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quinta-feira, 6 de julho de 2023

Lucky Star (1929) de Frank Borzage



por António Cruz Mendes

Tal como um funâmbulo, o melodrama percorre um cabo lançado sobre um abismo. Pode vencê-lo e ser sublime ou despenhar-se e tornar-se ridículo. Borzage, em Lucky Star, ganha esse desafio. Em seu auxílio, vão estar Janet Gaynor e Charles Farrell. Vamos voltar a vê-los, neste ciclo que dedicamos a Borzage, em A Hora Suprema e O Anjo da Rua. Juntos, fizeram mais nove filmes e eram, à época, os “America’s favorite lovebirds”. 

Mas, pode um paraplégico, apenas movido pela força da sua vontade, levantar-se da sua cadeira de rodas e, depois de várias quedas e com a temporária ajuda de umas muletas, ser capaz de caminhar sobre a neve para resgatar a sua amada de um destino infeliz? Quem já viu A Palavra, de Carl Dreyer, sabe que, pelo menos no cinema, os milagres são possíveis. Toda a obra de arte contém um elemento retórico. Saber usar os recursos de que um meio artístico dispõe para convencer o público da sua verdade é o repto do artista. A magia de Borzage está em fazer-nos aceitar como possível, por ser tão desejada, a reunião de Tim e Mary, no preciso momento em que ela se prepara para partir com Wrenn, sacrificando a sua felicidade ao bem-estar da família. Como poderia terminar de outra forma esta história de amor banhada de ternura e casta sensualidade? 

A relação entre os dois começa pelas valentes palmadas com que ele a castiga por causa de uma pequena vigarice. Mais tarde, ela vingar-se-á desse castigo partindo à pedrada uma janela da sua casa. Mas, Tim, isolado e preso a uma cadeira de rodas, acolhe com simpatia aquela miúda selvagem, mas de bom coração. Afinal, não foi ela que lhe escreveu para a trincheira a desejar-lhe boa sorte e a oferecer-se para lhe tricotar umas meias? E ela descobre, nessa casa limpa e ordenada, e no sorriso amigável do seu anfitrião, um mundo que lhe era estranho. Ela pergunta-lhe: "o que aconteceu às suas pernas?”. “Nada”, é a resposta: “estou a poupá-las para uma ocasião especial”. E lava-lhe as mãos e oferece-lhe um lenço para que não volte a precisar de limpar o nariz na manga do vestido. Quando ela se vai embora, promete-lhe voltar amanhã e no dia seguinte e todos os dias. 

Tim entretém-se a “consertar coisas” e ambos, ele e Mary, têm algo que precisa de ser consertado. Mary, pequena e suja, está habituada a recorrer a expedientes pouco correctos para garantir a sua sobrevivência, e ele próprio regressou estropiado da guerra. Os dois começam por se aproximar por curiosidade, depois, por simpatia. Mais tarde, um sentimento mais forte começa a uni-los. O bracelete que Tim oferece a Mary parece-lhe “um grande anel de noivado”. Na cena em que Tim lhe lava a cabeça, descobrindo que, afinal, os seus cabelos são louros, franqueia-se um limiar. E, quando se prepara para lhe lavar as costas (“afinal, quantos anos tens?”), recua pedindo-lhe para o fazer ela própria no regato próximo da casa. 

Não resisto a transcrever, do belíssimo texto que João Bénard da Costa escreveu sobre Lucky Star, a parte em que ele se refere a esta passagem do filme, na sua opinião, a sua sequência mais genial: “Começa com um balde. Tim decidiu dar um banho a Mary e a limpar de vez a imagem e o corpo dela. E são ovos o que usa para essa ablução, que a transforma também de morena em loura. À medida que a espuma aumenta e que a vergonha e a aflição de Mary crescem, sela-se a relação física entre os dois, sublinhada pelo plano magistral em que vemos a quantidade de cascas de ovo partidas. Tim começa a descer no corpo de Mary, que se lhe oferece. Mas, a dada altura, a evidência do corpo de mulher sobrepõe-se à da criança que até então vira nela. Detém o gesto de a despir e manda-a, para a profundidade de campo, continuar o banho que já não é capaz de lhe dar. Borzage abre, de novo, todo o espaço, para nos dar a entrever um pouco do corpo nu de Mary e um pouco do olhar que Tim não resiste a lançar sobre ela. E, desse banho, Mary sai mulher”. 

A transfiguração de Mary está completa quando ela se veste em casa de Tim para ir ao baile que se vai realizar no salão dos bombeiros. Mas, aí reaparece Wrenn. Conhecemo-lo desde uma das primeiras cenas do filme, quando se confronta com Tim no alto de um poste eléctrico que têm de reparar. Mary é já o motivo dessa disputa. 

Wrenn é um rufia, arrogante e mentiroso. Na guerra, é ele que envia Tim para a missão que o deixará paralítico. Não podia ir ele próprio porque tinha de ir visitar “umas damas”. A melhor forma de conquistar uma mulher, confidencia a um soldado, é prometer-lhe casamento e “prometer não custa nada”. Antes disso, tinha mostrado a Tim uma carta de Mary semelhante àquela que ele recebera. Nessas breves cenas, onde, da guerra, só percebemos o clarão das explosões, podemos antecipar o drama que se vai seguir. 

Dois anos depois, Wrenn expulso do exército, pavoneia-se fardado na sua terra, onde seduziu uma rapariga. No baile, vai abandoná-la, enfeitiçado pela beleza de Mary. Repudiado por ela, passa a insinuar-se junto da sua mãe como alguém que, desposando-a, poderá tirar a família da miséria em que vive. A Sra. Tucker rende-se a essa esperança e o futuro de Mary parece estar decidido quando o milagre acontece e o amor triunfa. 

A história baseia-se num pequeno conto de Tristan Tupper, Três episódios da vida de Timothy Osborn, mas o argumento do filme altera-o significativamente. No conto, Tim, ferido na guerra, regressa a casa onde conhece uma rapariga rica e outra pobre, com quem acaba por casar. No filme, a rapariga rica desaparece e o final é completamente diferente. 

Se hoje podemos ver Lucky Star, isso deve-se a um acaso também, ele milagroso. O filme foi realizado na altura em que surgiram os primeiros filmes falados e, para poder acompanhar essa novidade, a produção encomendou, à pressa, uma versão com poucos diálogos e alguns efeitos sonoros para o mercado norte-americano. Parece ter tido pouco sucesso. No estrangeiro, foi distribuída uma versão muda. As duas foram consideradas perdidas até que uma cópia do filme mudo foi redescoberta, em 1990, nos arquivos do Museu do Cinema de Amesterdão, no meio de outros filmes antigos. A partir da versão holandesa e do roteiro original, foi possível reconstituir os intertítulos e o filme de Borzage “ressuscitou”. 

Quando o João Palhares e o José Oliveira fundaram este cineclube, decidiram baptizá-lo com o nome do filme de Borzage que hoje vamos ver. Das suas razões, caberá a eles falar. Mas, tendo em conta a simpatia de todos os que nos visitam e apoio dos nossos associados, parece-me que também o nosso cineclube nasceu sob a luz de uma estrela ditosa.




sexta-feira, 16 de outubro de 2020

Chelovek s kino-apparatom (1929) de Dziga Vertov



por António Cruz Mendes

Denis Kaufman (1895-1954), cineasta que adoptou o pseudónimo Dziga Vertov (“dziga”, do ucraniano “roda”, e “vertov”, do russo, “vertev”, “que significa “girar”, nome que poderíamos traduzir por “pião que rodopia”), criou no campo do cinema documental uma obra que consideramos exemplar. 
 
Com a sua mulher e o seu irmão, fundou o grupo Kinoks cujo nome foi formado a partir das palavras Cine (Kino) e Olho (Glaz), que defendia a “honestidade” do documentário relativamente ao filme de ficção e a superioridade do olhar cinematográfico em face do da visão humana. Rejeitando a pretensão de uma falsa objectividade cinematográfica, fez da exploração das relações olho / câmara / realidade / montagem os pontos de partida para a construção da nova realidade construída pelo cinema. 
 
No contexto da programação dos Encontros da Imagem, que acolheu a ideia de “genesis” como tema, apresentamos O Homem da Câmara de Filmar, o seu filme mais conhecido, que, simultaneamente, procura documentar o nascimento de uma nova sociedade e exemplificar uma nova forma de conceber o cinema. Trata-se, por um lado, de assinalar o impacto da modernidade, da produção mecânica e da velocidade no ritmo da vida urbana, numa sociedade, como a da Rússia, durante muito tempo marcada pela persistência de velhas tradições e de estruturas sociais arcaicas; por outro, de o fazer através do olho da máquina de filmar, explorando todas as possibilidades oferecidas por esse poderoso mecanismo, ele próprio produto dos novos tempos que se pretendia celebrar. 
 
O documentário de Vertov oferece-nos, em imagens vertiginosas, uma perspectiva da vida moderna a partir da representação de um dia na vida de Moscovo, sobretudo, mas também de Kiev e de Odessa: o despertar, o movimento febril das ruas, o mundo do trabalho e da produção em série, o tempo de lazer, o cair da noite… É um olhar fascinado diante dos progressos técnicos e das transformações sociais ocorridas na União Soviética no período da NEP. Um filme que dispensa intertítulos, cenários artificiais e actores, afirmando claramente a sua independência em relação à literatura e ao teatro, para se exprimir como cinema em estado puro: mero registo de imagens em movimento captadas pela máquina operada pelo seu irmão, Mickhail Kaufman, e montadas pela sua mulher, Elizaveta Svilova. 
 
Dziga Vertov recorre a uma imensa panóplia de recursos cinematográficos: câmara lenta e animação, zooms, ecrã dividido, imagens múltiplas e imagens desfocadas. Recusa, portanto, qualquer descrição naturalista, mas reinventa a linguagem cinematográfica que, na sua assumida artificialidade, ele vê como o veículo ideal para exprimir uma sensibilidade futurista que ainda hoje nos consegue espantar. 
 
O conceito de “revolução” encontra-se subjacente tanto no tema, como na forma de o abordar. Considerava-se que os novos tempos anunciados pela revolução socialista de Outubro só podia ser expresso numa linguagem que fosse ela própria a expressão dessa mesma modernidade. Pensava-se, então, que as vanguardas artísticas (e, entre elas, o futurismo ocupava um lugar destacado) se deviam, logicamente, associar às vanguardas políticas na construção de um mundo novo e que esse mundo novo que a revolução profetizava não poderia ser anunciado através das velhas fórmulas artísticas herdadas do passado. 
 
De facto, com a afirmação do estalinismo, elas foram acusadas de um formalismo distante do entendimento e do gosto dos trabalhadores, sendo progressivamente asfixiadas e preteridas a favor do chamado “realismo socialista”, que privilegiava formas de expressão mais tradicionais. Depois deste filme, Dziga Vertov realizaria ainda mais alguns documentários, entre eles Três Canções para Lenine (1934) será o mais conhecido, mas O Homem da Câmara de Filmar terá sido o filme-manifesto que melhor exemplifica a sua concepção do que deveria ser um cinema revolucionário ao serviço da revolução.

sexta-feira, 9 de outubro de 2020

Arsenal (1929) de Aleksander Dovjenko



por André Miranda

Numa casa pobre uma mulher ocupa o espaço central. Cabeça voltada para baixo. Os braços caídos ao longo do corpo. Uma posição de completa angústia. A imagem repete-se. Outras mulheres, nas mesmas posições, espalhadas pela aldeia. Vemos homens desfeitos fisicamente. Um deles conduz um cavalo tísico pelo campo infértil. O desespero transborda, e o homem lança-se sobre o animal numa brutalidade primitiva. Ao mesmo tempo, a mãe agride os filhos que choram de fome. O czar, por sua vez, escreve no diário: "Hoje matei um corvo. O tempo está agradável." 
 
O império russo afunda-se na primeira guerra mundial. Os jovens são enviados para as trincheiras. As explosões sucedem-se. O gás mostarda corre pelo ar. Os soldados saltam dos buracos imundos onde se protegem da morte e atiram-se sobre a terra de ninguém. Vão matar outros homens como eles. Avançam com um ódio que não lhes pertence, seguindo as ordens de oficiais que nunca viram o rosto sorridente de um cadáver, sujo pela terra e pela pólvora. Mas do outro lado não está ninguém. Um deles pergunta: "Onde está o inimigo?" É morto pelas costas por um oficial. 
 
Encomendado pelo partido, o objectivo do filme era comemorar o levantamento dos trabalhadores ucranianos da fábrica de arsenal em Kiev, que desencadeou a revolta bolchevique na Ucrânia. A vitória que significou o fim daquele país enquanto estado livre e independente. Dovjenko era ucraniano. Não se sabe até que ponto sentimentos conflituosos existiram em si durante a realização. A verdade é que vários intelectuais do partido sentiram que o filme não cumpria os requisitos de uma obra que, acima da estética, devia ser propagandística. "Arsenal Falso" ou "Em vez de um épico, uma farsa", eram os títulos dos jornais ucranianos. A rebelião, que devia ser o ponto fulcral, não o era, queixavam-se. Em vez da celebração da alma proletária, Dovjenko perdia-se na crueldade da guerra, nos homens mutilados que regressam a casa, nas mulheres que perderam os filhos e os maridos, nas crianças que já não têm a quem chamar pai. 
 
Talvez para os membros zelosos do partido, Arsenal não atingisse o pináculo do que deve ser uma obra que ensina o povo e canta a glória de um destino que se cumpre. Ou talvez Dovjenko tivesse tomado demasiada liberdade artística. Mas a verdade é que a alma revolucionária está presente. E um só momento demonstra-o em toda a sua glória: uma mulher aguarda junto a um buraco aberto na terra coberta de neve; três homens entregam-lhe o corpo do filho caído pela causa e dizem: "Não temos tempo para explicar. A nossa vida e a nossa morte são revolucionárias."

sexta-feira, 2 de outubro de 2020

Un chien andalou (1929) de Luis Buñuel



por João Palhares

Aproveitando a transição do ciclo Buñuel para este terceiro ciclo em parceria com os Encontros da Imagem, depois de “O Belo e a Consolação” em 2018 e “What Now?” em 2019 (este ano o tema é “Génesis”, descrito e apresentado como “tudo isso: a origem ou criação e, como em todas as criações e também na arte, a génese sucede à destruição”), decidimos voltar-nos para o início da carreira do cineasta espanhol. Não apenas para jogar com essa analogia entre o tema que Carlos Fontes nos pôs nas mãos e o nascimento de um cineasta, ou associar esses vários começos possíveis ao início do cinema, mas também para louvar este filme-vanguarda que sobreviveu à própria vanguarda do surrealismo como acto verdadeiramente revolucionário, subversivo e fundador. Pleno de som e de fúria e ainda hoje perfeitamente indecifrável. 
 
«Todos nós éramos apoiantes de um certo conceito de revolução», ditou Luis Buñuel a Jean-Claude Carrière na sua auto-biografia, «e apesar dos surrealistas não se considerarem a si mesmos terroristas, estavam constantemente a combater uma sociedade que desprezavam. A arma principal deles não eram pistolas, claro; era o escândalo. O escândalo era um agente potente de revelação, capaz de expor crimes sociais como a exploração dum homem por outro, o imperialismo colonialista, a tirania religiosa—em suma, todos os alicerces secretos e odiosos de um sistema que tinha de ser destruído. O verdadeiro propósito do surrealismo não era criar um novo movimento literário, artístico, ou mesmo filosófico, mas explodir com a ordem social, transformar a própria vida. No entanto, logo a seguir à fundação do movimento vários membros rejeitaram esta estratégia e entraram na política “legítima”, especialmente o partido comunista, que parecia ser a única organização que merecia o epíteto de “revolucionária”.» 
 
Entre as muitas imagens do filme que se tornaram icónicas, dos seminaristas e dos pianos com cadáveres de cavalos em cima arrastados pela personagem do “homem” à mão com formigas, passando pelo homem sem boca ou as mamas que se transformam em nádegas, os corpos mortos finais no início da Primavera, a mais misteriosa talvez continue a ser mesmo a mais famosa: uma navalha rasga a córnea do olho esquerdo duma mulher enquanto uma nuvem atravessa uma lua cheia. É Buñuel quem desfere o golpe, o que não pode ser um dado insignificante. Pode-se pensar nas criações e nos partos que brotam da destruição, na ordem pelo fim da ordem, na vida que renasce das cinzas, mas talvez fique sobretudo essa sensação de que é possível viver de olhos abertos e não conseguir ver nada, ser preciso abrir mais os olhos, chegar ao cúmulo de ficar cego para passar a ver (o 7th Heaven de Frank Borzage em que Chico diz a Diane que “now that I'm blind, I can see that” é dois anos anterior a esta curta e Buñuel pode muito bem tê-lo visto). Planos inaugurais depois do “Era uma vez...” O realizador afia a navalha e olha para o céu nocturno, na atitude parece denunciar a censura de que andamos a olhar para as coisas sem as ver, que nos temos de preparar para a verdadeira revolução e deixar de nos fiarmos nos nossos sentidos, que há demasiados preconceitos a toldar-nos a mente e o juízo. Quase cem anos depois, depois de mais de um século de cinema, de todas as provações possíveis e imagináveis no mundo exterior, passámos a ver melhor? Porque é que há grandes profetas da mitologia que são cegos? Quando já se viu tudo, os olhos passam a meros acessórios? No Evangelho Segundo Mateus, livro 5, versículo 29, lê-se que “se o teu olho direito te escandalizar, arranca-o” e Luis Buñuel arranca o esquerdo. Porquê? 
 
Talvez não haja respostas, e nem se descreveu mais que o primeiro minuto de filme, prelúdio profético e muito adequado para a loucura que se segue, para os seus enigmas e para as suas muitas transgressões estéticas, religiosas, sociais, narrativas... Às vezes a única despedida ou conclusão possível é desejar uma boa noite e bons sonhos a todos.

sexta-feira, 28 de julho de 2017

Lucky Star (1929) de Frank Borzage



por José Oliveira

Começamos o ciclo de cinema americano com Charles Chaplin, mas não com a ternura de um City Lights, pois tratou-se de uma carta-branca a Pedro Costa e ele escolheu Monsieur Verdoux, um dos mais cruéis e lúcidos ajustes de contas com os crimes de alguns humanos que certamente não mereceram outra coisa. Foi Costa que disse, cito de memória, que foi preciso alguém – Chaplin – ter sofrido muito e ter visto muita coisa terrível para pôr em marcha aquela máquina arrasante que é Verdoux. E assim já entramos de cabeça no que foi o primeiro século do cinema de Hollywood, dos que trabalharam nas suas margens mas fazendo como o fizeram pois existiu essa montanha de todos os sonhos e de todos os pesadelos, ou os que lutaram contra ela e daí retiraram o produto do embate. De resto, alguns ainda não terão recuperado das guerras no terreno de Phil Karlson ou da solidão arrepiante de Nicholas Ray, da solidão gelada de quem tudo teve nas mãos e largou por conta e risco aceites do Jack Nicholson de Five Easy Pieces ou das guerras do dia-a-dia dos vampiros de Fritz Lang; como superar a subversão diabólica da natureza com que o esfarrapado humanista Sam Fuller sempre lutou, as máquinas carregadas de excesso de amor de The Tarnished Angels, a perdição dos que descobriram o seu dom logo no leite materno à imagem do Newman e do Cruise nos filmes de Robert Rossen e de Martin Scorsese? Enfim o Apocalipse tão antigo como no fio cortante do presente na monumental obra de Francis Ford Coppola. 

E assim foi o cinema americano... documento precioso e preciso das movimentações humanas e das maquinações do poder e da glória – e mesmo quando existiram os tão empolados pontapés na História ou as liberdades poéticas tudo isso só reforçou a loucura de existir, coexistir e sobreviver – onde uma grande Guerra Mundial poderia ser travada na cabeça de um indivíduo – Fuller outra vez, inevitavelmente, no Shock Corridor reservado a quem viu a luz cegante de certas verdades soterradas – ou no meio do total espectáculo que ela – a maldita guerra – também tende a ser cada vez mais, nos deixaram ficar com o ponto de areia minúsculo que o homem como o bicho é no cosmos, o filme de Coppola passando uma hora como um noir dos anos 40 ou na mesma medida do grito de deserto do genial e terrorífico The Incredible Shrinking Man. E assim foi o cinema americano... que tantas vezes só no movimento arrasante pode esquecer ou vingar o movimento arrasador que o presente excedia de realismo e de ficção. A Lilith de Jean Seberg que Rossen velou na sua despedida deste mundo foi tanto a primeira mulher criada pelo diabo como o ser frágil e sensível demais que não alinha nos jogos da vaidade e do dinamismo dos mercados actuais, que não compreende o que quer dizer pró-actividade nem consulta as agências verdadeiramente mabuseanas das agências de rating.... essa Lilith está mesmo ali bonita e pequenina e com todo o futuro azul e solar à sua frente no mais belo jardim e tudo lhe pode acontecer – Rossen, e tantos outros, nos fizeram ver isto através das imagens e dos sons saídos não só da carrne e do sangue e do suor como também do encontro e do desencontro das almas tacteantes. O fantasma carnívoro e omnívoro da luz e da química do cinema.

Mas hoje temos a última sessão, o fecho momentâneo. E urge redimir, limpar, extrair sujidades e cancros e culpas. Redimir misérias sem culpas. Urge, depois de um caminho e de uma via-sacra com tanta tortura e com tanta paixão – o Cinema Americano também é paixão incomensurável e um segundo cadente num filme de Ray pode valer a eternidade – ficar com uma imagem acabada e absoluta da luz do amor e da temperatura da coragem. E Frank Borzage, o realizador deste Lucky Star que deu nome ao nosso cineclube por sugestão de Pedro Costa, foi o mais puro entre os muitos anjinhos da guarda da nossa companhia que o cinema já teve ao canto da almofada. O que é bastante complexo de sustentar por palavras, pois só numa imagem de fusão perfeita entre o homem e a mulher e o mundo (e Deus) no final de Lucky Star pode ser sentido e percebido sem margem para dúvidas. O encontro das almas prometidas, merecidas, inseparáveis, neste mundo ou noutro qualquer, na chamada vida ou na imaginada morte. E complexo pois vários filmes de Borzage levaram ao cúmulo o erotismo, o surrealismo ou a metafísica. Pois as águas que banham e inundam Mary Duncan e Charles Farrel em The River são também correntes furiosas de esperma; a baixa combustão geral de George Brent mesmo depois de encontrar o seu arcanjo em Living on Velvet parece ligada a niilismos recentes que nada suscitam de bom, longe das dádivas sublimes; enfim, os brilhos enviesados e moldados à medida das leis sociais dos pares de corpo presente em The Shining Hour remetem para as bocarras elegantes de Ernst Lubitsch. Não entrando a fundo nas associações e simbolismos que também fundiram a filigrana da carne e a massa do espírito com o arrasador e camaleónico desejo e que assim cederam delícias aos surrealistas dos anos 20 e por aí fora.

Mas mesmo nisso tudo Borzage continua a ser o caminho, a verdade e o sagrado. O caminho, a verdade e a luz. Os rios orgásticos são olhados assim mesmo, sem ironia aprendida, existindo inteiros e reveladores na cidadela original. O desânimo e o apagamento e a negridão de quem viu a morte só deixam entrever uma parte mais bonita que é a ontológica, lá atrás no espanto da inocência e do choro do primeiro olhar, saindo da noite imemorial; os jogos de bastidores e de aparências vão acabar por destapar tudo e fazer surgir a nudez que não se veste, ainda no Éden. Com Frank Borzage, a redenção pura da criança corada, a claridade dos altos estelares a descer sobre o véu arrasante dos baixos mais do que baixos, o beijo na orelha oferecido a um dos seus três amados por Margaret Sullavan em Three Comrades, ser puro demais e de uma consumição instantânea porque na corda e na magia perfeita do pleno. E Margaret Sullavan é Borzage, é o cinema de Borzage e é a beleza e o romantismo. Quem se quiser purificar, que olhe a carne e a aura dessa menina e mulher nos sentidos mais plenos. Obra da criação e criadora esculpida tanto de carne comum como de luz inexplicável, rimando com os corpos que aparecem literalmente em luz no inexplicável Lucky Star. Lucky Star é o cinema pois todo o seu sentido pleno de emoção e de compreensão se atinge no escuro da sala rasgada pela luz que irrompe lá do alto. Inexplicável, incompreensível e plena.




por João Palhares

Como é óbvio, não podíamos terminar este ciclo de cinema americano que nos levou dos anos 30 ao nosso século e depois de volta para os anos 20, sem mostrar o filme que nos deu o nome, julgado perdido durante décadas e milagrosamente re-encontrado nos anos 90 nos cofres do Filmmuseum da Holanda: Lucky Star de Frank Borzage. É o terceiro filme do par tão estranho como enternecedor que Charles Farrell e Janet Gaynor formaram de final dos anos 20 a inícios dos anos 30, depois de 7th Heaven e Street Angel, ambos também de Borzage (“ela, palmo e meio de altura, “piccina, tanto piccina, troppo piccina”, como escreveu o meu heterónimo Ramperti, pintas na cara e nos olhos, mozartianíssima, assustadíssima (...) Ele, com quase dois metros de altura, um corpanzil imensíssimo, pés e mãos quase do tamanho dela e, lá em cima, uma cara simpática e imberbe. Corpo de quem morde, cara que não ladra”, diz o grande João Bénard da Costa no seu texto sobre o filme). Trabalhariam juntos, ainda, com Raoul Walsh e Henry King, mas foi com Borzage que sonharam com todos os céus só com o chão como amparo, que se olharam um ao outro alma na alma (se se disser “olhos nos olhos” não se começa sequer a desvendar o mistério, já que aqui a alma testa os próprios limites do corpo - não é o próprio Farrell que diz em 7th Heaven que "now that I'm blind, I can see that"?), que percorreram e ultrapassaram mil obstáculos para voltarem a estar um com o outro.

Foi no mundo de Frank Borzage, filho de um pedreiro de uma área agora italiana do antigo Império Austríaco e de uma empregada suíça de uma fábrica de seda (quem reconhecer neles alguns dos seus heróis, não estará totalmente enganado). Mundo de transfigurações e transmigrações, fusões místicas de amor e entendimentos e partilhas telepáticas, de seres imensamente maiores que os seus corpos, em que o próprio estúdio de cinema se transformava a pinceladas de luz e à frente dos nossos olhos numa realidade total e transcendente. Em I've Always Loved You, as personagens de Philip Dorn e Catherine McLeod separavam-se depois de um concerto em que ele tentava esmagar o piano dela com todos os instrumentos da sua orquestra como se se batessem ou fizessem amor, encontrando-se noutro momento transmigratório e telepático pela música que tocavam e como se se ouvissem um ao outro, apesar de quilómetros os afastarem. Em Liliom, Charles Farrell descreve a Rose Hobart o comboio que só ele e nós vemos a atravessar o cenário para o levar a prestar contas ao Criador e voltar para se redimir dos seus pecados da forma mais insólita e inesperada possível. O coração sabe o que quer e vê verdades e amores profundos escondidos em acções aparentemente mal intencionadas e egoístas. Em The Mortal Storm, o mal nazi nascia numa taberna em confrontos palpáveis entre a acção e o silêncio, entre o medo e a razão - com certeza a ilustração mais verdadeira para com a experiência interior dos alemães que se recusavam a sucumbir a esse mal e pagavam por isso.

Mas como o que nos interessa agora é outro filme de Borzage, Lucky Star apresenta-nos primeiro a personagem de Janet Gaynor, Mary, antagonizada por uma mãe que tem mais quatro filhos pequenos além dela. Vemo-los a descer as escadas, lembramo-nos de um que não as desce tão rápido como os irmãos e ainda sobe, devagar, antes de as descer finalmente e ir ter com os outros. Não haverá um sentido para esta acção, é só uma prova de que Borzage abraça os imprevistos e os acidentes e os deixa entrar pelos seus planos dentro. A personagem de Charles Farrell, Tim, trabalha muito perto da pequena fazenda de Mary, conhecem-se quando esta lhe vai levar a ele e aos seus colegas algum leite a que vemos ter misturado água para ganhar mais uns trocos (primeira das suas vigarices que vemos no filme e que tanto irritam Tim), tentando depois enganar o patrão de Tim ao esconder uma moeda que este lhe tinha dado por baixo do seu sapato. Tim percebe a patranha e dá-lhe uma sova. Alistam-se todos para combater na Primeira Grande Guerra. Tim regressa com as pernas paralisadas e com redobrado interesse em arranjar coisas que se estragaram ("Never thought much about broken things, until I got smashed up myself. That gave me the idea," diz ele a um amigo depois de ter estado um ano em França e outro no hospital). Não sabe que até ao filme acabar é ele quem vai ser transformado e arranjado pela força redentora do amor, numa travessia terrível pela neve e um abraço belíssimo por cima dos carris que prometem auspiciosos recomeços para si e para Mary.

Ver estes filmes de Frank Borzage (que era muitíssimo admirado, pelo menos pelos seus pares: Samuel Fuller disse que "Frank Borzage foi um dos maiores realizadores americanos de todos os tempos", Sergei Eisenstein equiparava-o a Chaplin e Stroheim, era o realizador favorito de Terence Fisher, junto a John Ford) ajuda-nos com certeza a perceber a geração de cinéfilos dos anos cinquenta e sessenta, que vivia o cinema tão intensamente como a vida. Apetece citar de cor o juiz benévolo de Karl May de Hans-Hürgen Syberberg, que antes do julgamento decisivo desse escritor alemão falava de um mundo interior muito maior que o das montanhas, dos mares e das planícies que se estendiam por esse planeta fora. Um mundo das ideias, um mundo dos sentimentos, um mundo dos sonhos. Podia ser a mitologia dos romances de Karl May, podia ser o Quinto Império de Pessoa. Podiam ser o mundo e os filmes de Frank Borzage...