quarta-feira, 23 de outubro de 2019

Nathalie Granger (1972) de Marguerite Duras



por Mathilde Ferreira Neves

(...) Já avançada a sinopse no preâmbulo deste trabalho e antes de explorar questões propriamente cinematográficas em relação ao filme Nathalie Granger, devem ser abordadas as três linhas condutoras do filme: a casa associada à ocupação do tempo das mulheres, a violência associada ao silêncio, e a invasão do vendedor e o que isso representa. Estando todas estas linhas ligadas entre si, mesmo intricadas. (…) 

Para MD, fazer um filme a partir da casa é assumir uma contestação profunda. Por um lado, é reagir ao modo como, ao longo dos tempos, as mulheres foram sendo encerradas nesse espaço pelos maridos; por outro, é um meio de contar a história das mulheres que nas gerações anteriores passaram por aquela mesma casa (que data de 1750), caladas, vivendo numa espécie de equivalência ao que estas mulheres do filme vivem. 

Porém, se a casa é encarada primeiramente enquanto prisão, logo percebemos que ela funcionará igualmente enquanto refúgio, enquanto reduto e lugar de resistência das mulheres, onde estas poderão começar por exercer a sua liberdade, como mais à frente se tornará claro. 

Quanto à segunda linha condutora, que relaciona violência e silêncio, podemos explorá-la sob vários prismas. (…) 

Esta classe da violência de que autora nos fala não é um problema de classe, abrange todos os níveis sociais e de instrução. A violência é aqui a natureza mesma da infância e da adolescência confrontadas com a sociedade contemporânea; é afinal a violência que se torna em si mesma uma classe. Curiosamente, a violência nunca é verdadeiramente mostrada no decorrer do filme: chega-nos pelos blocos informativos da rádio, pelos relatórios de avaliação da directora da escola, pela tensão que perturba o semblante da mãe. Surge-nos, portanto, em alusão ou em modo silencioso, exceptuando quando vemos Nathalie empurrar com toda a força o seu carrinho de bonecas contra as pedras do quintal. (...)

O silêncio surge, então, enquanto política, enquanto estratégia de resistência da mulher contra uma cultura patriarcal (aqui, nomeadamente, representada no discurso do vendedor). O próprio filme nos surge um pouco como um filme mudo: o modo como a câmara se move, a composição dos planos, a montagem, transmitem as intenções da realizadora sem que seja necessário explicá-las, estendê-las por palavras. Através da própria forma, MD concretiza a ruptura com as normas, as convenções, colocando em causa a comum representação da realidade. (…) 

Neste filme tumultuoso, a violência é inaudível ou quase, é invisível ou quase (…). 

No que diz respeito à última linha condutora do filme, o vendedor de máquinas de lavar roupa (Gérard Depardieu, no seu primeiro grande papel no cinema), que surge na casa inadvertidamente e tenta convencer as duas mulheres (Lucia Bosè e Jeanne Moreau) a comprarem uma Vendetta Tambour 008, é ainda Heathcote que melhor nos explica a sua função: 
First, his most important feature seems to be his maleness. (...) Secondly, the way he personifies this order is through his language, a language which is insincere, repetitive and unconvincing. (...) Finally, he personifies not only masculinity but male-dominated commerce with his sales pitch (...). His language is therefore not only that of the male but of patriarchy – that of the bankruptcy of institutional discourses. (2002: 78-9)  
No entanto, assim que o vendedor se depara com aquelas duas mulheres, que o enfrentam com um olhar inquietante e penetrante, compreende que veio perturbar um domínio que, para além de lhe escapar, o desestabiliza por inteiro, até lhe ser negada a sua própria função social (a de vendedor porta a porta, profissão, entre tantas outras, que, para MD, não é sequer uma profissão); surgindo-nos, então, e ao contrário do que se previa com a sua intrusão e a anterior explicação de Heathcote, como um negativo do que veio representar (...).

Compreendemos, então, que quer insiders (as mulheres), quer outsiders (o homem) são frágeis e vítimas do medo. Na verdade, no entender de MD, a violência diz respeito a todos: todos nós somos receptores, transmissores e reprodutores, de uma maneira ou de outra, de violência (sendo a própria representação uma das suas formas). 

Depois de termos assistido às tarefas domésticas mais comezinhas do quotidiano daquelas duas mulheres (o levantar da mesa, o lavar e limpar da louça, o cozer e passar da roupa, assim como a manutenção do lago e do quintal); depois de termos assistido à eliminação dos perigos do exterior (a função do vendedor é desconstruída, o jornal, conta da electricidade e cadernetas escolares das crianças são queimados); depois de percebermos que afinal a mãe de Nathalie recusa enviá-la para uma instituição disciplinar (estando talvez a sua única possibilidade de salvação no aprender música/piano), e depois de o vendedor nos informar que mudará de emprego, o filme termina na deambulação do homem pela casa. (…) 

O filme termina exactamente onde termina o perímetro explorado pelo vendedor, que foge assustado daquele espaço que não consegue apreender. As mulheres, longe de aparecerem enquanto vítimas, venceram-no, sem se saber claramente no quê ou como. (…) 

À classificação do filme como feminista, MD resiste e considera tal etiqueta uma facilidade. Para ela, Nathalie Granger é, antes disso, o trabalhar da matéria do feminino: da função que as mulheres têm tido e mantido ao longo dos séculos, das angústias da mãe de Nathalie, que são, no fundo, as angústias de qualquer mãe. (...)

Mas o que é, efectivamente, importante para a realizadora é que o filme, muito para além de ser uma afirmação do feminino, é uma negação da sociedade tal como a conhecemos: 
[L]a grandeur du film: elle est là, dans cette espèce de sauvagerie rendue à la mère à partir de l’exemple de son enfant, de cette petite fille sauvage, qui ne veut rien entendre et qui est l’image même de la désobéissance, du refus de la société. Et la mère suit l’exemple de la petite. C’est ça qui me touche beaucoup dans Nathalie. (idem: 44).

in “Nathalie Granger | Le Camion | L’Homme Atlantique - Três Filmes Durasianos para Abordar a Escrita Branca, a Imagem Negra e a Não Voz da Voz”, 2011

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