sexta-feira, 2 de outubro de 2020

Un chien andalou (1929) de Luis Buñuel



por João Palhares

Aproveitando a transição do ciclo Buñuel para este terceiro ciclo em parceria com os Encontros da Imagem, depois de “O Belo e a Consolação” em 2018 e “What Now?” em 2019 (este ano o tema é “Génesis”, descrito e apresentado como “tudo isso: a origem ou criação e, como em todas as criações e também na arte, a génese sucede à destruição”), decidimos voltar-nos para o início da carreira do cineasta espanhol. Não apenas para jogar com essa analogia entre o tema que Carlos Fontes nos pôs nas mãos e o nascimento de um cineasta, ou associar esses vários começos possíveis ao início do cinema, mas também para louvar este filme-vanguarda que sobreviveu à própria vanguarda do surrealismo como acto verdadeiramente revolucionário, subversivo e fundador. Pleno de som e de fúria e ainda hoje perfeitamente indecifrável. 
 
«Todos nós éramos apoiantes de um certo conceito de revolução», ditou Luis Buñuel a Jean-Claude Carrière na sua auto-biografia, «e apesar dos surrealistas não se considerarem a si mesmos terroristas, estavam constantemente a combater uma sociedade que desprezavam. A arma principal deles não eram pistolas, claro; era o escândalo. O escândalo era um agente potente de revelação, capaz de expor crimes sociais como a exploração dum homem por outro, o imperialismo colonialista, a tirania religiosa—em suma, todos os alicerces secretos e odiosos de um sistema que tinha de ser destruído. O verdadeiro propósito do surrealismo não era criar um novo movimento literário, artístico, ou mesmo filosófico, mas explodir com a ordem social, transformar a própria vida. No entanto, logo a seguir à fundação do movimento vários membros rejeitaram esta estratégia e entraram na política “legítima”, especialmente o partido comunista, que parecia ser a única organização que merecia o epíteto de “revolucionária”.» 
 
Entre as muitas imagens do filme que se tornaram icónicas, dos seminaristas e dos pianos com cadáveres de cavalos em cima arrastados pela personagem do “homem” à mão com formigas, passando pelo homem sem boca ou as mamas que se transformam em nádegas, os corpos mortos finais no início da Primavera, a mais misteriosa talvez continue a ser mesmo a mais famosa: uma navalha rasga a córnea do olho esquerdo duma mulher enquanto uma nuvem atravessa uma lua cheia. É Buñuel quem desfere o golpe, o que não pode ser um dado insignificante. Pode-se pensar nas criações e nos partos que brotam da destruição, na ordem pelo fim da ordem, na vida que renasce das cinzas, mas talvez fique sobretudo essa sensação de que é possível viver de olhos abertos e não conseguir ver nada, ser preciso abrir mais os olhos, chegar ao cúmulo de ficar cego para passar a ver (o 7th Heaven de Frank Borzage em que Chico diz a Diane que “now that I'm blind, I can see that” é dois anos anterior a esta curta e Buñuel pode muito bem tê-lo visto). Planos inaugurais depois do “Era uma vez...” O realizador afia a navalha e olha para o céu nocturno, na atitude parece denunciar a censura de que andamos a olhar para as coisas sem as ver, que nos temos de preparar para a verdadeira revolução e deixar de nos fiarmos nos nossos sentidos, que há demasiados preconceitos a toldar-nos a mente e o juízo. Quase cem anos depois, depois de mais de um século de cinema, de todas as provações possíveis e imagináveis no mundo exterior, passámos a ver melhor? Porque é que há grandes profetas da mitologia que são cegos? Quando já se viu tudo, os olhos passam a meros acessórios? No Evangelho Segundo Mateus, livro 5, versículo 29, lê-se que “se o teu olho direito te escandalizar, arranca-o” e Luis Buñuel arranca o esquerdo. Porquê? 
 
Talvez não haja respostas, e nem se descreveu mais que o primeiro minuto de filme, prelúdio profético e muito adequado para a loucura que se segue, para os seus enigmas e para as suas muitas transgressões estéticas, religiosas, sociais, narrativas... Às vezes a única despedida ou conclusão possível é desejar uma boa noite e bons sonhos a todos.

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