quarta-feira, 17 de novembro de 2021

Nayak (1966) de Satyajit Ray



por Alexandra Barros

“Não sei quem sou, que alma tenho. Quando falo com sinceridade não sei com que sinceridade falo. [...] Enlevam-me ânsias que repudio. A minha perpétua atenção sobre mim perpetuamente me aponta traições de alma a um carácter que talvez eu não tenha [...] Sinto-me múltiplo. Sou como um quarto com inúmeros espelhos fantásticos que torcem para reflexões falsas uma única anterior realidade que não está em nenhuma e está em todas. [...] Sinto-me viver vidas alheias [...] uma suma de não-eus sintetizados num eu postiço.” Fernando Pessoa, Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação.

Todos somos múltiplos. Quando é que somos quem realmente somos, quando é que somos quem gostaríamos de ser, quando é que somos o que temos que ser? O Herói deste filme construiu uma persona pública para conseguir o que mais ambicionava, fama e dinheiro, mas os custos dessa máscara vêm a revelar-se muito pesados. 

O Herói é Arindam Mukherjee, uma estrela do cinema indiano, que viaja num comboio para Nova Deli, onde irá receber um prémio prestigiado. Aí conhece uma jornalista, Aditi Sengupta, que apesar de não ter interesse nem em Arindam nem nos seus filmes, lhe pede uma entrevista, com a qual ganhará leitoras para a sua revista. Inicialmente Arindam recusa mostrar a “carne e o sangue” como lhe sugere Aditi, para não desfazer a imagem grandiosa que o público tem dele. Mas os medos, inseguranças e arrependimentos inconfessados já chegaram à garganta. Como não corre o risco de desiludir Aditi (que não o admira), acaba por falar com ela sem encenações ou filtros. 

Arindam começa por contar o sonho que acabou de ter durante um breve período em que adormeceu. No sonho, Arindam vagueia por entre colinas de cumes arredondados onde esvoaçam folhas ao sabor do vento. Arindam está feliz, as colinas são pilhas de dinheiro e as folhas são notas. Contudo, um após outro, toques de telefone sufocam o bucolismo inicial e a fortuna descomunal acaba por engolir Arindam. É uma cena surreal memorável, com a magia peculiar dos efeitos-especiais analógicos, mais focados na “poesia visual” e simbolismo que nos excessos mirabolantes dos efeitos CGI atuais. 

A tentativa de perceber o sonho é o início de uma viagem com sabor a Morangos Silvestres[1], paralela à do comboio. Uma viagem ao passado, ao longo da qual Arindam revela os seus conflitos interiores, dores de consciência e aquilo de que abdicou para ser rico e célebre. As primeiras angústias surgiram no filme onde se iniciou. Face à autoridade do respeitado actor principal, representou de acordo com as orientações que recebeu dele, mesmo sabendo que teria feito melhor se tivesse adoptado um registo mais natural. Daí para a frente continuou a submeter-se às exigências da indústria cinematográfica e sacrificou convicções, amizades e o respeito de quem lhe era querido, para não pôr a sua carreira em risco. Vive rodeado da entourage que o serve. Nunca só, mas sempre só. Sabe que será abandonado quando deixar de poder oferecer o melhor chá Darjeeling à sua equipa. O público adora-o como a um Krishna dos tempos modernos, mas o público é inconstante e imprevisível. Quando deixar de agradar, será substituído por novos deuses. 

Arindam não é, no entanto, o único que actua mesmo fora do palco e, apesar da vasta experiência no ofício da representação, é enganado pela “actuação” de uma aspirante a sua “heroína”. Entretanto, outros passageiros representam também os seus papéis. No mesmo compartimento de Arindam viaja um casal com uma filha. O pai, Haren Bose, é um empresário bem sucedido com quem um executivo de publicidade, Pritish Sarkar, que viaja no mesmo comboio, ambiciona fazer negócio. Para isso, tenta convencer a sua mulher, Molly, a fazer o que for necessário para agradar ao potencial cliente. Ela fica desgostosa com a proposta, mas sob pressão propõe uma troca de favores ao marido. Representará o papel de seduzida perante os avanços de Bose, se Pritish permitir que ela seja actriz de cinema. Esta história secundária evoca O Desprezo de Godard, filme que aliás se cruza com O Herói nas críticas que ambos fazem ao cinema orientado para objectivos puramente comerciais. 

São vários os companheiros de viagem de Arindam que criticam e expressam o seu desapreço pelo cinema indiano: Aditi, Aghore Chatterjee (um jornalista do The Statesman[2]), Haren Bose e o próprio Arindam. Censuram a indústria cinematográfica pela orientação para o lucro e o gosto popular, e pelos filmes demasiado fantasiosos e que nada dizem sobre o mundo real. Shankar, o mentor de Arindam no tempo em que este se dedicava ao teatro, aparece num flashback a criticar o cinema de forma geral, onde os actores não têm espaço para a sua arte, são apenas marionetes nas mãos do realizador e dos responsáveis pela filmagem, pelo som, pela montagem, ... 

Aditi, todavia, acaba por perceber que o cinema de entretenimento tem o seu valor. Pelo menos momentaneamente, proporciona felicidade aos espectadores. Compreendeu também que Arindam se esforça para proporcionar essa felicidade aos seus fãs e que desempenhar o papel de “estrela” exige uma grande disponibilidade para as muitas solicitações dos que o idolatram. 

Com tudo o que ficou pelo caminho, a única experiência de calor humano que resta a Arindam é a devoção dos admiradores. Aditi rasga os apontamentos escritos no decorrer da entrevista. Os heróis, por vezes, também precisam de ser salvos.

[1] de Ingmar Bergman.
[2] Um importante jornal indiano, escrito em língua inglesa.

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