quinta-feira, 29 de junho de 2023

Au Hasard Balthazar (1966) de Robert Bresson



por Alexandra Barros

Encontrado recorrentemente em listas de “melhores filmes de sempre”, Au hasard Balthazar acompanha um burro desde o baptismo, com o sal da sabedoria, até à morte. Atirado, por sucessivas casualidades, de dono em dono, (quase) tudo o que a vida reserva a Balthazar são trabalhos árduos e sofrimento. Por causa dos muitos símbolos cristãos presentes no filme, nele podemos ver uma representação da passagem de Cristo pela Terra, mas as suas imagens enigmáticas evocam diversos outros significados mais vulgares (no sentido de não divinos) e o filme pode ler-se – também – como uma alegoria da condição humana. 

Marie “apaixona”-se por Balthazar e, durante a infância, divide o seu afecto entre o burrinho e o seu querido Jacques. A vida é doce para todos, mas a morte de uma irmã de Jacques altera inesperadamente o rumo das suas existências. Balthazar fica sujeito aos grilhões dos senhores que lhe vão calhando em sorte. Marie, amarrada ao domínio de um pai ultraprotector e ao desgosto amoroso que por causa dele vai sofrer, tentará libertar-se, mas vai substituir estas amarras por outras, sem nunca conseguir realmente escapar. 

Quando Marie é abandonada, sem explicação, por Jacques, devido a desavenças entre os respectivos pais, a sua ternura e essência amorosa passam a ser totalmente dirigidas para Balthazar. Acontece-lhe então a força do desejo de Gérard. Unidos pelo impulso sexual, que Marie confunde com o amor, Gérard e Marie têm uma relação física, cheia de indeterminações e duplicidades. Marie parece submeter-se a Gérard, mas essa submissão é uma via (que se vem a revelar sacra) para a auto- afirmação, uma forma (ilusória) de se evadir da prisão atrofiante de um pai que pretende amá-la, mas é indiferente aos seus sentimentos. A liberdade ansiada lança Marie numa sucessão atribulada de acontecimentos, que aparentemente espelham o martírio de Balthazar. Porém, a mortificação de Marie tem origem, mais do que na crueldade dos homens, nos arreios que lhes tolhem e determinam os movimentos: o orgulho e inflexibilidade do pai, a cobardia e inconsequência de Jacques, a procura de prazeres imediatos e a vida delinquente e sem sentido de Gérard, a avareza e egoísmo de um comerciante rico. 

A ambiguidade de Marie em relação a Gérard, fica expressa logo na primeira tentativa de aproximação. Na cena nocturna em que Gérard espia Marie no seu jardim, esta, sabendo-se observada, “oferece” a mão, pousando-a ao alcance de Gérard, no banco em que está sentada. Retira-a, porém, bruscamente quando Gérard está prestes a tocá-la. 

Nesta, como em diversas outras cenas, Bresson filma apenas as mãos e os seus gestos, sugerindo o que se passa no interior das personagens, sem nunca o explicitar. Para Bresson, o cinema não é a reprodução ou narração de uma história, nem consiste em filmar actores a interpretá-la. Numa entrevista realizada a propósito deste filme[1], Bresson afirma que o poder do cinema está no carácter simbólico das imagens. Para si, o cinema como arte (não o cinema-entretenimento) é feito da justaposição de imagens, da justaposição de imagens e sons e da justaposição de sons com outros sons. É através deste processo que há criação porque através dele as imagens transformam-se. "É necessário que uma imagem se transforme em contacto com outras imagens, como uma cor em contacto com outras cores. Um azul não é o mesmo azul ao lado de um verde, de um amarelo ou de um vermelho. Não há arte sem transformação".[2] Para o processo resultar, cada imagem tem que ter uma certa neutralidade, não pode ter demasiado significado dramático. Esse significado deve emergir da interacção com as outras imagens. Entre o que é mostrado e o que não é mostrado surge a complexidade, a riqueza artística. Daí Bresson recusar o sentimentalismo encenado e a teatralidade, e preferir trabalhar com actores não profissionais. Daí, também, as personagens serem, muitas vezes, mostradas em enquadramentos onde cabem o tronco ou as pernas ou as mãos, mas não o rosto. Neste como noutros filmes, é repetidamente pelas mãos que as personagens “falam”. Além das mãos, e da linguagem corporal, Bresson recorre frequentemente a portas e janelas como elementos simbólicos. Estas estruturas têm uma intrigante e quase surreal presença no encontro final (que Bresson não mostra) entre Marie e o bando de Gérard, quando estes infligem a Marie o seu mais duro golpe. Também Balthazar está prestes a sofrer, uma última vez, às mãos do mesmo bando. 

As metáforas e alusões abundam nestas cenas finais. Balthazar é obrigado a transportar pesados alforges carregados de ouro e perfume, as ofertas dos Reis Magos por ocasião do nascimento de Jesus. Atingido por uma bala, a ferida circular por onde escorre o seu sangue, assemelha-se às Chagas de Cristo. Ferido, Balthazar deixa a protecção da cerrada floresta alpina e desce para um vale a céu aberto onde pasta um rebanho. Rodeado por montanhas ao longe e ovelhas ao perto, deita-se, por fim. Estas belíssimas imagens são mais luminosas que quaisquer outras no filme: o sol está radioso, a paisagem natural é encantadora, no ar ressoam apenas os indolentes sinos das ovelhas. De Marie nada mais se sabe, além de que partiu sem despedidas. 

J.L.Godard, com um invejável poder de síntese, descreveu assim o filme: “o mundo numa hora e meia”.




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