quarta-feira, 28 de abril de 2021

Akibiyori (1960) de Yasujiro Ozu



por António Cruz Mendes

Na sua fase final, os filmes de Ozu evoluem no sentido de um despojamento formal cada vez maior. Em O Fim do Outono, grande parte da acção, pontuada pelos diálogos e pelos silêncios, decorre em espaços domésticos, rigorosamente ordenados pelas linhas ortogonais definidas pelos
tatamis e pelas portas deslizantes, filmados, como se de um palco de teatro se tratassem, por uma câmara imóvel posicionada a um metro do chão. Tal como nos diz Donald Richie, Ozu adoptou a “atitude do mestre do haiku que se senta em silêncio e observa, alcançando o essencial através de uma extrema simplificação”. 

O filme, cujo enredo se resume em poucas palavras, retoma um tema que Ozu já havia tratado em muitos outros filmes (em Primavera Tardia, Verão Prematuro ou Crepúsculo de Tóquio, por exemplo) e a que regressará poucos anos mais tarde em O Gosto do Saké: a filha casa e deixa a mãe ou o pai sozinhos. Aliás, O Fim do Outono segue muito de perto a trama de Primavera Tardia, sendo que. aí, é o pai quem pretexta querer casar-se para que a filha, sem remorsos, se possa casar também. 

O tema da desagregação da família, da separação dos seus membros, abordado como uma perda que somos obrigados a aceitar, mas que nos obriga a questionar a identidade e as obrigações morais de cada um dos seus membros, torna-se, na obra de Ozu, mais presente nos anos do pós-guerra e confunde-se com o da transformação da vida social no Japão então ocorrida. Por outro lado, o tema do envelhecimento e da solidão acompanha o próprio envelhecimento do realizador e manifesta-se numa visão nostálgica, desencantada, de um mundo que se vai perdendo. Um processo onde alguns reconhecem similitudes com o da evolução temática dos filmes mais tardios de John Ford, seu contemporâneo. 

No entanto, podemos observar algumas diferenças significativas entre Primavera Tardia, de 1949, e O Fim do Outono, de 1960. Desde logo, porque, numa sociedade patriarcal, a obrigação “natural” da filha em relação ao pai não é a mesma quando é a mãe que está em causa. Aqui, a questão reside, sobretudo, na dificuldade de Ariko se libertar dos laços de evidente cumplicidade que a unem à sua mãe. Além disso, o filme confronta-nos com a forma muito pragmática como a separação da família é abordada por algumas das personagens mais jovens. O filho do senhor Hirayama, que tenciona casar, apoia sem reservas o casamento do seu pai com a senhora Miwa e explica-lhe porquê: “Quando me casar vais ficar sozinho e isso quer dizer que tens de viver connosco e a minha mulher pode não gostar disso, e tu não serias feliz”. E Yuriko diz à mãe da sua amiga: “No lugar dela, eu queria que tu te casasses outra vez porque assim eu não teria que tomar conta de ti”. Existem, portanto, diferentes perspectivas da mesma questão.

No Japão do pós-guerra, as velhas tradições ainda estão presentes, mas as transformações sociais são cada vez mais visíveis. Observamos como os amigos do pai de Ariko tomam nas suas mãos o propósito de “programar” o seu casamento, mas todos os seus planos são rejeitados e, de certa forma, ridicularizados. Afinal, é por intermédio de um amigo comum que ela acaba por se relacionar com o seu futuro marido e é a intervenção de Yuriko que acaba por desbloquear a situação criada por eles. 

Porém, a questão crucial permanece. Ozu preocupa-se em desligá-la de causas sociais concretas para sublinhar a sua intemporalidade. Hoje, os dilemas com que se confrontam as suas personagens poderiam replicar-se naqueles que vivem muitas famílias quando são confrontadas com a necessidade de internar os mais velhos num lar de 3ª idade. 

Por outro lado, em O Fim do Outono, a visão melancólica da vida que parece ser a de Ozu, a percepção aguda da sua fugacidade, é temperada com algumas notas de humor. Logo no início, o senhor Mamiya, chegado tarde à cerimónia fúnebre em memória do senhor Miwa, informado de que esta havia começado há pouco responde: “Então, cheguei cedo demais”. No restaurante da mãe de Yuriko, quando se discute o projecto de casamento de Hirayama com a senhora Miwa, ele, pressionado por Yuriko, compromete-se a cumprir a sua promessa (amá-la eternamente), mas, afinal, Yuriko referia-se ao pagamento da conta do restaurante. Há, ainda, a petite histoire dos pensos rápidos e comprimidos para a constipação que os amigos de Miwa iam comprar à farmácia para poderem ver a bonita empregada ou a conversa com a pouco atraente empregada de um restaurante acerca da provável longevidade do marido. E, no final, o senhor Hirayama, uma personagem algo risível, confessa sentir ter sido “um bocado explorado”… Os quid pro quo da estratégia casamenteira dos amigos do senhor Miwa, por vezes, parecem fazer resvalar o filme para o campo de uma comédia amena. 

É neste irónico balanço entre situações cómicas e dramáticas que o filme se resolve. No final, o casamento de Ayako implica a separação da mãe e da filha. Akiko, tal como a personagem encarnada por Chishu Ryu em Viagem a Tóquio, terá que enfrentar a vida sozinha.

terça-feira, 27 de abril de 2021

187ª sessão: dia 27 de Abril (Terça-Feira), às 19h00


Terminando o nosso mini-ciclo Ozu, na recta final do mês de Abril, acompanhamos as vidas de uma viúva e da sua filha, que atraem a preocupação e os esforços dos seus amigos para arranjarem companheiros, numa evocação da estória de Primavera Tardia. Assim, O Fim do Outono é a nossa próxima sessão no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, hoje às 19h.

Citado por Donald Richie, no seu livro sobre o cineasta japonês que apresentámos a semana passada na livraria 100ª Página, Yasujiro Ozu disse que "as pessoas por vezes complicam as coisas mais simples. A vida, que parece complexa, subitamente revela-se extremamente simples - e eu queria mostrar isso neste filme. Havia outra coisa, também. É fácil mostrar drama num filme; os actores riem ou choram, mas isto é apenas uma explicação. Um realizador pode mostrar realmente o que pretende sem recorrer ao drama. Tenho tentado fazer isto desde Os Irmãos Toda, mas é muito difícil. Neste caso (O Fim do Outono) acho que fui razoavelmente bem-sucedido, mas ainda assim os resultados estão longe da perfeição."

No mesmo livro, na Filmografia Biográfica, Richie escreve que "o terceiro dos "remakes" de Ozu (e vencedor do quinto lugar nas listas desse ano da Kinema Junpo), é uma versão de Primavera Tardia. Setsuko Hara participa em ambos; no primeiro filme no papel da filha, agora no papel da mãe. A maior diferença reside no facto de Ozu ter substituído um pai por uma mãe. As diferenças menores incluem a substituição da tia, que no primeiro filme ajuda a arranjar um noivo para a filha, por uma série de amigos, todos homens, do falecido marido. Estes amigos (que voltamos a ver em O Gosto do Saké) são os rapazes de escola de Ozu, agora envelhecidos. São ainda traquinas, e mesmo maliciosos, mas também ainda, de alguma forma, inocentes. E, uma vez mais, estamos face a uma mudança de tom. Há em O Fim do Outono uma tristeza elegíaca e, talvez em consequência disso, algum relaxamento da extraordinária objectividade que distingue Primavera Tardia."

Já o cineasta Yoshishige Yoshida, assinando "Kiju" no seu livro sobre Ozu, escreve que "em O Fim do Outono, a actriz que interpreta a viúva que deixa a filha casar interpretou a filha que se casa em Primavera Tardia. Neste sentido, O Fim do Outono é uma espécie de sequela de Primavera Tardia. Estes dois filmes estão portanto estreitamente ligados, mas O Fim do Outono foi feito onze anos mais tarde. Passados onze anos, não era invulgar de todo Ozu-san pensar sobre o seu próprio envelhecimento em O Fim do Outono, embora a temática do envelhecimento fosse apenas ficcional e mais agradável em Primavera Tardia. Em O Fim do Outono, o envelhecimento continua a ser retratado de forma divertida, mas desta vez num tom cruel e a um grau bastante miserável. 

"Por exemplo, o equilíbrio entre o sagrado e o vulgar é completamente diferente nestes dois filmes. Em O Fim do Outono, a viúva e a filha são retratadas de forma menos sagrada que o pai e a filha em Primavera Tardia  A viúva e a filha estão à mercê dos desejos das pessoas vulgares. Efectivamente, os três homens, que acham saber muito sobre a vida, designam de forma brincalhona um deles, um viúvo, para o papel de candidato ao novo casamento da viúva. Também tentam organizar o casamento da filha. O seu desejo vulgar e a sua bondade intrusiva perturbam e ferem o vínculo sagrado entre a viúva e a filha. Esta é outra trama importante de O Fim do Outono. Este filme é uma tentativa de subverter e re-articular as estórias sagradas de Primavera Tardia e Viagem a Tóquio como vulgares. É também prova de que Ozu-san estava a envelhecer."

Até logo!

quarta-feira, 21 de abril de 2021

Tokyo monogatari (1953) de Yasujiro Ozu



por António Cruz Mendes

Viagem a Tóquio é uma viagem entre dois mundos separados por uma distância que uma longa viagem de comboio não consegue vencer. Nos filmes de Ozu, não há flashbacks, só o presente importa. Apenas, podemos tentar imaginar o que terá sido a vida da família Hirayama na pequena vila portuária de Onomichi. Agora, os filhos mais velhos moram em Tóquio. Koichi casou, é médico e tem dois filhos, ainda crianças. Sighe, também casada, é dona de um salão de beleza. Keizo, vive e trabalha em Osaca e apenas Kyoko, a filha mais nova, professora primária, ainda vive com os pais. Shoji, outro dos seus filhos, morreu na guerra, deixando viúva a sua mulher, Noriko, que vive sozinha em Tóquio. 

O tema deste filme, a dissolução da família japonesa, é recorrente na filmografia de Ozu e a história pode, como sempre, contar-se em poucas linhas. Um casal, já idoso, visita os seus filhos que foram viver para longe e percebem que as suas vidas tomaram rumos diferentes e que os laços que os uniam já são muito fracos. No regresso, a mãe adoece e morre. A família junta-se por uma última vez no funeral. No final, o pai fica sozinho. Sighe e Minoru, um dos netos, podem parecer-nos particularmente frios e antipáticos. Noriko, um sorriso doce e radiante, é mais a afectuosa, mas aqui não há heróis, nem vilões. A vida é simplesmente assim e pode desiludir-nos muito, como nos diz Kyoko num dos diálogos finais. Resta-nos aceitá-la. 

Logo no início, uma vizinha abeira-se da janela da sua casa, quando o velho casal se prepara para partir para Tóquio. Os seus filhos “saíram-se muito bem”, diz-lhes, e devem “esperar ansiosos” pela vossa chegada. “Sim, tivemos muita sorte”, responde o pai. Não sabemos se se tratou apenas de uma resposta delicada ou se ela expressa, na verdade, os seus sentimentos. De qualquer maneira, as suas melhores expectativas sairão frustradas. Em Tóquio, uma grande e moderna cidade, os dois sentir-se-ão como estranhos. Aqui, diz a velha mãe, “se nos perdermos, nunca mais nos encontraremos”. E têm a mesma sensação em casa dos filhos. Todos procuram ser delicados e atenciosos, mas a presença dos pais é um estorvo para as suas vidas. Ocupados com o seu trabalho, falta-lhes tempo para lhes dar atenção, e os netos, para quem ele são uns desconhecidos, recebem-nos com frieza e antipatia. Numa belíssima sequência no exterior, a avó contempla o seu neto mais novo, brincando sozinho e pergunta, mais a si mesma do que a ele: “O que vais querer ser quando fores grande? Um médico, como o teu pai? Quando fores um médico, já cá não devo estar”. Os laços que uniam as diferentes gerações da sua família já não existem e o destino de cada um não depende dos outros. 

A cadência da acção, nos filmes de Ozu, é pontuada pelas conversas e pelos silêncios e é por eles que, lentamente, nos vai sendo revelado o abismo que separa os pais e os filhos. O ritmo das suas vidas, as suas preocupações, hábitos e interesses são outros e a comunicação é difícil. Para recuperarem a sua autonomia, Koichi e Saghi decidem pagar aos pais uma estadia num spa, nas termas de Atami. Mas, aí, o ambiente é demasiado excitado e barulhento. Depois de uma noite mal dormida, sentados num paredão, em frente ao mar, concordam que aquele sítio não é para eles, mas para gente mais nova. Como é que Kyoko se estará a desenvencilhar sozinha? Já viram Tóquio e Atami, já é tempo de voltarem para a sua casa. 

Antecipam o regresso a casa de Saghi, que os recebe com evidente desagrado. Os aposentos que ocupariam já estão reservados para um encontro de esteticistas e eles não querem voltar a importunar Koichi. Para onde ir, então? “Somos uns sem abrigo, agora”, diz o pai, sorrindo. A mãe ficará em casa de Noriko e o pai procura um amigo de Onomichi que, agora, vive em Tóquio. Podendo, passará aí a noite. 

Essa noite será propícia a confidências. Reúne-se Hattori e Numata, com dois velhos amigos. Embebedam-se e falam dos filhos. Um delas perdeu os dois na guerra e ele próprio um. Numata diz-se desiludido com o seu filho único, a quem terá dado demasiado mimo e que, agora, considera um falhado. “Perder um filho é difícil, mas viver com eles também não é fácil”. E o próprio Shukichi se confessa decepcionado com o seu filho mais velho, afinal apenas um médico de bairro. Esperamos sempre demais dos nossos filhos. “Alguns matariam os seus pais sem pensar duas vezes. Pelo menos, o meu”, diz Narata, “não faria isso”. 

A mãe, em casa de Noriko, dorme na cama do filho que morreu. Recordam-no as duas e ela aconselha a sua nora a esquecê-lo e a voltar a casar. “Quando envelheceres, vais sentir-te muito sozinha”. Noriko diz sentir-se feliz assim, mas, quando as luzes se apagam, deitada na sua cama, de olhos no tecto, o seu lindo sorriso desvanece-se e uma sombra de melancolia cobre-lhe o rosto. 

Na estação do comboio, no momento da despedida, juntam-se Koichi, Sighe e Noriko. O pai agradece-lhes: “Vocês foram muito amáveis para nós – todos vocês. Gostámos da nossa viagem”. E acrescenta, com uma delicadeza tingida de uma leve ironia: “Agora que nos vimos todos, escusam de nos visitar se alguma coisa nos acontecer”. De, facto, a mãe sente-se mal durante a viagem e chega muito doente a Onomichi. 

A família reúne-se e novo para o seu funeral. A tristeza de todos é sincera, mas, rapidamente, as exigências das suas vidas faz que todos regressem a casa. Kyoko queixa-se do egoísmo os seus irmãos, mas Noriko diz-lhe que, mais tarde, também ela perceberá que assim é a vida. Aliás, também ela se confessa “egoísta” num diálogo com o sogro pois, muitas vezes, esquece-se do seu marido e rende-se ao seu coração que anseia por uma vida nova. 

A última sequência do filme replica imagens da primeira. O movimento dos barcos, a escola primária, o comboio que parte… A vida retoma o seu curso. Até mesmo a vizinha que se veio despedir deles antes da partida para Tóquio assoma de novo à janela, mas, desta vez, para constar que algo mudou. Agora, o pai ficará sozinho.

sexta-feira, 16 de abril de 2021

186ª sessão: dia 20 de Abril (Terça-Feira), às 19h00


Decidida a abertura das salas de espectáculo a partir do dia 19 de Abril, o Lucky Star – Cineclube de Braga vai retomar a sua actividade com a apresentação de um mini-ciclo dedicado a Yasujiro Ozu, considerado pelos seus conterrâneos como “o mais japonês” dos realizadores do Japão. Os filmes de Ozu são dramas domésticos. O seu assunto é a família japonesa e o seu tema a sua dissolução, uma catástrofe porque, no Japão, diz-nos Donald Richie, a identidade do indivíduo assenta, numa medida importante, sobre aqueles com quem se vive, estuda e trabalha.

Assim, será projectado no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, às 19h, já no dia 20 de Abril, Viagem a Tóquio (1953), a nossa próxima sessão. O Lucky Star – Cineclube de Braga participará também na sessão de lançamento do livro de Donald Richie, Ozu, uma referência bibliográfica fundamental para o estudo deste realizador japonês, agora editada em Portugal pela The Stone and the Plot, e que terá lugar na 100ª Página, no dia seguinte, pelas 18h30. Ambos os eventos contarão com a presença do editor, Daniel Pereira.

Num artigo escrito para a Sight and Sound em 1964, Chishū Ryū, pai de tantos filmes de Yasujiro Ozu, descreveu o método de trabalho do cineasta, escrevendo que "quando eu estava a entrar no mundo do cinema em 1925 e o Sr. Ozu se tornou realizador em 1927, foram-me dadas oportunidades para aparecer em quase todos os seus filmes, tirando Os Tormentos da Beleza (1931), um filme mudo, e O que É que A Senhora Esqueceu? (1937), um filme falado. Durante os primeiros anos só me ofereciam pequenos papéis, e foi em 1930, com o filme Reprovei, mas…, que interpretei um papel bem importante pela primeira vez. Depois disso, tive a sorte de conseguir papéis importantes em cinco dos seus filmes de antes da guerra; e nos outros filmes dele ele nunca deixou de me dar a oportunidade de aparecer em alguns planos como actor secundário. Depois da guerra, fui escolhido como protagonista em quase todos os seus filmes."

"Quanto aos métodos de realização do Sr. Ozu, ele tinha o filme todo feito na cabeça antes de ir para o plateau, para que tudo o que nós, actores, tivéssemos que fazer fosse seguir as indicações dele, da forma como levantávamos e baixávamos os braços à forma como piscávamos os olhos. Isto é, não nos tínhamos de preocupar com a nossa interpretação de todo. Num certo sentido, sentíamo-nos bastante em casa quando estávamos a interpretar nos filmes dele. Mesmo que eu não soubesse o que estava a fazer e como aqueles planos se iam ligar no final, quando olhava para a primeira projecção ficava muitas vezes surpreendido ao achar a minha interpretação bem melhor do que estava à espera."

Na Filmografia Biográfica do livro de Donald Richie, traduzido por António Nuno Júnior, o norte-americano comenta a história de Viagem a Tóquio, escrevendo que "a partir desta simples narrativa desenvolve-se um dos mais extraordinários filmes japoneses de todos os tempos. O estilo de Ozu, agora completamente refinado, totalmente económico, produz um filme inesquecível por ser tão exacto, tão verdadeiro, e também por exigir tanto do seu público. Digressões de qualquer tipo são raras nos filmes de Ozu, mas aqui não existem nenhumas. Duas gerações, uma história simples que permite a todas as personagens trocarem de lugar, um esboçar do pico do Verão que permeia todo o filme e a enganadora simplicidade do seu estilo - tudo isto se combina para criar um filme tão japonês e simultaneamente tão pessoal, logo tão universal no seu encanto, que se transforma numa obra-prima. O próprio Ozu, que gostava muito deste filme, tinha muito pouco para dizer acerca dele. Após ter obtido o segundo lugar nas listas da Kinema Junpo, ele disse que "através do crescimento dos pais e dos filhos, descrevi o modo como o sistema familiar japonês se começou a desintegrar." Acrescentando, depois, de forma surpreendente, mas característica: "Este é um dos meus filmes mais melodramáticos."

No Dictionnaire du Cinéma, Jacques Lourcelles descreve a obra como "o filme mais conhecido de Ozu no estrangeiro. Os japoneses, esses, colocam ainda mais alto Primavera Tardia e provavelmente têm razão. «Através das vidas dos pais e dos filhos», declarou Ozu, «mostrei como o sistema familiar japonês se começava a desintegrar.» Fê-lo, como é seu hábito, com um pudor extremo que se aplica de forma muito expressa a nunca ceder às coisas por medo, forçando-as, exacerbando-as. O pudor dele assemelha-se ao da personagem de Chishu Ryu que se abstém de julgar de forma demasiado severa os seus filhos («Eles são menos gentis do que antes mas mais gentis do que a média» concordará ele em dizer com a mulher.) O estilo do filme é inspirado pelo desejo de preservar por um lado um equilíbrio entre a constatação lúcida de uma certa drenagem do coração entre os filhos e por outro a resignação, não menos lúcida, perante as circunstâncias que podem explicar, se não mesmo justificar, essa atitude de egoísmo. Equilíbrio, também, entre a denúncia e a serenidade, no tom do autor. Viagem a Tóquio é precisamente o tipo de obra elegíaca em que o autor faz sentir a sua dor recusando ao mesmo tempo que se vire para o negro absoluto. A personagem da enteada (Setsuko Hara) é essencial para o filme. Não só sublinha de forma paradoxal a falta de calor humano dos outros filhos, como revela sobretudo que esse defensor da família que Ozu era por excelência, defendia de forma ainda mais firme as virtudes do indivíduo. Finalmente, esta personagem serve para realçar a moral específica do filme, elemento essencial para Ozu, mostrando que aquele que recebeu menos é também aquele que vai oferecer mais. 

"Biblio.: planificação (770 planos) in «L'Avant-Scene» nº 204 (1978). Argumento e diálogos em volume, pelas Publications Orientalistes de France, 1986."

Até Terça-Feira!