quarta-feira, 12 de setembro de 2018

Mudar de Vida (1966) de Paulo Rocha



por Paulo Rocha

«Mudar de Vida», vinte e cinco ano depois...[1]

… «a gente acha... que daqui a cinco anos vai ser diferente e daqui a dez anos muito mais» (entrevista para a revista «A/Z», Agosto de 1967).

E hoje, em Ovar, em 1991, como será? Em 1966, em Portugal e no Furadouro, ninguém estava contente com a vida que levava. Estava tudo a mudar – mudavam os corações, os ideais, o modo de viver... Era o fim da sociedade dos pescadores, o início da industrialização, a emigração, a guerra em África.

Eu queria filmar o momento que passa, apanhar a vida a voar...

Os Verdes Anos era uma obra adolescente, frágil, subjectiva, lírica, com uma sinceridade quase confessional que se tornou embaraçosa para mim. Teve um grande sucesso, agradou a muita gente, mas logo a seguir eu senti a necessidade de fazer um filme que fosse o contrário do primeiro. Algo de adulto, onde se sentissem mais o mundo e os homens, e melhor executado tecnicamente.

Já desde 1959, ou 60, eu tinha escrito um argumento que se passava na ria e nas matas do Furadouro. Chamava-se “A viagem de inverno”, e foi escrito ainda em Paris, quando lá estava a estudar cinema. Embora o título possa enganar, as referências à música de Schubert eram muito longínquas. Havia muito que ver já com uma certa ideia de paisagem à japonesa, com uma atmosfera parecida com O Grito, do Antonioni. O herói era um pouco inspirado no doutor Pereira, de Ovar, grande caçador e grande contador de histórias. Viam-se os canais da ria, de madrugada, no pino do inverno, com a canoa a avançar como um fantasma até perto dos patos adormecidos, cortando a crosta do gelo à flor da água. Misturava também memórias de infância do meu pai e da minha mãe, com as grandes merendas familiares em Outubro, lá para o sul, perto das pateiras, numas grandes covas ovais de areia finíssima, cercadas pela mata misteriosa, e que agora já não se encontram. Havia cães… uma menininha doente, a mãe, de uma beleza já um pouco cansada, e o médico que gostava dela, mas… Tudo isto numa velha casa um pouco em ruínas, lá para os lados da Ribeira, longe de tudo. Foi pena não se ter feito; poderia ter sido o meu primeiro filme.

Havia também outra história, que ficou sem nome. Passava-se nos anos 20, foi-me contada pelos meus pais, e tinha “brasileiros” e cenas do São João, no Furadouro, de que já mal me lembro agora, mas de que ficou no Mudar de Vida a conversa do Raimundo durante o baile nocturno, a falar das fogueiras do São João no meio da mata, nos tempos antigos.

Bom, voltando ao Mudar de Vida, eu tinha sido criado, desde miúdo, a brincar entre os barcos e as redes, durante dois ou três meses cada verão. Para mim, aquilo era um mundo maior que o mundo das cidades, com aqueles homens ruivos, roucos, gigantescos, que pegavam naqueles rolos de madeira e naqueles remos pesadíssimos como se nada fosse..., gritando juras, insultos, numa cantilena sem fim. A miséria era medonha, com as crianças raquíticas, comidas pelas moscas e pelas pulgas, os pais encharcados de aguardente, mas eu não a queria ver. Eles, os do mar, eram os gigantes, nós, a gente do interior, os anões. Como as Companhas estavam a acabar, no início dos anos 60, eu sentia que era preciso fazer qualquer coisa para as salvar, ou, pelo menos, erguer um monumento à sua glória. O meu tio Álvaro Malaquias era sócio de uma, perdia dinheiro, mas a minha mãe ralhava com ele, para continuar…

Claro que, na atmosfera neo-realista da época, as pessoas viram o filme como um protesto contra a fome e o trabalho pesado. Mas o que eu tinha sobretudo era admiração por aqueles homens que, sem terem onde copiar, tinham inventado uma complexa forma de trabalho colectivo – reunindo centenas deles e grandes meios materiais –, capaz de lutar contra a fúria do mar numa costa sem defesa. Eu explico isso mais em pormenor numa entrevista que dei em 1966, para a revista Cahiers du Cinema, onde falo da harmonia entre o trabalho dos campos, da ria e do mar (bois, moliço), e da independência daquela gente naquele reino escondido entre as areias, durante séculos, longe de tudo. Visualmente era muito forte. Havia uma monumentalidade e uma dignidade trágica nas casas de madeira, nos barcos, nas cordas e nas redes cobrindo os areais a perder de vista. Lembrava as construções em madeira dos templos japoneses, lembrava as imagens do cinema russo do tempo do mudo.

***

O mar andava a destruir as casas, as Companhas acabavam, havia uma nuvem negra sobre aquilo tudo. Como eu era da terra, muita gente ajudou, e o filme pôde ser feito com muito pouco dinheiro. Os carros foram emprestados, a equipa ficou alojada numa velha casa de brasileiros (vivenda Pereira Dias), à saída do Furadouro. Com a ajuda preciosa do Zéni d’Ovar (o irmão da Clara), geria tudo com mãos de ferro a bela Helena, ao tempo casada com o António Pedro de Vasconcelos, que aparecia nos fins de semana. (A Helena é hoje embaixatriz, casada com o escritor Álvaro Guerra).

O engenheiro Gil, da Ulyssea Filmes, entrou com os meios técnicos e os trabalhos de laboratório, e o Telles com 200 contos, avançados pela Vitória Filmes sobre as futuras receitas de distribuição em sala. A mulher do Telles, a Margareta Mangs, uma sueca inteligente e generosa, era a montadora. Todo o resto do dinheiro, mal se esgotou aquela verba, foi arranjado por mim, semana a semana, pedindo-o emprestado. A vida era, então, ainda muito barata: bastavam 20 contos para aguentar a equipa mais uma semana. O custo total do filme terá sido de 600 a 700 contos… Se fosse hoje a fazer, a pagar os figurantes num meio desconhecido, custaria cem mil.

O que impressiona hoje é a grande quantidade de gente que aparecia nas cenas colectivas, o lado “coral”, e que desapareceu quase do cinema europeu, todo virado para dramas fechados em casas apertadas. Foi uma experiência muito interessante. É pena que hoje não se façam filmes nestas condições, de colaboração com a gente de boa vontade, longe de Lisboa. Os filmes seriam muito melhores. (Uma Abelha na Chuva, do Fernando Lopes, filmada na mesma época, teve um modo de trabalho semelhante).

Como não havia dinheiro, a câmara era uma Arriflex, velhíssima, toda desconjuntada, cujo motor mudava de velocidade a meio de cada plano, e que estava sempre a riscar o negativo. O susto era tal que eu olhava mais para o contador das imagens por segundo do que para os actores, durante as filmagens. Para iluminar a capela de Entre-Águas, foram precisos carros de bois para levar as pesadas baterias de camião… e película XXX ultra-sensível, de que só havia um rolo. Não se podia repetir. Saiu à primeira.

Era a estreia do Roque, e ele aplicou-se a fundo para pintar a praia e a ria a preto e branco. Passava as noites sem dormir, a afinar a câmara e a pensar na fotografia… Era ainda muito novo, mas o resultado causou admiração em todos os países em que o filme passou. O Roque fez uma grande carreira no cinema. Hoje trabalha em França com realizadores conhecidos. O seu melhor trabalho a cores terá sido O Sapato de Cetim, do Manoel de Oliveira.

Para os diálogos falei com o Nuno de Bragança, que me sugeriu o Cardoso Pires, então no auge da fama, e que tinha acabado de reescrever As Ilhas Encantadas, do Carlos Villardebó, para o Telles.

O Cardoso Pires falou-me no António Reis, um poeta do Porto, muito interessado em arquitectura e em literatura popular, e que tinha feito um trabalho de recolha linguística sobre os pescadores da zona de Gaia.

O António Reis era, naquela época, um personagem extraordinário, que parecia saído direitinho de um livro de ficção. Vivia em Gaia, num apartamento com vista para o rio, com as paredes todas cobertas por brinquedos feitos por loucos de um asilo: era tudo monstros de muitas cabeças feitas nas cores do arco-íris. Tinha uma maneira de falar intensíssima, os olhos brilhavam-lhe como diamantes, vestia-se como um proletário, e tinha uma cultura meio científica, meio poética. Sabia de arqueologia, geologia, tudo coisas estranhas e fascinantes. E sobretudo apaixonou-se pela história do Mudar de Vida: trabalhava como um obcecado nos diálogos, horas sem fim, meses a fio, à procura da perfeição, perdendo uma porção de quilos. Tinha um ouvido musical muito preciso, os ritmos infalíveis, não se podia tirar ou pôr uma vírgula. Na confusão do trabalho, na hora não me apercebi, mas mais tarde, em Tóquio, quando tive que traduzir tudo para japonês quando o filme lá se estreou, é que vi como os diálogos eram profundos. Por trás de cada frase havia vários sentidos possíveis, cada qual mais interessante. Ele já tinha trabalhado no Acto da Primavera e no Auto de Floripes, mas ainda tinha medo de se profissionalizar. Julgo que foi a experiência do Mudar que o animou a deixar a “Vista Alegre”, em Gaia, e a ir para Lisboa, onde eu vim a produzir-lhe os primeiros filmes no C. P. C., o Jaime, e Trás-os-Montes.

A Isabel Ruth, que eu tinha descoberto nos Verdes Anos, faz no filme uma personagem de operária revoltada, que quer deixar tudo e ir para França. É ainda mais extraordinária do que no primeiro filme. Parecia uma chama a arder. Tive o cuidado de a vestir da maneira como as pessoas de Lisboa pensam que se vestem as de província. (De outra maneira julgam que o filme é falso…). Na realidade, as operárias de Ovar, da fábrica de confecções, vestiam-se exactamente como as estudantes da avenida de Roma, blue-jeans e rabo de cavalo. Mas ninguém queria acreditar. O problema já vinha dos Verdes Anos. Toda a gente protestou contra a roupa da Isabel – as verdadeiras criadas do meu prédio, porque se vestiam muito mais à moderna, os críticos do Vavá, ali ao lado, porque estava tudo falso, era bonito de mais. Na realidade, ninguém sabe, a olhar as coisas, como elas são, mas ficam com a ilusão de que sabem… e dizem que está errado.

***

A Maria Barroso foi convidada por mim depois de a ver num espectáculo no São Luís, A Voz Humana. Ela tinha reputação de ser uma grande actriz, afastada da cena por razões políticas. A mim, o que me interessava era o lado da coragem moral e física, uma certa integridade combativa, aliada à inteligência e à ausência de auto-piedade, que ela projectava na vida corrente. Na altura, o partido socialista ainda não existia, e não se podia imaginar a futura carreira do advogado Mário Soares, que passava a vida na cadeia. A minha escolha foi apenas profissional, nada tinha a ver com provocações contra o antigo regime. Sempre fui bastante inconsciente nas minhas escolhas, os riscos que corri sempre foram por distracção. Acho que na vida tenho uma estrela na testa; a melhor forma de trabalhar é ignorar os conflitos e concentrar-me naquilo que sei fazer. Nunca me vi no papel do herói. A Maria Barroso, durante as filmagens, confirmou a minha aposta, faz um poderoso contraponto à volatilidade da Isabel. Ela é a mulher portuguesa vinda do passado, a Isabel o futuro ainda sem cara definida. Como a não conhecia bem, fiz alguns erros no desenho de uma pescadeira do Furadouro, que impediram que o resultado fosse ainda mais longe. As mulheres da beira-mar, habituadas a um trabalho duríssimo, tinham um desembaraço físico inimaginável para uma pessoa da cidade como eu. Quando eu pedi à Maria Barroso para representar com um molho de agulhas com quarenta ou cinquenta quilos à cabeça, ela perdia espontaneidade, tinha medo de cair, era peso a mais… Devia ter mudado toda a cena na mata, antes e depois do desmaio dela, adaptando-a às características da actriz. Ou, então, pedido que fizesse artes marciais durante seis meses. Mas eu estava fascinado por aquela clareira na mata, durante dez anos tinha namorado aqueles pinheiros, aquele descampado, aquela luz ao fundo, no fim de tarde. Parecia-me uma cena de um filme japonês, dos Amantes Crucificados, com a senhora a rolar pela serra abaixo, agarrada ao quimono do homem que a queria deixar para a salvar da justiça. As grandes cenas de Maria Barroso são aquelas de interior, sobre a cara dela, e em que a sua voz é inesquecível.

O personagem da Isabel ladra veio, estranhamente, do resumo de um filme japonês que nunca vi. Lá se falava de uma rapariguita que roubava a caixa das esmolas de um templo budista. Antes, tinha escrito para ela uma história de uma outra ladra, que roubava de noite pelas azinhagas dos arredores de Lisboa, entre ribeiras e as ruínas de uma fábrica de armamentos, não muito longe daqueles campos que se vêem nos Verdes. Era uma coisa mais fantasiosa, uma espécie de Combatimento di Tancredo e Clorinda, com o rapaz sempre a correr atrás dela… A situação de operária, de mulher moderna, deu outro peso ao personagem. O poço em que ela corta à faca a mão do Adelino é uma imagem de um texto do Pavese “No verão o poço secava… marcávamos os pés no lodo, juntos”. Os passarinhos a fugir do poço vêm de uma das Elegias de Duino, do Rilke… É uma cena nas falésias de Triestre, se bem me lembro.

No filme havia uma caçada nocturna a esse pássaros, com redes, que o doutor Pereira me tinha contado. O Fernando Lopes também me contou uma cena semelhante, e depois achou que eu lhe queria surripiar a cena. Acabou por não se poder filmar, por falta de dinheiro.

A cena final vem também do Fernando. Ele tinha visto um filme do Mizoguchi, A Imperatriz Yang Kwei Fei, em que, no final, o imperador fala com o fantasma da sua amada, depois de morta, e começa às gargalhadas. Achei muito bonito e resolvi acabar o filme assim, a rir, na cena das notas roubadas e dos tiros. Foi talvez uma imprudência. Na época, toda a gente achou o final mais ou menos reaccionário. Na época, o povo tinha que ser combativo, anunciar a revolução. Só muitos anos depois vi a fita da Imperatriz e, claro, o filme era diferente daquilo que eu tinha imaginado. O ataque de coração, quando a Júlia sabe que vai ter uma casa no bairro social e não resiste à alegria, era uma ideia do Manoel de Oliveira para um filme que ele tinha imaginado em pleno período neo-realista, passado nos arredores do Porto, num bairro chamado “Xanghai”.

Outra ideia, pedida emprestada à Agustina, foi a conversa do casal dos velhos sobre o primeiro casamento do homem, enquanto ela, sua prima, adoecia de ciúmes…

A conversa no baile a dizer “dança este ano, que para o ano podes estar grávida”, vem de um poema japonês com mil anos, no Man'yôshu.

Quem não gostou nada do filme foi o Comandante Tenreiro, na época o grande patrão das pescas em Portugal. Ele só o foi ver com uma semana de atraso e ficou furioso com a imagem de pobreza que saía dali. Ele queria proibir a fita, mas já era tarde. Eu bem tentei diminuir o aspecto miserabilista, filmando os palheiros com luz do fim da tarde. Ao meio dia, o sol a pique, aumentava a sombra das tábuas, e as casas pareciam pobres. Foi impossível trabalhar dentro dos palheiros verdadeiros. As pulgas eram tantas que nenhum pó as matava; ao fim do dia, ficavam os desenhos das meias marcadas a vermelho nas pernas. Era o nosso sangue…

***

Foi o Zéni quem construiu os interiores, e muito bem, num estúdio improvisado na cave da vivenda do Pereira Dias, onde a equipa se alojou, aproveitando tábuas de casas que o mar tinha levado.

A vinda do Brasil do Geraldo Del Rey para fazer o papel do Adelino vinha da minha amizade com o Glauber Rocha, o chefe de fila do cinema novo brasileiro. Tínhamos muitas preocupações comuns, e volta e meia encontrávamo-nos, ora em Paris, ora em festivais. Eu estava no festival de Acapulco com os Verdes, quando ele lá apareceu como produtor dos Fuzis. Ficou no meu quarto, discutíamos a noite inteira. Ele contava-me as ideias que tinha para a sua Terra em Transe, que tinha muito a ver com um retrato do governador do Rio, o Carlos Lacerda; eu falava-lhe no “Sepúlveda” e no Mudar. Precisava de um actor com um físico muito especial, de pescador calejado, e ele insistia com o Geraldo, um baiano que ele tinha lançado no Deus e Diabo. Usando um teco-teco (um avião-táxi), o meu irmão Jorge foi desencantá-lo em pleno sertão, onde ele estava a filmar, e lá o convenceu a deixar tudo e vir à conquista da Europa. O Geraldo, mal chegou ao Furadouro e se vestiu de pescador, foi como um milagre. Como tinha algum sangue índio, a pela dele era um bocado bronzeada, e movia-se com uma milagrosa agilidade. Entendeu-se logo às mil maravilhas com os remos e as cordas. Ficou amigo do João da Torreira, um pescador com um corpo imponente; pareciam primos, iam beber para as tabernas juntos.

Aplicou-se a fundo ao papel. Só não conseguiu falar português de cá, sem sotaque. A voz dele ouve-se apenas a cantar o “Bendito”, e a seguir à dança da Senhora da Saúde, na boca de um pescador que lhe quer dar de beber. Foi uma tentativa de juntar as forças do cinema novo do Brasil e o de Portugal. 

O filme passou na Bienal de São Paulo. As pessoas gostaram muito do trabalho do Geraldo, que é pasmoso. Mas a verdade é que o filme não saiu no Brasil. Era preciso ser dobrado em brasileiro (ninguém de lá percebia uma palavra do nosso sotaque), e isso era muito caro. O Geraldo e a Tânia, a mulher dele, ficaram por cá um ano, à espera de um papel na Abelha, se bem me lembro. Como eram bem intencionados e muito simpáticos, foram adoptados por toda a gente do Vavá e do cineclube do Porto: Alexandre Alves Costa, etc… Cantava muito bem com o violão, era excelente em baladas de Coimbra. (Apareciam lá em minha casa o Goes, o Correia de Oliveira e o Paredes, que preparava a música do filme).

Um filho do Geraldo, gerado cá em Portugal, é hoje actor de telenovela – era um dos principais no Sassaricando, o rapaz novo por quem se apaixona a actriz que podia ser mãe dele.

*** 

A minha amiga japonesa Etsuko Takano, que acompanhou as filmagens e a montagem, chegou a ter lições de guitarra do Paredes. Ficou amiga da Maria Barroso, e pouco depois tornou-se numa das mulheres mais célebres do Japão, fama que até hoje dura.

O filme foi ao festival de Veneza, onde foi especialmente bem recebido pela crítica francesa. O Michel Cournot disse maravilhas, o Sadoul gostou muito… Saiu uma entrevista nos Cahiers, que provocou a ira do Carlos Porto (na revista Plano, por não ser nada ortodoxa… Falava dos quatro elementos, e de que o cinema do Porto, dentro do país, era um reino à parte. Mas a Seara Nova, pela boca do Machado da Luz, fez uma bela crítica, e na “Rádio e Televisão”, o futuro patrão da C. I. P., o Ferraz de Carvalho, que na época queria ser realizador, disse que era o melhor filme português de todos os tempos…

O filme ainda foi à Expo 68, em Montreal, ao festival de Hyères, etc. Passou nas televisões canadiana, alemã e polaca, e estreou-se com sucesso em Tóquio, numa sala de grande prestígio. No Japão saíram muitas críticas calorosas, e foi editado um lindíssimo cartaz e um catálogo de luxo, com os diálogos. Há, agora, bastante interesse pela fita na Itália. Julgo que, num futuro próximo, sairá cá em vídeo, e também no Japão.

O Rui Almeida, na época ainda um rapaz novo, fez espantosas fotografias da rodagem, que era necessário reencontrar, pois estão perdidas. A Cinemateca de Lisboa gostaria de fazer com elas uma grande exposição, a comemorar os 25 anos do filme.

Um jovem vareiro que seguiu as filmagens e, mais tarde, se tornou célebre, foi o Joaquim Pinto, um futuro realizador e produtor de filmes.

***

As canções do baile nocturno – “Ora aperta, amor, aperta, aperta a minha cintura…” –, deram um trabalho medonho a gravar. Como as filmagens foram pela noite dentro, as pessoas começaram a dançar mais devagar, e o ritmo do baile variava de plano para plano. Acabei por andar com a minha mãe pela Madragoa e pela Alfama à procura de peixeiras da nossa zona que ainda soubessem de cor a canção e que fossem comigo para o estúdio da Nacional Filmes. Foi preciso convencer os maridos delas. Quem as ensaiou a mudar de ritmo de plano para plano foi a Margareta, a montadora sueca, que tinha paciência e ouvido musical.

O sr. António Coelho, de Ovar, actor amador com muito mérito, fez de médico, o sr. Gesta, de patrão da Companha…, o que ele já era na realidade, se bem me lembro. A Edwiges Dias Simões fez de pescadeira a pentear a amiga, na abertura do filme.

A minha mãe, Cândida Malaquias, insistiu comigo para pôr no filme um cantar antigo da região: “Indo um lavrador para Arada, encontrou um pobrezinho…” O Giacometti, da recolha da música popular, veio ao Furadouro gravar o “Bendito”, depois de ter visto o filme. Não sei se existe em disco.

Na época, alguma crítica achou que havia desequilíbrio entre a parte documentário e a parte dramática. Hoje acham que é um dos aspectos mais modernos do filme, a colagem de materiais diversos.

Muitas coisas terão ficado por dizer… Só posso agradecer a ajuda generosa de centenas de homens e mulheres do Furadouro que me deram vontade de fazer este filme.

in «Mudar de Vida», 25 anos depois...», João Semana, 15 de Abril de 1991.

[1] Esta transcrição do artigo de Paulo Rocha publicado no quinzenário João Semana, de Ovar, provém de duas fontes incompletas: uma publicada no blog “Artigos do Jornal João Semana” de Fernando Pinto e outra do catálogo dedicado a Paulo Rocha durante a Omaggio a Paulo Rocha inserida no programa do XIII Festival Internacional de Cinema Jovem (Turim, 10-18 de Novembro de 1995). Apesar de servirem como complemento uma à outra, não temos maneira de saber se é este o texto completo e os primeiros quatro parágrafos são traduzidos do italiano. De qualquer forma, Paulo Rocha fala aqui de imensa coisa, e pareceu-nos indicado dar a palavra ao realizador neste caso. Da nossa parte, e falando de descobertas pessoais relacionadas com os bastidores da produção, parece-nos capital a importância deste filme para o cinema português, sabendo que reuniu à volta de Paulo Rocha António Reis, António Campos, Alfredo Tropa, Noémia Delgado e Joaquim Pinto, todos futuros realizadores. (João Palhares)

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