terça-feira, 6 de outubro de 2020

178ª sessão: dia 8 de Outubro (Quinta-Feira), às 21h30


Chegados à segunda semana de Outubro, voltamos às revoluções e à vida que nasce das cinzas - a sangue e violência na Ucrânia do início do século vinte. Vamos acompanhar um soldado desiludido que sobreviveu ao flagelo da primeira grande guerra para desafiar as autoridades e tentar instaurar o sistema soviético na sua Kiev natal. O filme é Arsenal, foi realizado por Aleksander Dovjenko e é a nossa próxima sessão no auditório da Casa dos Crivos.

Em forma de apresentação do cineasta soviético, cuja obra nunca tínhamos exibido, relembramos palavras de Henri Agel, que escreveu no seu belo livro Les Grands Cinéastes que Je Propose que "de certa forma, o autor de Michurin é o anti-Zola na medida em que a imagem, nele, não é a figuração mas a própria expressão de uma fé ardente na fecundidade do futuro. Se o autor de Paris gosta das metáforas que sugerem essa fecundidade, Dovjenko vê-as através de um temperamento que só se podia exprimir plenamente pelo cinema. A sinfonia da colheita em A Terra, os girassóis em grande plano do início de Shchors, a envergadura beethoveniana do Outono de Michurin não revelam apenas o amor imenso do autor pela sua terra, o seu enraizamento na pátria ucraniana: comunicam também a presença vitoriosa dessa matriz eternamente jovem que dita ao homem o seu destino épico. Entre os cineastas dessa época, nenhum senão Dovjenko estava convencido da vocação gloriosa e transformadora do homem soviético. O seu panteísmo instintivo unia as grandes revoluções cósmicas à afirmação incessantemente alargada das possibilidades humanas. Ao longo do estudo substancial que lhe dedicou no nº 648 de Lettres françaises, Sadoul lembra o acto de fé de Dovjenko: «Não há uma época na história mais heróica que a nossa nem pela envergadura dos acontecimentos nem pelo seu poder nem pela profundidade ilimitada dos seus significados.» Esta convicção nunca mais se desmentiu desde o primeiro grande filme de Dovjenko, Zvenigora, do qual Eisenstein exaltou o poder de imaginação poética, até à evocação da Idade de Ouro orquestrada em Michurin e O Poema do Mar.

"As obras explicitamente épicas de Dovjenko são animadas pelo mesmo lirismo: a Sibéria de Aerograd e as grandes extensões nevadas de Shchors ampliam a luta dos soldados russos, no primeiro contra os japoneses, no segundo contra as tropas alemãs de ocupação em 1918; mas são a vibração do estilo e a sua diversidade de expressão que nos agarram: em Arsenal, a imobilização das máquinas paradas pelos grevistas lembra o emprego que Eisenstein fez da imobilidade no final do Couraçado Potemkine. O descarrilamento com que se inaugura Arsenal aproxima-se pelo seu poder rítmico das primeiras imagens de Shchors, que nos mostram o tumulto da guerra, os cavalos nas searas de trigo, os incêndios e as explosões. O que sempre houve de recolhido e de imponente na montagem soviética atinge aqui uma plenitude espantosa. Mas o lirismo de Shchors oferece outra surpresa: alia-se à brincadeira, aproxima-se do picaresco, alterna com o cómico ou insere-se em pleno coração da tragédia, tal como nos episódios centrados no valente amigo do herói: o seu discurso no palco, atrás de um canhão, o seu desespero com a perda da mulher que só se acalma com o presente de um sabre. A envergadura épica regressa só no episódio do seu cortejo fúnebre que nos mostra em plano aproximado a sua maca sobre um fundo todo a crepitar de galopes. A este filme adequar-se-ia plenamente o que Eisenstein escreveu de Zvenigora: «O charme de uma concepção de espírito completamente particular; de um encontro harmonioso entre a realidade objectiva e a inspiração poética; elementos mitológicos introduzidos no mundo moderno; humor e patético, verdadeiro Gogol.» (in «Ciné-club», nº 5) Esta referência a Gogol é bastante esclarecedora: em suma, o que falta aos grandes contemporâneos russos de Dovjenko, talvez seja essa possibilidade de relaxamento, a descontração da epopeia num sorriso de malícia, como em Homero. E se Dovjenko lembra Brueghel pelo menos em Shchors, não é apenas pela beleza das paisagens de neve mas por um certo gosto regional que não é a mais pequena das atracções do cinema soviético no que tem de melhor."

Para a Senses of Cinema, Miguel Marías escreveu que "ver Arsenal (Arsienal) de Aleksander Dovjenko hoje em dia pode-se revelar uma experiência estranhamente impressionante; pode parecer ao espectador tanto um filme muito remoto – não só pela sua idade, mas também devido ao abismo sempre crescente entre a sua concepção visionária do que os filmes deviam ser e aquilo a que estamos agora habituados a aceitar como cinema – e, depois de alguma reflexão, um filme muito moderno, talvez mesmo demasiado moderno para nós. Não sendo um filme narrativo clássico, Arsenal é imediatamente visto como uma sucessão rápida de imagens aparentemente não relacionadas. Algumas das suas imagens têm a crueza, a simplicidade e a urgência de metragem documental ou de actualidades, enquanto outras parecem bastante formalistas, mesmo expressionistas ou exageradas, jogando com as bordas do enquadramento ou com simetrias invertidas enquanto empregam formas bem variadas de alcançar um estado de abstracção. 
 
"Várias séries de planos aparentemente não relacionados são montados como se não houvesse diferença alguma na sua respectiva natureza, categoria, ou grau de estilização. Arsenal, por um lado, tem um aspecto bastante primitivo e apresenta alguns desvios notáveis dos princípios do realismo-socialista que supostamente já estavam a ser impostos pelas autoridades fílmicas/políticas soviéticas na altura do seu lançamento (como o cavalo que fala, obviamente em intertítulos, já que o cinema soviético iria permanecer mudo durante muitos mais anos). Por outro lado, Arsenal é reminiscente e antecipativo da liberdade associativa característica de Godard, Straub/Huillet ou os primeiros Makavejev. O efeito global de Arsenal está bastante em discordância com outros filmes soviéticos familiares feito na mesma altura, como A Linha Geral ou O Velho e o Novo (1929) de Eisenstein – mesmo que estes possam ter sido influenciados até certo ponto pelo filme de Dovzhenko. Parte do fascínio do trabalho de Dovzhenko reside em contradições destas, embora tenha ameaçado a continuidade do trabalho do autor como cineasta."

Já João Bénard da Costa escreveu na sua folha da Cinemateca sobre o filme que "(...) o que em Zvenigora era poema (o tal poema em doze cantos) volve-se aqui em "poema sinfónico", em epopeia de sons e imagens, a que Dovjenko chamou «histórico-revolucionária». O que nos leva, desde logo, a uma questão histórica. Arsenal é um filme, ainda, da época do mudo (o sonoro só se generalizou na URSS a partir de 1931, quatro anos depois da estreia de The Jazz Singer). Mas, sempre, Dovjenko se recusou a ver ou a pensar este filme sem acompanhamento musical, à época a partitura de Igor Belza. Por isso, me decidi a projectar a versão sonorizada reconstituída há dez anos, de tal modo a versão totalmente muda desta obra fica amputada. Outros filmes de Dovjenko (como da maior parte dos grandes mestres russos) foram recentemente sonorizados. Mas se, por exemplo, as bandas sonoras que conheço introduzidas em Zvenigora ou em A Terra são pleonásticas, imitativas ou nada acrescentam, em Arsenal o contra ponto imagem-som é fundamental. E é-o porque todo o filme, ao contrário dos citados assenta na ideia de montagem e dou carradas de razão ao crítico francês Barthélémy Amengual quando este sustenta que «nenhum filme soviético foi mais longe nas vias do 'cinema de montagem', nem mesmo o de Eisenstein». Arsenal é um ano posterior a Outubro de Eisenstein e é contemporâneo de A Linha Geral. Comparem-se essas obras a esta e, em minha opinião, o filme de Dovjenko ilustra melhor do que os de Eisenstein, a célebre definição do último da montagem: «uma espécie de post-pintura evoluindo para uma espécie de pré-música - música dos olhos». Pode-se conjecturar sobre a influência exercida por Eisenstein sobre Dovjenko, o Eisenstein de A Greve, Potemkin ou Outubro. Ela é evidente e comprovada. Mas a «libertação de toda a acção de definições de tempo e espaço», «a dramaturgia do visual» nunca foram, quanto a mim, levadas tão longe como nesta obra-prima, sobretudo nos primeiros vinte minutos dela. John Reed, referindo-se à Revolução de Outubro, falou, como "toda a gente" sobre «dez dias que abalaram o mundo». Em Arsenal apetece falar de 15 minutos (os tais iniciais) que abalaram o mundo das imagens, introduzindo na dinâmica cinemática semelhante revolução."

Até Quinta-Feira!

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