estar mais longe do que vimos anteriormente. Esta cena, que a censura desejou suprimir, fala demasiado alto e o que diz não fica bem na “fotografia oficial”. 

O filme abre janelas para a sociedade iraniana e através delas avistamos: pais preponderantemente incapazes de ajudar os filhos nas suas tarefas escolares por serem analfabetos ou não estarem familiarizados com os novos métodos e conteúdos educativos; ambientes escolar e familiar fortemente marcados pelo autoritarismo, repressão, medo; uma sociedade que perpetua e incentiva o belicismo e a violência física e emocional. Todos os miúdos sabem o que é um castigo, e já todos foram sujeitos a actos de punição. Aliás, os castigos corporais, exercidos pelos pais sobre os filhos, são vistos pelos últimos como necessários e desejáveis (ou pelo menos, assim o afirmam). Por outro lado, as crianças desconhecem o que é um incentivo e nunca foram encorajadas ou recompensadas, mesmo quando tiveram excelentes resultados. 

Também assistimos a duas entrevistas feitas a pais. Um deles, muito informado sobre os métodos educativos de vários outros países (que considera mais civilizados), discorre longamente sobre os danos e inconvenientes dos TPC[1]. O tema vem sido debatido há décadas, por todo o mundo, com diversas objeções aos TPC a serem apontadas consistentemente. É o caso do agravamento da desigualdade de oportunidades provocado pelos mesmos. Devido à diversidade de situações sócio-económicas das famílias dos alunos, existirão crianças com boas condições materiais e adequado apoio educativo familiar na realização das tarefas escolares, enquanto outras ver-se-ão em desvantagem por não disporem nem dos meios físicos e materiais necessários (espaço, equipamento informático, ...), nem de ajuda educativa. Outra grande questão, transversal a todos os meios sócio-económicos, é o atrito e a tensão que os TPC provocam entre pais e filhos. No final do dia de trabalho, os pais estão pouco disponíveis (por causa dos afazeres domésticos, por exemplo) e sem paciência ou energia para acompanhar a realização dos TPC. Os filhos, depois de muitas horas passadas em salas de aula, querem estar com os amigos e a família, dedicar-se a hobbies e a actividades extra-curriculares ou “simplesmente” divertirem-se e descansar. Aliás, tudo práticas importantes para o desenvolvimento pessoal e social das crianças. A falta de tempo para as mesmas é uma questão que preocupa o referido pai. 

Outro pai expõe com lucidez os traumas que entende ter provocado no filho pela sua própria falta de habilidade ou competência para lidar com as dificuldades escolares que era suposto ter ajudado o filho a ultrapassar. Num efeito bola de neve, os problemas e as ansiedades de um alimentam os problemas e ansiedades do outro num crescendo de angústias e dificuldades. 

Apesar de Trabalhos de Casa reflectir o Irão do final dos anos 80, é um filme intemporal e universal. Mais que uma investigação filmada sobre o sistema educativo iraniano, é um filme sobre relações humanas, particularmente sobre o lado performativo das mesmas, a perpetuação inquestionada de hábitos e comportamentos ao longo de gerações, os problemas de comunicação, os equívocos na avaliação e compreensão do outro, as relações de poder. É, além disso, um filme muito kiarostamiano, no que nele emerge da sua continuada reflexão sobre a (im)possibilidade de chegar à verdade através do acto de filmar.

[1] Trabalhos Para Casa.



domingo, 13 de outubro de 2019

Raiku Samuwan in rabu (2012) de Abbas Kiarostami



por João Palhares

«Lately, I find myself gazing at stars» 

Johnny Burke, in «Like Someone in Love». 

Copie Conforme, que era para ser exibido neste ciclo (chegou mesmo a ser anunciado até uma reviravolta inesperada nos obrigar a substituí-lo por Santiago, Itália de Nanni Moretti), já parecia tocar na ferida. Uma mulher e um homem que podem ou não ser um casal percorrem a Toscana cheios de rancores, dúvidas e arrependimentos. Se forem mesmo um casal, a distância e os ressentimentos afastaram-nos tanto que se tornaram estranhos um para o outro. Se forem estranhos, o fechamento e a solidão corroeram-nos tanto que à primeira oportunidade se tentam fazer um casal. Apesar da aparente predominância da questão estética, artística e filosófica das cópias e dos originais, que é um gimmick, mas permite a Kiarostami transformar tudo constantemente (ilustrações notáveis: o plano em que Jean-Claude Carrière parece estar a gritar com a mulher no meio da praça, mas quando se vira o vemos ao telefone; o plano longo fabuloso em que Juliette Binoche e William Shimell saem do café e se tornam um casal), desemboca tudo no sentimento, no nosso mundo e na realidade. Não há saída de nós nem do eu. 

Que mais podia experimentar um cineasta que, como Rossellini, parecia ter experimentado de tudo, dos avanços e recuos de um rapaz com um cão pela frente (Nan va Koutcheh, que exibimos em 2016) às simples expressões de caras de mulheres a ver um filme (Shirin), passando pelos cinco planos de dezasseis minutos que compõem Panj? A resposta pode ser uma produção europeia com uma actriz francesa que, como Ingrid Bergman, disse que não a Hollywood e escolheu o seu próprio realizador. Fora do Irão, com um guião de rodagem, actores profissionais, uma equipa técnica e um plano de trabalho. “Com os meus últimos filmes, Dez, Panj e Shirin”, disse Abbas Kiarostami a Jacques Mandelbaum em 2009[1], “cheguei ao final de qualquer coisa. Só me podia repetir. A passagem a um nível mais profissional pode ter um grande benefício para mim, mesmo que não pretenda romper com a minha ideia de cinema.” E claro que os métodos não mudaram e o realizador iraniano pôde repetir cenas e planos até ficar completamente satisfeito. Por isso é que a estranheza do já referido plano da transformação de Binoche e de Shimell, em que falam em francês juntos pela primeira vez, transcende toda a filosofia e toda a semiótica das suas conversas – é uma revelação alcançada com um trabalho muito concreto.[2]

***

Porque é que estamos tão sozinhos? Porque é que às vezes somos os nossos piores inimigos? Porque é que mesmo havendo saúde e alguma estabilidade, que sempre nos disseram ser o mais importante, nos deixamos ser invadidos pelo maldito pica-pau da consciência? Frases que se repetem na mente e nos assombram os dias só a torcer por um esgotamento ou uma crise de ansiedade, prelúdios para a bipolaridade ou para a esquizofrenia. E vai-se repetindo que “tens a tua saúde, que é o que é importante,” e vai mais um. “Há pessoas a passar fome, os teus problemas não são nada,” e vai outro. Milhões de pessoas assim, a tentar gerir as suas inseguranças e receios, sonhos e esperanças, mundos em si próprias à espera de desbravar outros mundos. Um plano aparentemente muito mal enquadrado de um bar com a voz de uma rapariga ao telefone. Há uma mulher que se vira e vai olhando: o que é que se passa? Fala para alguém, preocupada. Levanta-se e senta-se à nossa frente. Corta e somos situados na acção, mas o mote já está lançado. Confusão, colisões e sonhos perdidos, esperanças furadas. Começa assim, Like Someone in Love

Uma rapariga que se vê obrigada a trabalhar como acompanhante para pagar os estudos em Tóquio, cidade de doze milhões de habitantes. Mente ao namorado, que começa a achar que se passa alguma coisa. Uma amiga que a cobre e a ajuda. Um chulo que lhe diz que tem um cliente muito importante. Uma avó que veio a Tóquio e a quer ver, tem-lhe telefonado o dia inteiro, sem sucesso. Um escritor e tradutor com uma certa idade que quer companhia para o jantar - tem saudades da família. Um rapaz ciumento e obsessivo que mostra cedo ao que vem, com pouca cabeça e bom senso. São as pessoas que povoam este filme, que não vem reconfortar ninguém. E por muito que Kiarostami experimente, seja com ângulos fixos de câmara dentro de carros ou reflexos e transparências em capôs ou janelas, é sempre o sentimento que fica connosco. Sete mensagens de voz ouvidas em auriculares, com a vida nocturna de Tóquio a passar-nos à frente dos olhos. Uma rotunda circundada duas vezes a deixar-nos com o coração nas mãos: técnica e emoção. Um cerco a uma rapariga e a um velho só com passos e pancadas na banda-sonora, provando que é possível expressar o maior perigo e a maior tensão com os menores meios. Seja no Irão, na Toscana ou no Japão.

[1] in «Kiarostami fait sa révolution en tournant un film en Italie avec Juliette Binoche», Jacques Mandelbaum, Le Monde, 4 de Julho de 2009.
[2] Pode-se voltar a citar o artigo de Mandelbaum: “Dois dias passados no local, 29 e 30 de Junho, são suficientes para constatar que toda a rodagem é imprevisível e misteriosamente inspirada. Uma espécie de destruição graciosa do plano de trabalho. Assim, são dedicados dois dias à realização de um plano-sequência de apenas dez minutos: as duas personagens saem de uma ruela e depois discutem na praça central da vila, à sombra de uma verdadeira igreja barroca e de uma falsa escultura no estilo antigo. 
“O número de tomadas é incalculável, assim como as variações introduzidas progressivamente pelo cineasta: diálogos, figurantes, cenários, movimentos, posições da câmara, e até a presença de uma flor em campo. Tudo é sujeito a uma recomposição constante e minuciosa sobre a matéria.”

quarta-feira, 27 de julho de 2016

Nan va Koutcheh (1970) de Abbas Kiarostami



por João Palhares

Abbas Kiarostami, cineasta iraniano que nos deu o belíssimo Khane-ye doust kodjast, em que um miúdo atravessa o que parece ser o mundo inteiro para entregar um caderno ao colega da escola, Bād mā rā khāhad bord e Klūzāp, nemā-ye nazdīk, mais conhecido como Close-Up e que tomou de assalto o mundo do cinema, começou por trabalhar em design gráfico, fazendo os genéricos de alguns filmes antes de se aventurar na realização com Nan va Koutcheh, escrito pelo seu irmão. Kiarostami contou a Shahin Parhami em 2004 que “na altura em que estava a trabalhar para o Instituto de Desenvolvimento Intelectual das Crianças e dos Jovens Adultos nos finais dos anos 60, li muitos guiões, mas saltou-me à vista este em especial. A linha temporal unificada atraiu-me particularmente. A história em si tem só a duração de doze minutos, portanto não havia grande necessidade de dividir o tempo. Mas também estava ciente que dividir o quadro temporal para mostrar a passagem do tempo faz os cineastas submeterem-se a clichés e convenções. Portanto foi um desafio interessante para mim aproximar o tempo fílmico do tempo real o máximo possível sem usar essas convenções. 

“Nan va Koutcheh foi a minha primeira experiência em cinema e devo dizer que muito difícil. Tive que trabalhar com uma criança muito jovem, um cão e uma equipa não profissional, tirando o director de fotografia, que chateava e se queixava a toda a hora. Bom, o director de fotografia de certa forma tinha razão porque eu não segui as convenções do cinema a que ele se tinha habituado. Insistiu que dividíssemos as cenas. Por exemplo, ele queria tirar um plano geral do miúdo a aproximar-se, um plano aproximado da mão do miúdo e depois o miúdo entre em casa e fecha a porta, um plano do cão quando vai dormir para a porta, etc. Mas eu achava que se os conseguíssemos a ambos (miúdo e cão) num plano só, isto é, entrando no enquadramento, o miúdo a entrar em casa e o cão a adormecer à porta, teria um impacto mais profundo. 

“Eu acho que esse foi o plano longo mais difícil que filmei na minha vida. Para esse plano em particular tivemos que esperar quarenta dias; mudámos de cão três vezes (um deles até tinha raiva). Apesar dos problemas todos que enfrentámos aconteceu finalmente ou fez-se luz. De certo modo este filme é devido em grande medida à minha falta de conhecimento no que diz respeito a convenções fílmicas. Agora, quando penso nisso, chego à conclusão que tomei a decisão certa. Acredito que dividir as cenas – embora possa contribuir para o ritmo do filme – pode muito bem prejudicar a realidade e o conteúdo do filme.”