Depois dos anos vinte, espreitamos agora as vanguardas do século XXI, à procura de rimas e parentescos. Foi no início deste nosso século que Joana Torgal e Rodolfo Pimenta, através de um apoio da Fundação Minas da Panasqueira para a criação de um banco de sons das Minas, realizaram Wolfram, a Saliva do Lobo (2010), a nossa próxima sessão no auditório da Casa dos Crivos, que será antecedida por uma apresentação em vídeo pelo crítico e realizador brasileiro Bruno Andrade.
Em Outubro de 2010, em texto publicado no Jornal dos Encontros de 2013 e na Foco - Revista de cinema de 2014-2015, Mário Fernandes (programador e também realizador de The Last Day of Leonard Cohen in Hydra, que vimos em Outubro de 2018) escreveu que "nesta maravilhosa e portentosa obra-prima do cinema, o Pimenta e a Joana acompanham o processo de extracção e transformação do minério das Minas da Panasqueira. Sem explicações em voz off, sem diálogos, sem cair na confrangedora antropologia audiovisual tão em voga, sem a armadura patética do realizador etnográfico, souberam negar as pretensas e idiotas continuidades narrativas documentais.
"Apostaram numa “montagem de atracções”, tributária de Eisenstein e Vertov (ressalvando as diferenças entre os dois realizadores), em que todos os planos criam sensações, ressonâncias emocionais, jogos de elementos, matérias e maquinações que geram estímulos e reacções.
"Assim, através de metamorfoses sucessivas da matéria, em movimentos ascendentes, descendentes e dispersivos, os dois realizadores fraturam o bloco bruto da matéria em partículas resistentes à análise, ao controlo; ninguém do lado de cá consegue juntar as peças nem reconhecer os materiais, só a Beralt Tin dá um peso e uma medida e um preço de mercado como filmam com ironia o Pimenta e a Joana. Na Realidade, o “preço simbólico” ou o “símbolo preçado” é fracturável e não facturável, consome-se em galerias subterrâneas, criptomanias, túneis, tubos de ensaio, cavidades, labirintos, licantropias, máquinas, decomposições, sombras, explosões, ângulos insólitos, curto-circuitos etc... O minério desmultiplica-se numa plural trasladação simultânea. Na “cripta fílmica” da mina os segredos só se revelam pela fractura e a cripta constrói-se pela violência emocional e material dos fragmentos."
Em entrevista ao mesmo Mário Fernandes, e quando este lhes pergunta se estavam interessados em "captar uma certa desumanização do trabalho", Torgal e Pimenta respondem que "sim. Na sociedade, a importância que se atribui ao minério (produto) é superior à que se atribui ao mineiro (homem). Neste filme esta ideia está subjacente, pois o mineiro encontra-se quase sempre em segundo plano, como um vigilante do precioso processo mecânico. O mineiro apenas surge em primeiro plano no final do filme, quando se corporiza em árvore, mantendo-se firme e resistente perante a vida e a morte. Não existe uma completa recusa da palavra, mas antes o recurso à dureza e riqueza visual e sonora, que tem a capacidade de nos envolver numa realidade muito particular."
Quando Mário Fernandes lhes pergunta na mesma entrevista se foderam alguma lente, os realizadores respondem que "com alguma sorte nenhuma lente nos fodeu! (risos)
Ao filmar-se certos planos não se sente medo, mas antes respeito e alguma adrenalina. Tal como filmares em cima dos vagões, com o tecto a meio palmo da testa, ou confinados num buraco onde só cabíamos nós e uma pá escavadora para recolher os escombros, ou ainda, quando te encontravas em cruzamentos sonoros de máquinas escavadoras a aproximarem-se na escuridão. Tanto a mina como a lavaria são lugares labirínticos onde nos podemos “perder ou encontrar”."
Em texto publicado para a revista Estado da Arte, Bruno Andrade, Matheus Cartaxo e Yuri Lins, defensores apaixonadíssimos deste filme, apresentam o filme ao Brasil, falando dos "homens que extraem minério, transformam madeira em carvão e saudades em cartas, enquanto são filmados por realizadores que, com suas câmeras, tripés e microfones, colhem e burilam seus gestos. O esforço para dobrar a matéria, o aprendizado da sua manipulação, o artesanato, tudo isso é o que nos dão a ver os oito filmes apresentados na mostra Perspectivas do Cinema Português, que acontece no dia 24/07 na Cinemateca Brasileira, com produção da Foco – Revista de Cinema e da Pena Capital.
"Para fazer Wolfram – A saliva do lobo (2010), Joana Torgal e Rodolfo Pimenta levaram dois anos se familiarizando com a rotina das Minas de Panasqueira, no centro de Portugal, conhecendo os ritmos e a respiração própria de alguns dos maiores corredores subterrâneos do mundo e desenvolvendo técnicas especiais para registrá-los em vídeo. A câmera, apenas uma, e os microfones, instalados nas minas pelos cineastas como se fossem eles mesmos mineradores, acompanham máquinas que devoram a terra como monstros de alguma mitologia desconhecida, mas agora documentada."
Até Quinta-Feira!
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