por Joaquim Simões
Diz-se que o Hitchcock falhou por apenas algumas horas em comprar a tempo os direitos do
livro Celle qui n’était plus, e que, se a História permitisse divergências, poderia ter sido o
mestre do suspense a realizar mais um dos melhores filmes do género. Mas acontece que
foi Clouzot que, após ter lido o romance inteiro numa noite, decidiu imediatamente adaptá-lo, comprando os direitos na manhã seguinte e cancelando assim esse outro hipotético filme
que, conquanto possamos desejar ter coexistido com o atual, dificilmente desejaríamos que
o substituísse: Clouzot não fez menos do que criar um dos mais inesquecíveis clássicos de
mistério e subtil terror.
O filme teve um período de adaptação de 18 meses, um processo de co-escrita do realizador
com o seu irmão, Jean Clouzot (sob o pseudónimo Jérome Géronimi) que transformou
vários aspetos do romance, incluindo uma transposição de parte da ação para Niort, lugar
de nascimento do realizador, e uma troca de géneros do casal (no filme, Christina e Michel
Delassalle) que não só permitiu eliminar um caso lésbico e evitar complicações de censura,
mas também dar maior relevo ao papel de Christina, interpretada pela mulher do
realizador, Véra Clouzot. Para que a sua mulher tivesse ainda mais relevo no filme, Clouzot
esforçava-se por iluminá-la propositadamente, mantendo a Simone Signoret na sombra,
escreveu o ator Paul Meurisse nas suas memórias.
A história é ao mesmo tempo um drama psicológico da descida para os infernos do remorso
criminoso e um mistério policial. No entanto é o primeiro aspeto que dá ao filme a sua
força: durante e depois do crime cometido não podemos deixar de sentir a tensão que os
objetos e as situações mundanas exercem sobre a consciência da personagem de Christina.
Esta tensão é manejada soberbamente por Clouzot, e embora seja a curiosidade e a procura
de respostas que conduzem o filme, são o sofrimento e a culpa que lhe conferem o tom e
criam o ambiente sobrenatural que nos permite, dentro de um universo realista, acreditar
no fantástico. Neste aspeto o filme relaciona-se novamente com Hitchcock, e não é difícil de
encontrar semelhanças com o seu estilo e especialmente no que toca à presença invisível do
sobrenatural. Mas para isso há também outra razão: é que o mestre aprendeu a lição e
segurou a tempo os direitos do próximo romance dos mesmos autores; já com a influência
do filme soberbo que Clouzot legou ao mundo, fez outro chamado Vertigo.
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