quinta-feira, 19 de maio de 2022

Uccellacci e uccellini (1966) de Pier Paolo Pasolini



por André Miranda

Quem nunca falou com um corvo que atire a primeira pedra. Isto disse Jesus Cristo, certo dia, quente ou frio, provável que estivesse quente, à multidão preparada a apedrejar pobre inocente. Isto que disse Jesus Cristo, hoje eu o repito: quem nunca falou com um corvo que atire a primeira pedra. O mais certo é ficar soterrado aquele que de alvo servir. 

O corvo só está curioso. É um corvo eloquente. Todos nós já nos cruzamos com um corvo curioso e eloquente. Os dois homens que caminham – sempre caminham – respondem dizendo nada. Um nada que diz tudo, isto escreveria eu se a banalidades fosse dado. O corvo saltita e pulula, entusiasmado tenta adivinhar destino. Falha, mas anda perto nas várias tentativas. Então resigna-se. Decide contar uma história aos homens, pai e filho. 

S. Francisco dirige prédica a uma árvore onde repousam passarinhos e passarões. Acusa-os de coisas falsas, coisas que só voz encontram na boca humana, mais ainda se esta for santa. Termina exigindo árdua tarefa a irmão Ciccillo e irmão Ninetto. Já não basta obrigar a todos que o seguem o andar descalços, ainda incube estes dois de ir pelo mundo convertendo pássaros. Os santos são homens exigentes. Sentencia, com todo o acerto, irmão Ciccillo. 

Palavras há muitas e nenhuma delas, mesmo que todas fossem usadas, seria entendível à razão dos pássaros. Por isso, a Ciccillo e Ninetto resta nada a não ser o sempre multifacetado silêncio. O hálito deste é mais forte quando se o pratica de joelhos prostrado. Assim o cumpre irmão Ciccillo. Aguenta sem vergar nunca ao escárnio das almas mais destituídas de decência e às intempéries das estações de um ano inteiro. Até que um dia Ciccillo fala num chilreio. Milagre. Enceta conversa com as aves. O que quer Deus, perguntam. Deus quer amor. É ser demasiado carente. 

O sucesso há que ser replicado. No entanto, nada é possível, muito menos a conversão aviária, se o tempo e o espaço se corrompem de barafunda humana, superficial e tagarelante. Faz-se de fúria irmão Ciccillo – o outro irmão pouco mais é que coisa pouca – e destrói tudo quanto o afasta da concentração requerida pela divina tarefa. Restitui-se o silêncio. Uma brincadeira de crianças é lâmpada. Para com os passarinhos falar é urgente imitar a forma como tocam o chão, é urgente saltitar. 

Passarinhos e passarões esfacelam-se desde o infindo dos tempos. Isto contam os dois irmãos a S. Francisco que os censura por não terem ensinado o que as aves deviam ter compreendido: que este mundo tem de mudar; que um dia virá um homem de olhos azuis que dirá coisas muito acertadas. Recomecem, ordena. Recomeçam, há mais para lá de cumprir ordens de santo? 
 
O corvo termina a história, mas não a viagem. Acompanha os dois homens pelo caminho que desconhecem e pelas diversas peripécias. Situações que me escuso de aqui relatar pois atingi o limite de caracteres que ninguém me impõe. Espero que com esta decisão, decisão que mais parece preguiça de quem escreve folha de sala num domingo à noite, não vos deixe furibundos. Aos que até aqui me leram peço que façais como qualquer santo, até dos de segunda categoria, e me perdoeis a leviandade com que termino. Aos que desistiram a meio, por cansaço ou desinteresse, digo só, que se danem.



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