quinta-feira, 22 de junho de 2023

Les diaboliques (1955) de Henri-Georges Clouzot



por Joaquim Simões

Diz-se que o Hitchcock falhou por apenas algumas horas em comprar a tempo os direitos do livro Celle qui n’était plus, e que, se a História permitisse divergências, poderia ter sido o mestre do suspense a realizar mais um dos melhores filmes do género. Mas acontece que foi Clouzot que, após ter lido o romance inteiro numa noite, decidiu imediatamente adaptá-lo, comprando os direitos na manhã seguinte e cancelando assim esse outro hipotético filme que, conquanto possamos desejar ter coexistido com o atual, dificilmente desejaríamos que o substituísse: Clouzot não fez menos do que criar um dos mais inesquecíveis clássicos de mistério e subtil terror. 

O filme teve um período de adaptação de 18 meses, um processo de co-escrita do realizador com o seu irmão, Jean Clouzot (sob o pseudónimo Jérome Géronimi) que transformou vários aspetos do romance, incluindo uma transposição de parte da ação para Niort, lugar de nascimento do realizador, e uma troca de géneros do casal (no filme, Christina e Michel Delassalle) que não só permitiu eliminar um caso lésbico e evitar complicações de censura, mas também dar maior relevo ao papel de Christina, interpretada pela mulher do realizador, Véra Clouzot. Para que a sua mulher tivesse ainda mais relevo no filme, Clouzot esforçava-se por iluminá-la propositadamente, mantendo a Simone Signoret na sombra, escreveu o ator Paul Meurisse nas suas memórias. 

A história é ao mesmo tempo um drama psicológico da descida para os infernos do remorso criminoso e um mistério policial. No entanto é o primeiro aspeto que dá ao filme a sua força: durante e depois do crime cometido não podemos deixar de sentir a tensão que os objetos e as situações mundanas exercem sobre a consciência da personagem de Christina. Esta tensão é manejada soberbamente por Clouzot, e embora seja a curiosidade e a procura de respostas que conduzem o filme, são o sofrimento e a culpa que lhe conferem o tom e criam o ambiente sobrenatural que nos permite, dentro de um universo realista, acreditar no fantástico. Neste aspeto o filme relaciona-se novamente com Hitchcock, e não é difícil de encontrar semelhanças com o seu estilo e especialmente no que toca à presença invisível do sobrenatural. Mas para isso há também outra razão: é que o mestre aprendeu a lição e segurou a tempo os direitos do próximo romance dos mesmos autores; já com a influência do filme soberbo que Clouzot legou ao mundo, fez outro chamado Vertigo.



Sem comentários:

Enviar um comentário