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quinta-feira, 29 de junho de 2023

Au Hasard Balthazar (1966) de Robert Bresson



por Alexandra Barros

Encontrado recorrentemente em listas de “melhores filmes de sempre”, Au hasard Balthazar acompanha um burro desde o baptismo, com o sal da sabedoria, até à morte. Atirado, por sucessivas casualidades, de dono em dono, (quase) tudo o que a vida reserva a Balthazar são trabalhos árduos e sofrimento. Por causa dos muitos símbolos cristãos presentes no filme, nele podemos ver uma representação da passagem de Cristo pela Terra, mas as suas imagens enigmáticas evocam diversos outros significados mais vulgares (no sentido de não divinos) e o filme pode ler-se – também – como uma alegoria da condição humana. 

Marie “apaixona”-se por Balthazar e, durante a infância, divide o seu afecto entre o burrinho e o seu querido Jacques. A vida é doce para todos, mas a morte de uma irmã de Jacques altera inesperadamente o rumo das suas existências. Balthazar fica sujeito aos grilhões dos senhores que lhe vão calhando em sorte. Marie, amarrada ao domínio de um pai ultraprotector e ao desgosto amoroso que por causa dele vai sofrer, tentará libertar-se, mas vai substituir estas amarras por outras, sem nunca conseguir realmente escapar. 

Quando Marie é abandonada, sem explicação, por Jacques, devido a desavenças entre os respectivos pais, a sua ternura e essência amorosa passam a ser totalmente dirigidas para Balthazar. Acontece-lhe então a força do desejo de Gérard. Unidos pelo impulso sexual, que Marie confunde com o amor, Gérard e Marie têm uma relação física, cheia de indeterminações e duplicidades. Marie parece submeter-se a Gérard, mas essa submissão é uma via (que se vem a revelar sacra) para a auto- afirmação, uma forma (ilusória) de se evadir da prisão atrofiante de um pai que pretende amá-la, mas é indiferente aos seus sentimentos. A liberdade ansiada lança Marie numa sucessão atribulada de acontecimentos, que aparentemente espelham o martírio de Balthazar. Porém, a mortificação de Marie tem origem, mais do que na crueldade dos homens, nos arreios que lhes tolhem e determinam os movimentos: o orgulho e inflexibilidade do pai, a cobardia e inconsequência de Jacques, a procura de prazeres imediatos e a vida delinquente e sem sentido de Gérard, a avareza e egoísmo de um comerciante rico. 

A ambiguidade de Marie em relação a Gérard, fica expressa logo na primeira tentativa de aproximação. Na cena nocturna em que Gérard espia Marie no seu jardim, esta, sabendo-se observada, “oferece” a mão, pousando-a ao alcance de Gérard, no banco em que está sentada. Retira-a, porém, bruscamente quando Gérard está prestes a tocá-la. 

Nesta, como em diversas outras cenas, Bresson filma apenas as mãos e os seus gestos, sugerindo o que se passa no interior das personagens, sem nunca o explicitar. Para Bresson, o cinema não é a reprodução ou narração de uma história, nem consiste em filmar actores a interpretá-la. Numa entrevista realizada a propósito deste filme[1], Bresson afirma que o poder do cinema está no carácter simbólico das imagens. Para si, o cinema como arte (não o cinema-entretenimento) é feito da justaposição de imagens, da justaposição de imagens e sons e da justaposição de sons com outros sons. É através deste processo que há criação porque através dele as imagens transformam-se. "É necessário que uma imagem se transforme em contacto com outras imagens, como uma cor em contacto com outras cores. Um azul não é o mesmo azul ao lado de um verde, de um amarelo ou de um vermelho. Não há arte sem transformação".[2] Para o processo resultar, cada imagem tem que ter uma certa neutralidade, não pode ter demasiado significado dramático. Esse significado deve emergir da interacção com as outras imagens. Entre o que é mostrado e o que não é mostrado surge a complexidade, a riqueza artística. Daí Bresson recusar o sentimentalismo encenado e a teatralidade, e preferir trabalhar com actores não profissionais. Daí, também, as personagens serem, muitas vezes, mostradas em enquadramentos onde cabem o tronco ou as pernas ou as mãos, mas não o rosto. Neste como noutros filmes, é repetidamente pelas mãos que as personagens “falam”. Além das mãos, e da linguagem corporal, Bresson recorre frequentemente a portas e janelas como elementos simbólicos. Estas estruturas têm uma intrigante e quase surreal presença no encontro final (que Bresson não mostra) entre Marie e o bando de Gérard, quando estes infligem a Marie o seu mais duro golpe. Também Balthazar está prestes a sofrer, uma última vez, às mãos do mesmo bando. 

As metáforas e alusões abundam nestas cenas finais. Balthazar é obrigado a transportar pesados alforges carregados de ouro e perfume, as ofertas dos Reis Magos por ocasião do nascimento de Jesus. Atingido por uma bala, a ferida circular por onde escorre o seu sangue, assemelha-se às Chagas de Cristo. Ferido, Balthazar deixa a protecção da cerrada floresta alpina e desce para um vale a céu aberto onde pasta um rebanho. Rodeado por montanhas ao longe e ovelhas ao perto, deita-se, por fim. Estas belíssimas imagens são mais luminosas que quaisquer outras no filme: o sol está radioso, a paisagem natural é encantadora, no ar ressoam apenas os indolentes sinos das ovelhas. De Marie nada mais se sabe, além de que partiu sem despedidas. 

J.L.Godard, com um invejável poder de síntese, descreveu assim o filme: “o mundo numa hora e meia”.




quinta-feira, 19 de maio de 2022

Uccellacci e uccellini (1966) de Pier Paolo Pasolini



por André Miranda

Quem nunca falou com um corvo que atire a primeira pedra. Isto disse Jesus Cristo, certo dia, quente ou frio, provável que estivesse quente, à multidão preparada a apedrejar pobre inocente. Isto que disse Jesus Cristo, hoje eu o repito: quem nunca falou com um corvo que atire a primeira pedra. O mais certo é ficar soterrado aquele que de alvo servir. 

O corvo só está curioso. É um corvo eloquente. Todos nós já nos cruzamos com um corvo curioso e eloquente. Os dois homens que caminham – sempre caminham – respondem dizendo nada. Um nada que diz tudo, isto escreveria eu se a banalidades fosse dado. O corvo saltita e pulula, entusiasmado tenta adivinhar destino. Falha, mas anda perto nas várias tentativas. Então resigna-se. Decide contar uma história aos homens, pai e filho. 

S. Francisco dirige prédica a uma árvore onde repousam passarinhos e passarões. Acusa-os de coisas falsas, coisas que só voz encontram na boca humana, mais ainda se esta for santa. Termina exigindo árdua tarefa a irmão Ciccillo e irmão Ninetto. Já não basta obrigar a todos que o seguem o andar descalços, ainda incube estes dois de ir pelo mundo convertendo pássaros. Os santos são homens exigentes. Sentencia, com todo o acerto, irmão Ciccillo. 

Palavras há muitas e nenhuma delas, mesmo que todas fossem usadas, seria entendível à razão dos pássaros. Por isso, a Ciccillo e Ninetto resta nada a não ser o sempre multifacetado silêncio. O hálito deste é mais forte quando se o pratica de joelhos prostrado. Assim o cumpre irmão Ciccillo. Aguenta sem vergar nunca ao escárnio das almas mais destituídas de decência e às intempéries das estações de um ano inteiro. Até que um dia Ciccillo fala num chilreio. Milagre. Enceta conversa com as aves. O que quer Deus, perguntam. Deus quer amor. É ser demasiado carente. 

O sucesso há que ser replicado. No entanto, nada é possível, muito menos a conversão aviária, se o tempo e o espaço se corrompem de barafunda humana, superficial e tagarelante. Faz-se de fúria irmão Ciccillo – o outro irmão pouco mais é que coisa pouca – e destrói tudo quanto o afasta da concentração requerida pela divina tarefa. Restitui-se o silêncio. Uma brincadeira de crianças é lâmpada. Para com os passarinhos falar é urgente imitar a forma como tocam o chão, é urgente saltitar. 

Passarinhos e passarões esfacelam-se desde o infindo dos tempos. Isto contam os dois irmãos a S. Francisco que os censura por não terem ensinado o que as aves deviam ter compreendido: que este mundo tem de mudar; que um dia virá um homem de olhos azuis que dirá coisas muito acertadas. Recomecem, ordena. Recomeçam, há mais para lá de cumprir ordens de santo? 
 
O corvo termina a história, mas não a viagem. Acompanha os dois homens pelo caminho que desconhecem e pelas diversas peripécias. Situações que me escuso de aqui relatar pois atingi o limite de caracteres que ninguém me impõe. Espero que com esta decisão, decisão que mais parece preguiça de quem escreve folha de sala num domingo à noite, não vos deixe furibundos. Aos que até aqui me leram peço que façais como qualquer santo, até dos de segunda categoria, e me perdoeis a leviandade com que termino. Aos que desistiram a meio, por cansaço ou desinteresse, digo só, que se danem.



quarta-feira, 17 de novembro de 2021

Nayak (1966) de Satyajit Ray



por Alexandra Barros

“Não sei quem sou, que alma tenho. Quando falo com sinceridade não sei com que sinceridade falo. [...] Enlevam-me ânsias que repudio. A minha perpétua atenção sobre mim perpetuamente me aponta traições de alma a um carácter que talvez eu não tenha [...] Sinto-me múltiplo. Sou como um quarto com inúmeros espelhos fantásticos que torcem para reflexões falsas uma única anterior realidade que não está em nenhuma e está em todas. [...] Sinto-me viver vidas alheias [...] uma suma de não-eus sintetizados num eu postiço.” Fernando Pessoa, Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação.

Todos somos múltiplos. Quando é que somos quem realmente somos, quando é que somos quem gostaríamos de ser, quando é que somos o que temos que ser? O Herói deste filme construiu uma persona pública para conseguir o que mais ambicionava, fama e dinheiro, mas os custos dessa máscara vêm a revelar-se muito pesados. 

O Herói é Arindam Mukherjee, uma estrela do cinema indiano, que viaja num comboio para Nova Deli, onde irá receber um prémio prestigiado. Aí conhece uma jornalista, Aditi Sengupta, que apesar de não ter interesse nem em Arindam nem nos seus filmes, lhe pede uma entrevista, com a qual ganhará leitoras para a sua revista. Inicialmente Arindam recusa mostrar a “carne e o sangue” como lhe sugere Aditi, para não desfazer a imagem grandiosa que o público tem dele. Mas os medos, inseguranças e arrependimentos inconfessados já chegaram à garganta. Como não corre o risco de desiludir Aditi (que não o admira), acaba por falar com ela sem encenações ou filtros. 

Arindam começa por contar o sonho que acabou de ter durante um breve período em que adormeceu. No sonho, Arindam vagueia por entre colinas de cumes arredondados onde esvoaçam folhas ao sabor do vento. Arindam está feliz, as colinas são pilhas de dinheiro e as folhas são notas. Contudo, um após outro, toques de telefone sufocam o bucolismo inicial e a fortuna descomunal acaba por engolir Arindam. É uma cena surreal memorável, com a magia peculiar dos efeitos-especiais analógicos, mais focados na “poesia visual” e simbolismo que nos excessos mirabolantes dos efeitos CGI atuais. 

A tentativa de perceber o sonho é o início de uma viagem com sabor a Morangos Silvestres[1], paralela à do comboio. Uma viagem ao passado, ao longo da qual Arindam revela os seus conflitos interiores, dores de consciência e aquilo de que abdicou para ser rico e célebre. As primeiras angústias surgiram no filme onde se iniciou. Face à autoridade do respeitado actor principal, representou de acordo com as orientações que recebeu dele, mesmo sabendo que teria feito melhor se tivesse adoptado um registo mais natural. Daí para a frente continuou a submeter-se às exigências da indústria cinematográfica e sacrificou convicções, amizades e o respeito de quem lhe era querido, para não pôr a sua carreira em risco. Vive rodeado da entourage que o serve. Nunca só, mas sempre só. Sabe que será abandonado quando deixar de poder oferecer o melhor chá Darjeeling à sua equipa. O público adora-o como a um Krishna dos tempos modernos, mas o público é inconstante e imprevisível. Quando deixar de agradar, será substituído por novos deuses. 

Arindam não é, no entanto, o único que actua mesmo fora do palco e, apesar da vasta experiência no ofício da representação, é enganado pela “actuação” de uma aspirante a sua “heroína”. Entretanto, outros passageiros representam também os seus papéis. No mesmo compartimento de Arindam viaja um casal com uma filha. O pai, Haren Bose, é um empresário bem sucedido com quem um executivo de publicidade, Pritish Sarkar, que viaja no mesmo comboio, ambiciona fazer negócio. Para isso, tenta convencer a sua mulher, Molly, a fazer o que for necessário para agradar ao potencial cliente. Ela fica desgostosa com a proposta, mas sob pressão propõe uma troca de favores ao marido. Representará o papel de seduzida perante os avanços de Bose, se Pritish permitir que ela seja actriz de cinema. Esta história secundária evoca O Desprezo de Godard, filme que aliás se cruza com O Herói nas críticas que ambos fazem ao cinema orientado para objectivos puramente comerciais. 

São vários os companheiros de viagem de Arindam que criticam e expressam o seu desapreço pelo cinema indiano: Aditi, Aghore Chatterjee (um jornalista do The Statesman[2]), Haren Bose e o próprio Arindam. Censuram a indústria cinematográfica pela orientação para o lucro e o gosto popular, e pelos filmes demasiado fantasiosos e que nada dizem sobre o mundo real. Shankar, o mentor de Arindam no tempo em que este se dedicava ao teatro, aparece num flashback a criticar o cinema de forma geral, onde os actores não têm espaço para a sua arte, são apenas marionetes nas mãos do realizador e dos responsáveis pela filmagem, pelo som, pela montagem, ... 

Aditi, todavia, acaba por perceber que o cinema de entretenimento tem o seu valor. Pelo menos momentaneamente, proporciona felicidade aos espectadores. Compreendeu também que Arindam se esforça para proporcionar essa felicidade aos seus fãs e que desempenhar o papel de “estrela” exige uma grande disponibilidade para as muitas solicitações dos que o idolatram. 

Com tudo o que ficou pelo caminho, a única experiência de calor humano que resta a Arindam é a devoção dos admiradores. Aditi rasga os apontamentos escritos no decorrer da entrevista. Os heróis, por vezes, também precisam de ser salvos.

[1] de Ingmar Bergman.
[2] Um importante jornal indiano, escrito em língua inglesa.

sexta-feira, 31 de maio de 2019

Persona (1966) de Ingmar Bergman



por João Bénard da Costa

Porque me chamaste? 
Eu não é eu que te responda. 

Swedenborg 

Persona é a obra-prima de Bergman. Digo-o desde já, para ir direito ao que importa. 

Em nenhum outro dos seus filmes – sejam quais forem as subjectividades e as preferências – o cineasta conseguiu atingir tal grau de simplicidade e de complexidade e conseguiu dizer tanto com tão pouco. Todo o Bergman está nele, nele está todo o Bergman. Estamos perante um exemplo de acabada perfeição. Tudo o que ficou para trás – e, meu Deus, tanto é – foi prelúdio. Tudo o que se lhe seguiu – e, meu Deus, que enormes filmes são – foi coda, ou postfácio. Ficasse só este filme, de Bergman saberíamos tudo. 

Por isso me irritam – não de viam irritar, mas irritam – as minuciosas exegeses que, plano a plano, passo a passo, esclarecem – ou obscurecem – o sentido de cada imagem. Podem escrever-se ensaios densíssimos e luminosíssimos que dão a cada plano cada chave e os comentam em textos que demoram a ler muito mais do que os 80 minutos do filme. Pode continuar-se a “psicanalisar” ad infinitum as relações de Johan (é o nome do miúdo) com a mãe, da mãe com Alma, da mãe com o marido, de Bergman com todos eles e com a própria mãe (que morreu no ano de Persona, em Março de 1966). Teremos óptimas conversas de salão, mas não teremos a experiência de ser, pela primeira vez, confrontados com Persona. Confrontados com quem? Com uma pessoa (uma máscara, que dizem os eruditos que é a raiz do que somos) que um dia, num palco, emudeceu e nunca mais voltou a falar. 

Quem é? Uma actriz, uma actriz chamada Elisabet Vogler. Era suficientemente célebre para que o comum dos mortais a tivesse visto e admirado em palcos e em filmes. Mas, um dia calou-se. Estava a representar a Electra (vemo-la, de Electra vestida, várias vezes durante o filme). E, quando suplicava o perdão de Orestes («E Vós, Divindades, Vós que, algures, nas trevas exteriores que a todos nos cercam, nos estais escutando, tende piedade de mim. Vós que sois o Amor»), subitamente deu uma gargalhada. Depois, calou-se. Depois, foi internada num hospital. Nunca mais se moveu, nunca mais falou. A certa altura do filme, recomeça a andar mas continuará sem falar até ao fim. Julgamos – e julga Alma, a enfermeira que lhe designaram – ouvi-la uma vez ou outra. Mas ninguém está certo disso. Ninguém está certo (podem jurá-lo) que, perto do fim, tenha repetido «Nada» como Alma lhe pediu. Parece – é a única vez que parece, é a única vez que a voz não parece ser a de Bibi Andersson – mas já todas as alucinações são possíveis, para ela (Bibi Andersson) como para nós. E, no fim, a actriz Elisabet Vogler está tão imóvel e tão calada quanto o estivera no começo, de novo na cama do hospital. O que se passa é um filme, como o que se passara no início, um filme rodado por Ingmar Bergman (a ele o vemos), com Sven Nykvist à câmara (também o vemos). O ruído – inicial como final – é o da máquina de projectar. 24 imagens por segundo. 

Sonhámos tudo isso, ou foi Bergman quem o sonhou? Essa é a questão de Persona e a todos nos envolve, já que não consta que se deixem entrar bichos na sala. Quem é eu aqui? O realizador, figurado e figurável, filmado e filmável, presente no princípio como no fim? O filme que corre na sala, mas também corre nos carretos, em eco do próprio ruído de, assim, desfilar? Elisabet Vogler, a actriz? Alma, a enfermeira? O miúdo, que do lado de cá do vidro, não toca na imagem (desfocada e ofuscante) que está para além dele? Ou todos são um só, como parecem querer ser e parecem não querer ser? Existem várias personagens nesta “história”, ou só existe uma, Alma-Elisabet chamada, com outro olhar a vê-la, olhar nosso, olhar do realizador? Como sabê-lo? Juramos que são duas – o genérico confirma-o e dá-lhes por nomes Liv Ullmann e Bibi Andersson – mas também podemos jurar que num plano – num célebre plano – as vimos serem uma só, apenas por uma reminiscência desmontáveis (e dizemos então que metade do rosto era Liv Ullmann e metade do rosto era Bibi Andersson). Literalmente há vertigens dessas, como por exemplo naquela novela de Camilo (agora não recordo qual) em que ele escreve Fulano de tal (não é fulano de tal, tem um nome bem prosaico, mas não me lembro), Fulano de tal é eu. A frase choca e perturba. Mas, gramaticalmente, está certa. Questão de sujeito e nome predicativo de sujeito. «Sou eu», mais usual e mais banal, também dava. Mas não é a mesma coisa. E aí começamos a vacilar. 

No filme – neste filme – demoramos muito mais tempo nessa vacilação. É verdade que o pré-genérico é estranhíssimo (já se lhe chamou, e com razão, o mais estranho pré-genérico da história do cinema, com um sinal por segundo e todos singularmente perplexivos) mas também é verdade que quando acaba o ruído da máquina tudo parece reentrar na lógica de um filme. Uma psiquiatra conta-nos (conta à enfermeira) uma história coerente e lógica sobre uma doente de que ela se deve ocupar. É um caso difícil, a enfermeira tem 25 anos e não sabe se está preparada, vamos lá ver, vai-se ver. E a enfermeira é totalmente enfermeira (impecavelmente profissional) e a doente totalmente doente (doente, como a psiquiatra a descrevera). Uma e outra, nos são simpáticas. Alma (é melhor chamar-lhe assim) é meiga, discreta, eficiente. Elisabet (a actriz) também o é. Mas quando Alma diz (falando de Elisabet) que ela tem um rosto de criança, mas uma expressão dura, se lhe repararmos bem nos olhos, só lhe damos inteira razão se já estamos todos projectados (ou debruçados). É verdade para Elisabet, mas também é verdade para Alma. Só que nessa altura do filme os grandes planos de Elisabet (e nunca tão tristes vistes) são muito mais numerosos do que os de Alma. Se, mais tarde, pensarmos na frase, achamos que tanto vale para uma como para outra. Foi tudo tempo de as olhar nos olhos. E, apesar das aparências, é raríssimo olhar-se nos olhos uma pessoa. Raríssimo e dificílimo. Acontece, às vezes, nas praias, ao sol, quando nos deitamos lado a lado, e abrimos um olho para olhar o olhar do outro. Raras vezes acontece mais. Por isso é que, na vida, ao contrário do cinema, os grandes planos (inventados por este e não pela pintura) são tão raros. Bergman que inventou os grandes, grandes planos (contem-nos em Persona e não acreditarão no número) sabia disso e da nossa demora a chegar até eles. Por isso, a frase inicial de Alma pode parecer tão banal, tão objectiva, tão alheia. Um fait divers. Mas não é facto, nem é diverso. É filme e é uno. Mesmo que, depois dessa clínica verificação, depois da história da telefonia (e é pela telefonia que conhecemos o texto que citei da Electra), depois dos primeiros sons de Bach, já tenhamos visto – segundos? Eternidades? - aquele grande, grande plano de Liv Ullmann, deitada na cama, de lado, antes de adormecer, e antes que alguém (quem?) lhe ponha a mão em cima da cara. A seguir, acende-se uma luz, Bibi Andersson diz qualquer coisa como «bolas!» (tenho que me fiar nas legendas) porque se esqueceu de marcar o despertador. Vira-se para nós e diz que é cómico. E pergunta qual será o problema dela. Dela. Elisabet Vogler. Elisabet Vogler. A sequência seguinte (supostamente, o dia seguinte) é Elisabet sem Alma. Televisão, Vietname, coisas dos anos 60. A actriz deve ter problemas políticos – pensamos – como Max von Sydow na Luz de Inverno os tinha com os chineses. Mas também se fala de «forças que não podemos controlar». Bergman, tel qu'en lui-même... Já sabíamos. Como sabíamos (ou julgávamos saber) de histórias com o filho e com o marido, coisas de Édipo, coisas conjugais. Até que a voz off nos informa que foram as duas para a praia, para o mar. 

O tom “realista” continua, com uma a fingir que não dá pelo silêncio da outra, e outra a fingir que não dá pelas conversas de uma. Mudam de cor (fatos de banho brancos, fatos de banho pretos), mudam de mãos, é tão bom ouvir, é tão bom falar. E como é tão bom, quem fala avança nas confidências e conta, conta, conta histórias íntimas e pessoais. Entretidos a ouvi-las (o que é que entretém mais do que a oralidade do sexo?) nem reparamos nas mudanças dos planos, e continuamos a tomar como fait divers que quem fala diga que deve ser bom ser-se duas pessoas numa só, alma cheia até rebentar. 

Até que, de súbito, se ouve alguém dizer: «precisas de te ir deitar». «Preciso de me ir deitar» emenda Alma, logo a seguir. Só mudou o tu pelo eu. A voz é a mesma. Mas, enquanto chove, e enquanto se ouve a ronca na banda sonora, vacilamos, pela primeira vez, sobre a identidade de quem fala. E, durante a noite, as duas se fundem, pela primeira vez numa só, no beijo vampírico de Liv a Bibi. E amanhece. 

Sonho, pensamos reconfortadamente (pensa-o também Alma). Mas a partir daí, já de nada estamos certos. Nem quanto à fabulosa aparição de Gunnar Björnstrand, dirigindo-se a uma como se fosse outra e a outra como se fosse uma, nem quanto à celebrada sequência (a mais célebre e a mais imitada de Persona) em que ouvimos o mesmo diálogo (o famoso diálogo sobre a maternidade) ora do ponto de vista de Elisabet, ora do ponto de vista de Alma. E quando digo «ponto de vista» digo muito mal, porque não há ponto de vista, há mesmo a total ausência de um e de outro (por isso os imitadores sempre se enganaram tanto). 

Quem é que – à noite – fica com a cara flácida, inchada, quem é que cheira a sono e lágrimas? Quem agride quem? Quem agride quem? Quem ouve a declaração de amor conjugal? Quem é que é Elisabet Vogler e quem é que não é Elisabet Vogler? Quem é que repete o pedido de perdão de Electra a Orestes? A quem se dirige o cego? Duas pessoas podem volver-se numa só? E, sendo possível, a Alma e a Máscara (a Pessoa) podem continuar a dividir-se, como se divide a imagem do filme? 

Persona é um mosaico que não faz sentido. Diante deste filme, sinto-me como o miúdo que por lá aparece, a tocar no vidro (na tela) e sem o transpor. Para lá dele (e dessa imensa imagem maternal e feminina, a imagem maternal e feminina) estará possivelmente o sentido de tudo, mas não se pode ir para lá de um filme, como não se pode atravessar uma tela, sem destruir a visão. 

Como escreveu Pérec: «estamos sozinhos e não conhecemos ninguém. Não conhecemos ninguém, e estamos sozinhos». 

«Meu Deus, se fosse possível partilhar tudo isto com alguém. Mas se o fosse, alguém o seria, alguém o seria ainda?». A pergunta é de Rilke, no Malte. A resposta de Elisabet, conjurada e esconjurada por Alma, não é não, nem é ninguém. É nada

A génese deste filme – contou Bergman – começou no dia em que Bibi Andersson, casualmente, lhe apresentou uma desconhecida actriz norueguesa chamada Liv Ullmann. E ele reparou – «inconscientemente» – na «diabólica semelhança» entre aquelas duas mulheres, não quando as viu, mas quando viu uma fotografia delas, na praia, a tomar um banho de sol. Depois adoeceu, depois esteve três meses num hospital (doença de Ménière, perturbação do ouvido interno, que se manifesta, entre outros sintomas, por vertigens e perda de equilíbrio). Depois pensou que nunca mais voltava a filmar. Depois sentiu-se «vazio e morto». E, um dia, começou a pensar nessa fotografia e em duas mulheres, de fato de banho, a compararem as mãos. Depois, começou a escrever o script. Depois, parou. Achou que estava doido. Quando Bibi, desesperada com os primeiros ensaios, lhe disse o mesmo, começou a filmar. Liv estava nervosíssima. De repente, as duas caras misturaram-se uma na outra. «Foi o primeiro plano do filme. Quanto ao resto, podem interpretá-lo como quiserem. Como com um poema. Para pessoas diferentes, qualquer imagem significa coisas diferentes (…) Em Persona, como nas peças de Beckett, não há duas séries de imagens, como não há duas séries de palavras, que se possam conjugar umas com as outras.» 

Por mim, limito-me a acrescentar que também não há duas séries de pessoas. Nem mesmo uma pessoa. Se a houver, como também dizia Rilke, não quer – ainda – dizer mais do que Elisabet Vogler não disse: nada

in «João Bénard da Costa – Escritos Sobre Cinema», Tomo 1, 1º Volume, Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema, Lisboa, Setembro de 2018, pp. 291-296.

quarta-feira, 12 de setembro de 2018

Mudar de Vida (1966) de Paulo Rocha



por Paulo Rocha

«Mudar de Vida», vinte e cinco ano depois...[1]

… «a gente acha... que daqui a cinco anos vai ser diferente e daqui a dez anos muito mais» (entrevista para a revista «A/Z», Agosto de 1967).

E hoje, em Ovar, em 1991, como será? Em 1966, em Portugal e no Furadouro, ninguém estava contente com a vida que levava. Estava tudo a mudar – mudavam os corações, os ideais, o modo de viver... Era o fim da sociedade dos pescadores, o início da industrialização, a emigração, a guerra em África.

Eu queria filmar o momento que passa, apanhar a vida a voar...

Os Verdes Anos era uma obra adolescente, frágil, subjectiva, lírica, com uma sinceridade quase confessional que se tornou embaraçosa para mim. Teve um grande sucesso, agradou a muita gente, mas logo a seguir eu senti a necessidade de fazer um filme que fosse o contrário do primeiro. Algo de adulto, onde se sentissem mais o mundo e os homens, e melhor executado tecnicamente.

Já desde 1959, ou 60, eu tinha escrito um argumento que se passava na ria e nas matas do Furadouro. Chamava-se “A viagem de inverno”, e foi escrito ainda em Paris, quando lá estava a estudar cinema. Embora o título possa enganar, as referências à música de Schubert eram muito longínquas. Havia muito que ver já com uma certa ideia de paisagem à japonesa, com uma atmosfera parecida com O Grito, do Antonioni. O herói era um pouco inspirado no doutor Pereira, de Ovar, grande caçador e grande contador de histórias. Viam-se os canais da ria, de madrugada, no pino do inverno, com a canoa a avançar como um fantasma até perto dos patos adormecidos, cortando a crosta do gelo à flor da água. Misturava também memórias de infância do meu pai e da minha mãe, com as grandes merendas familiares em Outubro, lá para o sul, perto das pateiras, numas grandes covas ovais de areia finíssima, cercadas pela mata misteriosa, e que agora já não se encontram. Havia cães… uma menininha doente, a mãe, de uma beleza já um pouco cansada, e o médico que gostava dela, mas… Tudo isto numa velha casa um pouco em ruínas, lá para os lados da Ribeira, longe de tudo. Foi pena não se ter feito; poderia ter sido o meu primeiro filme.

Havia também outra história, que ficou sem nome. Passava-se nos anos 20, foi-me contada pelos meus pais, e tinha “brasileiros” e cenas do São João, no Furadouro, de que já mal me lembro agora, mas de que ficou no Mudar de Vida a conversa do Raimundo durante o baile nocturno, a falar das fogueiras do São João no meio da mata, nos tempos antigos.

Bom, voltando ao Mudar de Vida, eu tinha sido criado, desde miúdo, a brincar entre os barcos e as redes, durante dois ou três meses cada verão. Para mim, aquilo era um mundo maior que o mundo das cidades, com aqueles homens ruivos, roucos, gigantescos, que pegavam naqueles rolos de madeira e naqueles remos pesadíssimos como se nada fosse..., gritando juras, insultos, numa cantilena sem fim. A miséria era medonha, com as crianças raquíticas, comidas pelas moscas e pelas pulgas, os pais encharcados de aguardente, mas eu não a queria ver. Eles, os do mar, eram os gigantes, nós, a gente do interior, os anões. Como as Companhas estavam a acabar, no início dos anos 60, eu sentia que era preciso fazer qualquer coisa para as salvar, ou, pelo menos, erguer um monumento à sua glória. O meu tio Álvaro Malaquias era sócio de uma, perdia dinheiro, mas a minha mãe ralhava com ele, para continuar…

Claro que, na atmosfera neo-realista da época, as pessoas viram o filme como um protesto contra a fome e o trabalho pesado. Mas o que eu tinha sobretudo era admiração por aqueles homens que, sem terem onde copiar, tinham inventado uma complexa forma de trabalho colectivo – reunindo centenas deles e grandes meios materiais –, capaz de lutar contra a fúria do mar numa costa sem defesa. Eu explico isso mais em pormenor numa entrevista que dei em 1966, para a revista Cahiers du Cinema, onde falo da harmonia entre o trabalho dos campos, da ria e do mar (bois, moliço), e da independência daquela gente naquele reino escondido entre as areias, durante séculos, longe de tudo. Visualmente era muito forte. Havia uma monumentalidade e uma dignidade trágica nas casas de madeira, nos barcos, nas cordas e nas redes cobrindo os areais a perder de vista. Lembrava as construções em madeira dos templos japoneses, lembrava as imagens do cinema russo do tempo do mudo.

***

O mar andava a destruir as casas, as Companhas acabavam, havia uma nuvem negra sobre aquilo tudo. Como eu era da terra, muita gente ajudou, e o filme pôde ser feito com muito pouco dinheiro. Os carros foram emprestados, a equipa ficou alojada numa velha casa de brasileiros (vivenda Pereira Dias), à saída do Furadouro. Com a ajuda preciosa do Zéni d’Ovar (o irmão da Clara), geria tudo com mãos de ferro a bela Helena, ao tempo casada com o António Pedro de Vasconcelos, que aparecia nos fins de semana. (A Helena é hoje embaixatriz, casada com o escritor Álvaro Guerra).

O engenheiro Gil, da Ulyssea Filmes, entrou com os meios técnicos e os trabalhos de laboratório, e o Telles com 200 contos, avançados pela Vitória Filmes sobre as futuras receitas de distribuição em sala. A mulher do Telles, a Margareta Mangs, uma sueca inteligente e generosa, era a montadora. Todo o resto do dinheiro, mal se esgotou aquela verba, foi arranjado por mim, semana a semana, pedindo-o emprestado. A vida era, então, ainda muito barata: bastavam 20 contos para aguentar a equipa mais uma semana. O custo total do filme terá sido de 600 a 700 contos… Se fosse hoje a fazer, a pagar os figurantes num meio desconhecido, custaria cem mil.

O que impressiona hoje é a grande quantidade de gente que aparecia nas cenas colectivas, o lado “coral”, e que desapareceu quase do cinema europeu, todo virado para dramas fechados em casas apertadas. Foi uma experiência muito interessante. É pena que hoje não se façam filmes nestas condições, de colaboração com a gente de boa vontade, longe de Lisboa. Os filmes seriam muito melhores. (Uma Abelha na Chuva, do Fernando Lopes, filmada na mesma época, teve um modo de trabalho semelhante).

Como não havia dinheiro, a câmara era uma Arriflex, velhíssima, toda desconjuntada, cujo motor mudava de velocidade a meio de cada plano, e que estava sempre a riscar o negativo. O susto era tal que eu olhava mais para o contador das imagens por segundo do que para os actores, durante as filmagens. Para iluminar a capela de Entre-Águas, foram precisos carros de bois para levar as pesadas baterias de camião… e película XXX ultra-sensível, de que só havia um rolo. Não se podia repetir. Saiu à primeira.

Era a estreia do Roque, e ele aplicou-se a fundo para pintar a praia e a ria a preto e branco. Passava as noites sem dormir, a afinar a câmara e a pensar na fotografia… Era ainda muito novo, mas o resultado causou admiração em todos os países em que o filme passou. O Roque fez uma grande carreira no cinema. Hoje trabalha em França com realizadores conhecidos. O seu melhor trabalho a cores terá sido O Sapato de Cetim, do Manoel de Oliveira.

Para os diálogos falei com o Nuno de Bragança, que me sugeriu o Cardoso Pires, então no auge da fama, e que tinha acabado de reescrever As Ilhas Encantadas, do Carlos Villardebó, para o Telles.

O Cardoso Pires falou-me no António Reis, um poeta do Porto, muito interessado em arquitectura e em literatura popular, e que tinha feito um trabalho de recolha linguística sobre os pescadores da zona de Gaia.

O António Reis era, naquela época, um personagem extraordinário, que parecia saído direitinho de um livro de ficção. Vivia em Gaia, num apartamento com vista para o rio, com as paredes todas cobertas por brinquedos feitos por loucos de um asilo: era tudo monstros de muitas cabeças feitas nas cores do arco-íris. Tinha uma maneira de falar intensíssima, os olhos brilhavam-lhe como diamantes, vestia-se como um proletário, e tinha uma cultura meio científica, meio poética. Sabia de arqueologia, geologia, tudo coisas estranhas e fascinantes. E sobretudo apaixonou-se pela história do Mudar de Vida: trabalhava como um obcecado nos diálogos, horas sem fim, meses a fio, à procura da perfeição, perdendo uma porção de quilos. Tinha um ouvido musical muito preciso, os ritmos infalíveis, não se podia tirar ou pôr uma vírgula. Na confusão do trabalho, na hora não me apercebi, mas mais tarde, em Tóquio, quando tive que traduzir tudo para japonês quando o filme lá se estreou, é que vi como os diálogos eram profundos. Por trás de cada frase havia vários sentidos possíveis, cada qual mais interessante. Ele já tinha trabalhado no Acto da Primavera e no Auto de Floripes, mas ainda tinha medo de se profissionalizar. Julgo que foi a experiência do Mudar que o animou a deixar a “Vista Alegre”, em Gaia, e a ir para Lisboa, onde eu vim a produzir-lhe os primeiros filmes no C. P. C., o Jaime, e Trás-os-Montes.

A Isabel Ruth, que eu tinha descoberto nos Verdes Anos, faz no filme uma personagem de operária revoltada, que quer deixar tudo e ir para França. É ainda mais extraordinária do que no primeiro filme. Parecia uma chama a arder. Tive o cuidado de a vestir da maneira como as pessoas de Lisboa pensam que se vestem as de província. (De outra maneira julgam que o filme é falso…). Na realidade, as operárias de Ovar, da fábrica de confecções, vestiam-se exactamente como as estudantes da avenida de Roma, blue-jeans e rabo de cavalo. Mas ninguém queria acreditar. O problema já vinha dos Verdes Anos. Toda a gente protestou contra a roupa da Isabel – as verdadeiras criadas do meu prédio, porque se vestiam muito mais à moderna, os críticos do Vavá, ali ao lado, porque estava tudo falso, era bonito de mais. Na realidade, ninguém sabe, a olhar as coisas, como elas são, mas ficam com a ilusão de que sabem… e dizem que está errado.

***

A Maria Barroso foi convidada por mim depois de a ver num espectáculo no São Luís, A Voz Humana. Ela tinha reputação de ser uma grande actriz, afastada da cena por razões políticas. A mim, o que me interessava era o lado da coragem moral e física, uma certa integridade combativa, aliada à inteligência e à ausência de auto-piedade, que ela projectava na vida corrente. Na altura, o partido socialista ainda não existia, e não se podia imaginar a futura carreira do advogado Mário Soares, que passava a vida na cadeia. A minha escolha foi apenas profissional, nada tinha a ver com provocações contra o antigo regime. Sempre fui bastante inconsciente nas minhas escolhas, os riscos que corri sempre foram por distracção. Acho que na vida tenho uma estrela na testa; a melhor forma de trabalhar é ignorar os conflitos e concentrar-me naquilo que sei fazer. Nunca me vi no papel do herói. A Maria Barroso, durante as filmagens, confirmou a minha aposta, faz um poderoso contraponto à volatilidade da Isabel. Ela é a mulher portuguesa vinda do passado, a Isabel o futuro ainda sem cara definida. Como a não conhecia bem, fiz alguns erros no desenho de uma pescadeira do Furadouro, que impediram que o resultado fosse ainda mais longe. As mulheres da beira-mar, habituadas a um trabalho duríssimo, tinham um desembaraço físico inimaginável para uma pessoa da cidade como eu. Quando eu pedi à Maria Barroso para representar com um molho de agulhas com quarenta ou cinquenta quilos à cabeça, ela perdia espontaneidade, tinha medo de cair, era peso a mais… Devia ter mudado toda a cena na mata, antes e depois do desmaio dela, adaptando-a às características da actriz. Ou, então, pedido que fizesse artes marciais durante seis meses. Mas eu estava fascinado por aquela clareira na mata, durante dez anos tinha namorado aqueles pinheiros, aquele descampado, aquela luz ao fundo, no fim de tarde. Parecia-me uma cena de um filme japonês, dos Amantes Crucificados, com a senhora a rolar pela serra abaixo, agarrada ao quimono do homem que a queria deixar para a salvar da justiça. As grandes cenas de Maria Barroso são aquelas de interior, sobre a cara dela, e em que a sua voz é inesquecível.

O personagem da Isabel ladra veio, estranhamente, do resumo de um filme japonês que nunca vi. Lá se falava de uma rapariguita que roubava a caixa das esmolas de um templo budista. Antes, tinha escrito para ela uma história de uma outra ladra, que roubava de noite pelas azinhagas dos arredores de Lisboa, entre ribeiras e as ruínas de uma fábrica de armamentos, não muito longe daqueles campos que se vêem nos Verdes. Era uma coisa mais fantasiosa, uma espécie de Combatimento di Tancredo e Clorinda, com o rapaz sempre a correr atrás dela… A situação de operária, de mulher moderna, deu outro peso ao personagem. O poço em que ela corta à faca a mão do Adelino é uma imagem de um texto do Pavese “No verão o poço secava… marcávamos os pés no lodo, juntos”. Os passarinhos a fugir do poço vêm de uma das Elegias de Duino, do Rilke… É uma cena nas falésias de Triestre, se bem me lembro.

No filme havia uma caçada nocturna a esse pássaros, com redes, que o doutor Pereira me tinha contado. O Fernando Lopes também me contou uma cena semelhante, e depois achou que eu lhe queria surripiar a cena. Acabou por não se poder filmar, por falta de dinheiro.

A cena final vem também do Fernando. Ele tinha visto um filme do Mizoguchi, A Imperatriz Yang Kwei Fei, em que, no final, o imperador fala com o fantasma da sua amada, depois de morta, e começa às gargalhadas. Achei muito bonito e resolvi acabar o filme assim, a rir, na cena das notas roubadas e dos tiros. Foi talvez uma imprudência. Na época, toda a gente achou o final mais ou menos reaccionário. Na época, o povo tinha que ser combativo, anunciar a revolução. Só muitos anos depois vi a fita da Imperatriz e, claro, o filme era diferente daquilo que eu tinha imaginado. O ataque de coração, quando a Júlia sabe que vai ter uma casa no bairro social e não resiste à alegria, era uma ideia do Manoel de Oliveira para um filme que ele tinha imaginado em pleno período neo-realista, passado nos arredores do Porto, num bairro chamado “Xanghai”.

Outra ideia, pedida emprestada à Agustina, foi a conversa do casal dos velhos sobre o primeiro casamento do homem, enquanto ela, sua prima, adoecia de ciúmes…

A conversa no baile a dizer “dança este ano, que para o ano podes estar grávida”, vem de um poema japonês com mil anos, no Man'yôshu.

Quem não gostou nada do filme foi o Comandante Tenreiro, na época o grande patrão das pescas em Portugal. Ele só o foi ver com uma semana de atraso e ficou furioso com a imagem de pobreza que saía dali. Ele queria proibir a fita, mas já era tarde. Eu bem tentei diminuir o aspecto miserabilista, filmando os palheiros com luz do fim da tarde. Ao meio dia, o sol a pique, aumentava a sombra das tábuas, e as casas pareciam pobres. Foi impossível trabalhar dentro dos palheiros verdadeiros. As pulgas eram tantas que nenhum pó as matava; ao fim do dia, ficavam os desenhos das meias marcadas a vermelho nas pernas. Era o nosso sangue…

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Foi o Zéni quem construiu os interiores, e muito bem, num estúdio improvisado na cave da vivenda do Pereira Dias, onde a equipa se alojou, aproveitando tábuas de casas que o mar tinha levado.

A vinda do Brasil do Geraldo Del Rey para fazer o papel do Adelino vinha da minha amizade com o Glauber Rocha, o chefe de fila do cinema novo brasileiro. Tínhamos muitas preocupações comuns, e volta e meia encontrávamo-nos, ora em Paris, ora em festivais. Eu estava no festival de Acapulco com os Verdes, quando ele lá apareceu como produtor dos Fuzis. Ficou no meu quarto, discutíamos a noite inteira. Ele contava-me as ideias que tinha para a sua Terra em Transe, que tinha muito a ver com um retrato do governador do Rio, o Carlos Lacerda; eu falava-lhe no “Sepúlveda” e no Mudar. Precisava de um actor com um físico muito especial, de pescador calejado, e ele insistia com o Geraldo, um baiano que ele tinha lançado no Deus e Diabo. Usando um teco-teco (um avião-táxi), o meu irmão Jorge foi desencantá-lo em pleno sertão, onde ele estava a filmar, e lá o convenceu a deixar tudo e vir à conquista da Europa. O Geraldo, mal chegou ao Furadouro e se vestiu de pescador, foi como um milagre. Como tinha algum sangue índio, a pela dele era um bocado bronzeada, e movia-se com uma milagrosa agilidade. Entendeu-se logo às mil maravilhas com os remos e as cordas. Ficou amigo do João da Torreira, um pescador com um corpo imponente; pareciam primos, iam beber para as tabernas juntos.

Aplicou-se a fundo ao papel. Só não conseguiu falar português de cá, sem sotaque. A voz dele ouve-se apenas a cantar o “Bendito”, e a seguir à dança da Senhora da Saúde, na boca de um pescador que lhe quer dar de beber. Foi uma tentativa de juntar as forças do cinema novo do Brasil e o de Portugal. 

O filme passou na Bienal de São Paulo. As pessoas gostaram muito do trabalho do Geraldo, que é pasmoso. Mas a verdade é que o filme não saiu no Brasil. Era preciso ser dobrado em brasileiro (ninguém de lá percebia uma palavra do nosso sotaque), e isso era muito caro. O Geraldo e a Tânia, a mulher dele, ficaram por cá um ano, à espera de um papel na Abelha, se bem me lembro. Como eram bem intencionados e muito simpáticos, foram adoptados por toda a gente do Vavá e do cineclube do Porto: Alexandre Alves Costa, etc… Cantava muito bem com o violão, era excelente em baladas de Coimbra. (Apareciam lá em minha casa o Goes, o Correia de Oliveira e o Paredes, que preparava a música do filme).

Um filho do Geraldo, gerado cá em Portugal, é hoje actor de telenovela – era um dos principais no Sassaricando, o rapaz novo por quem se apaixona a actriz que podia ser mãe dele.

*** 

A minha amiga japonesa Etsuko Takano, que acompanhou as filmagens e a montagem, chegou a ter lições de guitarra do Paredes. Ficou amiga da Maria Barroso, e pouco depois tornou-se numa das mulheres mais célebres do Japão, fama que até hoje dura.

O filme foi ao festival de Veneza, onde foi especialmente bem recebido pela crítica francesa. O Michel Cournot disse maravilhas, o Sadoul gostou muito… Saiu uma entrevista nos Cahiers, que provocou a ira do Carlos Porto (na revista Plano, por não ser nada ortodoxa… Falava dos quatro elementos, e de que o cinema do Porto, dentro do país, era um reino à parte. Mas a Seara Nova, pela boca do Machado da Luz, fez uma bela crítica, e na “Rádio e Televisão”, o futuro patrão da C. I. P., o Ferraz de Carvalho, que na época queria ser realizador, disse que era o melhor filme português de todos os tempos…

O filme ainda foi à Expo 68, em Montreal, ao festival de Hyères, etc. Passou nas televisões canadiana, alemã e polaca, e estreou-se com sucesso em Tóquio, numa sala de grande prestígio. No Japão saíram muitas críticas calorosas, e foi editado um lindíssimo cartaz e um catálogo de luxo, com os diálogos. Há, agora, bastante interesse pela fita na Itália. Julgo que, num futuro próximo, sairá cá em vídeo, e também no Japão.

O Rui Almeida, na época ainda um rapaz novo, fez espantosas fotografias da rodagem, que era necessário reencontrar, pois estão perdidas. A Cinemateca de Lisboa gostaria de fazer com elas uma grande exposição, a comemorar os 25 anos do filme.

Um jovem vareiro que seguiu as filmagens e, mais tarde, se tornou célebre, foi o Joaquim Pinto, um futuro realizador e produtor de filmes.

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As canções do baile nocturno – “Ora aperta, amor, aperta, aperta a minha cintura…” –, deram um trabalho medonho a gravar. Como as filmagens foram pela noite dentro, as pessoas começaram a dançar mais devagar, e o ritmo do baile variava de plano para plano. Acabei por andar com a minha mãe pela Madragoa e pela Alfama à procura de peixeiras da nossa zona que ainda soubessem de cor a canção e que fossem comigo para o estúdio da Nacional Filmes. Foi preciso convencer os maridos delas. Quem as ensaiou a mudar de ritmo de plano para plano foi a Margareta, a montadora sueca, que tinha paciência e ouvido musical.

O sr. António Coelho, de Ovar, actor amador com muito mérito, fez de médico, o sr. Gesta, de patrão da Companha…, o que ele já era na realidade, se bem me lembro. A Edwiges Dias Simões fez de pescadeira a pentear a amiga, na abertura do filme.

A minha mãe, Cândida Malaquias, insistiu comigo para pôr no filme um cantar antigo da região: “Indo um lavrador para Arada, encontrou um pobrezinho…” O Giacometti, da recolha da música popular, veio ao Furadouro gravar o “Bendito”, depois de ter visto o filme. Não sei se existe em disco.

Na época, alguma crítica achou que havia desequilíbrio entre a parte documentário e a parte dramática. Hoje acham que é um dos aspectos mais modernos do filme, a colagem de materiais diversos.

Muitas coisas terão ficado por dizer… Só posso agradecer a ajuda generosa de centenas de homens e mulheres do Furadouro que me deram vontade de fazer este filme.

in «Mudar de Vida», 25 anos depois...», João Semana, 15 de Abril de 1991.

[1] Esta transcrição do artigo de Paulo Rocha publicado no quinzenário João Semana, de Ovar, provém de duas fontes incompletas: uma publicada no blog “Artigos do Jornal João Semana” de Fernando Pinto e outra do catálogo dedicado a Paulo Rocha durante a Omaggio a Paulo Rocha inserida no programa do XIII Festival Internacional de Cinema Jovem (Turim, 10-18 de Novembro de 1995). Apesar de servirem como complemento uma à outra, não temos maneira de saber se é este o texto completo e os primeiros quatro parágrafos são traduzidos do italiano. De qualquer forma, Paulo Rocha fala aqui de imensa coisa, e pareceu-nos indicado dar a palavra ao realizador neste caso. Da nossa parte, e falando de descobertas pessoais relacionadas com os bastidores da produção, parece-nos capital a importância deste filme para o cinema português, sabendo que reuniu à volta de Paulo Rocha António Reis, António Campos, Alfredo Tropa, Noémia Delgado e Joaquim Pinto, todos futuros realizadores. (João Palhares)

quarta-feira, 27 de julho de 2016

The Chase (1966) de Arthur Penn



por João Palhares

É a personagem interpretada por Janice Rule (terrível personagem, terríveis as humilhações a que sujeita o marido interpretado por Robert Duvall, esse “filosofo de Sábado à noite”) que pouco depois de The Chase começar, fala do olhar de “Bubber” Reeves, dizendo que “he just stared. You know how he does, that funny stare, like everything is goig all wrong and he just can’t figure out why”. Nós vemos esse olhar no final do filme por três vezes. Quando “Bubber” olha para Jake numa maca e depois para Anna, que lhe responde da mesma moeda, sem saber porque terá acontecido o que aconteceu e, por fim, para a mãe que lhe abana cinco mil dólares à cara como se resolvessem tudo, passado e futuro. 

“Bubber” vai parar à cidade natal por partida do destino. Com fome e com pressa vai para Norte em vez de ir para Sul e em direcção à cidade dos pais e da mulher como se um íman terrível o puxasse até si. O burburinho que se vai multiplicando até resultar em fogo e sangue e o interesse das pessoas desta cidade pelo evadido não é mera curiosidade que se sacia por vê-lo em carne e osso, mas sim parte integrante delas, fantasma de sonhos, vontades e até crimes passados delas e que ao regressar traz tudo de volta consigo. Não por culpa dele mas dos outros. Por isso as coisas correm tão mal e por isso não andamos longe doutro filme que já aqui vimos (Some Came Running), em que outro homem voltava a casa mas para acordar os fantasmas doutra cidade (e a presença da actriz que interpretava Gwen French nesse filme triste e maravilhoso em The Chase parece confirmar este parentesco). “I was thinking of myself at that age, all the things I wanted and believed would happen,” diz Edwin, a personagem que interpreta Duvall. É esta a frase que lhe vale a alcunha de “Saturday night philosopher” dada pela mulher. 

Calder (uma das grandes composições de Marlon Brando, ao lado das dos filmes que fez com Kazan e Coppola e com o próprio Penn, em The Missouri Breaks, western fabuloso e misterioso) assiste a tudo isto da sua delegacia com um olhar não muito diferente do “funny stare” de Reeves, acusado de aceitar o dinheiro de Val Rogers quando o enfrenta e faz de tudo para separar as coisas, recusando presentes, terras e dinheiro na mesma noite e na festa de aniversário de tanto dinheiro e de tantos disfarces de Rogers. Tem que prender os inocentes e deixar os verdadeiros culpados à solta para não haver sangue nas ruas, enquanto “Bubber” se aproxima e a ânsia e os impulsos regados a álcool vão fazendo cada vez mais estragos. Defendendo o que é certo com grande impassibilidade não pode evitar a terrível carga de porrada na cadeia ou a morte nos degraus, quando o burburinho se faz trovão e tempestade (já cantava José Mário Branco: “os homens pequenos, quando são demais, não fazem por menos: tornam-se fatais”). Desaparece como os grandes amargurados do cinema americano (John Wayne em The Searchers, James Coburn em Pat Garrett & Billy the Kid...) e deixa os lobos entregues a si próprios. 

Parte da força e da raiva de The Chase talvez se devam à perseverança de Penn em combater o seu produtor e o seu estúdio, desiludido com muitas decisões e entraves injustas que lhe impuseram, o que acaba por contagiar o filme e confundir-se com outras perseveranças, combates, desilusões e entraves. Era cavalo de batalha dos grandes vultos da politica dos autores dizer que não interessa o que se filma, mas sim como se filma. Autor é, portanto, quem resiste e ilumina os criadores que tem à sua volta e ao seu dispôr com uma tenacidade feroz e apaixonante. De Nicholas Ray a Sam Peckinpah com passagem em Arthur Penn.