domingo, 13 de outubro de 2019

Raiku Samuwan in rabu (2012) de Abbas Kiarostami



por João Palhares

«Lately, I find myself gazing at stars» 

Johnny Burke, in «Like Someone in Love». 

Copie Conforme, que era para ser exibido neste ciclo (chegou mesmo a ser anunciado até uma reviravolta inesperada nos obrigar a substituí-lo por Santiago, Itália de Nanni Moretti), já parecia tocar na ferida. Uma mulher e um homem que podem ou não ser um casal percorrem a Toscana cheios de rancores, dúvidas e arrependimentos. Se forem mesmo um casal, a distância e os ressentimentos afastaram-nos tanto que se tornaram estranhos um para o outro. Se forem estranhos, o fechamento e a solidão corroeram-nos tanto que à primeira oportunidade se tentam fazer um casal. Apesar da aparente predominância da questão estética, artística e filosófica das cópias e dos originais, que é um gimmick, mas permite a Kiarostami transformar tudo constantemente (ilustrações notáveis: o plano em que Jean-Claude Carrière parece estar a gritar com a mulher no meio da praça, mas quando se vira o vemos ao telefone; o plano longo fabuloso em que Juliette Binoche e William Shimell saem do café e se tornam um casal), desemboca tudo no sentimento, no nosso mundo e na realidade. Não há saída de nós nem do eu. 

Que mais podia experimentar um cineasta que, como Rossellini, parecia ter experimentado de tudo, dos avanços e recuos de um rapaz com um cão pela frente (Nan va Koutcheh, que exibimos em 2016) às simples expressões de caras de mulheres a ver um filme (Shirin), passando pelos cinco planos de dezasseis minutos que compõem Panj? A resposta pode ser uma produção europeia com uma actriz francesa que, como Ingrid Bergman, disse que não a Hollywood e escolheu o seu próprio realizador. Fora do Irão, com um guião de rodagem, actores profissionais, uma equipa técnica e um plano de trabalho. “Com os meus últimos filmes, Dez, Panj e Shirin”, disse Abbas Kiarostami a Jacques Mandelbaum em 2009[1], “cheguei ao final de qualquer coisa. Só me podia repetir. A passagem a um nível mais profissional pode ter um grande benefício para mim, mesmo que não pretenda romper com a minha ideia de cinema.” E claro que os métodos não mudaram e o realizador iraniano pôde repetir cenas e planos até ficar completamente satisfeito. Por isso é que a estranheza do já referido plano da transformação de Binoche e de Shimell, em que falam em francês juntos pela primeira vez, transcende toda a filosofia e toda a semiótica das suas conversas – é uma revelação alcançada com um trabalho muito concreto.[2]

***

Porque é que estamos tão sozinhos? Porque é que às vezes somos os nossos piores inimigos? Porque é que mesmo havendo saúde e alguma estabilidade, que sempre nos disseram ser o mais importante, nos deixamos ser invadidos pelo maldito pica-pau da consciência? Frases que se repetem na mente e nos assombram os dias só a torcer por um esgotamento ou uma crise de ansiedade, prelúdios para a bipolaridade ou para a esquizofrenia. E vai-se repetindo que “tens a tua saúde, que é o que é importante,” e vai mais um. “Há pessoas a passar fome, os teus problemas não são nada,” e vai outro. Milhões de pessoas assim, a tentar gerir as suas inseguranças e receios, sonhos e esperanças, mundos em si próprias à espera de desbravar outros mundos. Um plano aparentemente muito mal enquadrado de um bar com a voz de uma rapariga ao telefone. Há uma mulher que se vira e vai olhando: o que é que se passa? Fala para alguém, preocupada. Levanta-se e senta-se à nossa frente. Corta e somos situados na acção, mas o mote já está lançado. Confusão, colisões e sonhos perdidos, esperanças furadas. Começa assim, Like Someone in Love

Uma rapariga que se vê obrigada a trabalhar como acompanhante para pagar os estudos em Tóquio, cidade de doze milhões de habitantes. Mente ao namorado, que começa a achar que se passa alguma coisa. Uma amiga que a cobre e a ajuda. Um chulo que lhe diz que tem um cliente muito importante. Uma avó que veio a Tóquio e a quer ver, tem-lhe telefonado o dia inteiro, sem sucesso. Um escritor e tradutor com uma certa idade que quer companhia para o jantar - tem saudades da família. Um rapaz ciumento e obsessivo que mostra cedo ao que vem, com pouca cabeça e bom senso. São as pessoas que povoam este filme, que não vem reconfortar ninguém. E por muito que Kiarostami experimente, seja com ângulos fixos de câmara dentro de carros ou reflexos e transparências em capôs ou janelas, é sempre o sentimento que fica connosco. Sete mensagens de voz ouvidas em auriculares, com a vida nocturna de Tóquio a passar-nos à frente dos olhos. Uma rotunda circundada duas vezes a deixar-nos com o coração nas mãos: técnica e emoção. Um cerco a uma rapariga e a um velho só com passos e pancadas na banda-sonora, provando que é possível expressar o maior perigo e a maior tensão com os menores meios. Seja no Irão, na Toscana ou no Japão.

[1] in «Kiarostami fait sa révolution en tournant un film en Italie avec Juliette Binoche», Jacques Mandelbaum, Le Monde, 4 de Julho de 2009.
[2] Pode-se voltar a citar o artigo de Mandelbaum: “Dois dias passados no local, 29 e 30 de Junho, são suficientes para constatar que toda a rodagem é imprevisível e misteriosamente inspirada. Uma espécie de destruição graciosa do plano de trabalho. Assim, são dedicados dois dias à realização de um plano-sequência de apenas dez minutos: as duas personagens saem de uma ruela e depois discutem na praça central da vila, à sombra de uma verdadeira igreja barroca e de uma falsa escultura no estilo antigo. 
“O número de tomadas é incalculável, assim como as variações introduzidas progressivamente pelo cineasta: diálogos, figurantes, cenários, movimentos, posições da câmara, e até a presença de uma flor em campo. Tudo é sujeito a uma recomposição constante e minuciosa sobre a matéria.”

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