por Alexandra Barros
Encontrado recorrentemente em listas de “melhores filmes de sempre”, Au hasard Balthazar
acompanha um burro desde o baptismo, com o sal da sabedoria, até à morte. Atirado, por sucessivas
casualidades, de dono em dono, (quase) tudo o que a vida reserva a Balthazar são trabalhos árduos e
sofrimento. Por causa dos muitos símbolos cristãos presentes no filme, nele podemos ver uma
representação da passagem de Cristo pela Terra, mas as suas imagens enigmáticas evocam diversos
outros significados mais vulgares (no sentido de não divinos) e o filme pode ler-se – também – como
uma alegoria da condição humana.
Marie “apaixona”-se por Balthazar e, durante a infância, divide o seu afecto entre o burrinho e o seu
querido Jacques. A vida é doce para todos, mas a morte de uma irmã de Jacques altera
inesperadamente o rumo das suas existências. Balthazar fica sujeito aos grilhões dos senhores que lhe
vão calhando em sorte. Marie, amarrada ao domínio de um pai ultraprotector e ao desgosto amoroso
que por causa dele vai sofrer, tentará libertar-se, mas vai substituir estas amarras por outras, sem nunca
conseguir realmente escapar.
Quando Marie é abandonada, sem explicação, por Jacques, devido a desavenças entre os respectivos
pais, a sua ternura e essência amorosa passam a ser totalmente dirigidas para Balthazar. Acontece-lhe
então a força do desejo de Gérard. Unidos pelo impulso sexual, que Marie confunde com o amor,
Gérard e Marie têm uma relação física, cheia de indeterminações e duplicidades. Marie parece
submeter-se a Gérard, mas essa submissão é uma via (que se vem a revelar sacra) para a auto-
afirmação, uma forma (ilusória) de se evadir da prisão atrofiante de um pai que pretende amá-la, mas é
indiferente aos seus sentimentos. A liberdade ansiada lança Marie numa sucessão atribulada de
acontecimentos, que aparentemente espelham o martírio de Balthazar. Porém, a mortificação de Marie
tem origem, mais do que na crueldade dos homens, nos arreios que lhes tolhem e determinam os
movimentos: o orgulho e inflexibilidade do pai, a cobardia e inconsequência de Jacques, a procura de
prazeres imediatos e a vida delinquente e sem sentido de Gérard, a avareza e egoísmo de um
comerciante rico.
A ambiguidade de Marie em relação a Gérard, fica expressa logo na primeira tentativa de aproximação.
Na cena nocturna em que Gérard espia Marie no seu jardim, esta, sabendo-se observada, “oferece” a
mão, pousando-a ao alcance de Gérard, no banco em que está sentada. Retira-a, porém, bruscamente
quando Gérard está prestes a tocá-la.
Nesta, como em diversas outras cenas, Bresson filma apenas as mãos e os seus gestos, sugerindo o
que se passa no interior das personagens, sem nunca o explicitar. Para Bresson, o cinema não é a
reprodução ou narração de uma história, nem consiste em filmar actores a interpretá-la. Numa entrevista
realizada a propósito deste filme[1], Bresson afirma que o poder do cinema está no carácter simbólico das
imagens. Para si, o cinema como arte (não o cinema-entretenimento) é feito da justaposição de
imagens, da justaposição de imagens e sons e da justaposição de sons com outros sons. É através
deste processo que há criação porque através dele as imagens transformam-se. "É necessário que uma
imagem se transforme em contacto com outras imagens, como uma cor em contacto com outras cores.
Um azul não é o mesmo azul ao lado de um verde, de um amarelo ou de um vermelho. Não há arte sem
transformação".[2] Para o processo resultar, cada imagem tem que ter uma certa neutralidade, não pode
ter demasiado significado dramático. Esse significado deve emergir da interacção com as outras
imagens. Entre o que é mostrado e o que não é mostrado surge a complexidade, a riqueza artística. Daí
Bresson recusar o sentimentalismo encenado e a teatralidade, e preferir trabalhar com actores não
profissionais. Daí, também, as personagens serem, muitas vezes, mostradas em enquadramentos onde
cabem o tronco ou as pernas ou as mãos, mas não o rosto. Neste como noutros filmes, é repetidamente
pelas mãos que as personagens “falam”. Além das mãos, e da linguagem corporal, Bresson recorre
frequentemente a portas e janelas como elementos simbólicos. Estas estruturas têm uma intrigante e
quase surreal presença no encontro final (que Bresson não mostra) entre Marie e o bando de Gérard,
quando estes infligem a Marie o seu mais duro golpe. Também Balthazar está prestes a sofrer, uma
última vez, às mãos do mesmo bando.
As metáforas e alusões abundam nestas cenas finais. Balthazar é obrigado a transportar pesados
alforges carregados de ouro e perfume, as ofertas dos Reis Magos por ocasião do nascimento de Jesus.
Atingido por uma bala, a ferida circular por onde escorre o seu sangue, assemelha-se às Chagas de
Cristo. Ferido, Balthazar deixa a protecção da cerrada floresta alpina e desce para um vale a céu aberto
onde pasta um rebanho. Rodeado por montanhas ao longe e ovelhas ao perto, deita-se, por fim. Estas
belíssimas imagens são mais luminosas que quaisquer outras no filme: o sol está radioso, a paisagem
natural é encantadora, no ar ressoam apenas os indolentes sinos das ovelhas. De Marie nada mais se
sabe, além de que partiu sem despedidas.
J.L.Godard, com um invejável poder de síntese, descreveu assim o filme: “o mundo numa hora e meia”.
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