sexta-feira, 9 de outubro de 2020

Arsenal (1929) de Aleksander Dovjenko



por André Miranda

Numa casa pobre uma mulher ocupa o espaço central. Cabeça voltada para baixo. Os braços caídos ao longo do corpo. Uma posição de completa angústia. A imagem repete-se. Outras mulheres, nas mesmas posições, espalhadas pela aldeia. Vemos homens desfeitos fisicamente. Um deles conduz um cavalo tísico pelo campo infértil. O desespero transborda, e o homem lança-se sobre o animal numa brutalidade primitiva. Ao mesmo tempo, a mãe agride os filhos que choram de fome. O czar, por sua vez, escreve no diário: "Hoje matei um corvo. O tempo está agradável." 
 
O império russo afunda-se na primeira guerra mundial. Os jovens são enviados para as trincheiras. As explosões sucedem-se. O gás mostarda corre pelo ar. Os soldados saltam dos buracos imundos onde se protegem da morte e atiram-se sobre a terra de ninguém. Vão matar outros homens como eles. Avançam com um ódio que não lhes pertence, seguindo as ordens de oficiais que nunca viram o rosto sorridente de um cadáver, sujo pela terra e pela pólvora. Mas do outro lado não está ninguém. Um deles pergunta: "Onde está o inimigo?" É morto pelas costas por um oficial. 
 
Encomendado pelo partido, o objectivo do filme era comemorar o levantamento dos trabalhadores ucranianos da fábrica de arsenal em Kiev, que desencadeou a revolta bolchevique na Ucrânia. A vitória que significou o fim daquele país enquanto estado livre e independente. Dovjenko era ucraniano. Não se sabe até que ponto sentimentos conflituosos existiram em si durante a realização. A verdade é que vários intelectuais do partido sentiram que o filme não cumpria os requisitos de uma obra que, acima da estética, devia ser propagandística. "Arsenal Falso" ou "Em vez de um épico, uma farsa", eram os títulos dos jornais ucranianos. A rebelião, que devia ser o ponto fulcral, não o era, queixavam-se. Em vez da celebração da alma proletária, Dovjenko perdia-se na crueldade da guerra, nos homens mutilados que regressam a casa, nas mulheres que perderam os filhos e os maridos, nas crianças que já não têm a quem chamar pai. 
 
Talvez para os membros zelosos do partido, Arsenal não atingisse o pináculo do que deve ser uma obra que ensina o povo e canta a glória de um destino que se cumpre. Ou talvez Dovjenko tivesse tomado demasiada liberdade artística. Mas a verdade é que a alma revolucionária está presente. E um só momento demonstra-o em toda a sua glória: uma mulher aguarda junto a um buraco aberto na terra coberta de neve; três homens entregam-lhe o corpo do filho caído pela causa e dizem: "Não temos tempo para explicar. A nossa vida e a nossa morte são revolucionárias."

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