quarta-feira, 26 de setembro de 2018

O Rio do Ouro (1998) de Paulo Rocha



por João Palhares

Na mata de Roquelanes, três irmãos despojados das vidas abastadas que acreditavam ser suas por direito matam-se durante as horas do dia pelas três chaves de um tesouro que viu morrer centenas de outros antes deles. Noutro século e noutras paragens, onde as árvores brotam sangue e a água é de mil fontes, nascem três meninos reais com estrelinhas na testa que são trocados por cães e cadelas e se tornam filhos de moleiros. Mais à frente na estrada, uma fada vestida de velha troca os corpos da filha feia e da enteada bonita de uma mulher ruim, trocando também as voltas à mulher que passa a tratar muito mal a filha amada e muito bem a enteada que odeia. Uma pomba encantada é laçada com ouro por um príncipe e aliviada do alfinete que tinha na orelha, transformando-se em mulher. A filha de um ministro entra num palácio ao lusco-fusco com uma camisa fina de cambraia às cavalitas de um criado para responder à adivinha de um rei. Na sétima encruzilhada de um bosque perdido, uma mulher vira uma camisa e umas calças ao contrário e veste-as a um lobo que se transforma no seu irmão. Mas antes de tudo isto acontecer, três rios irmãos combinaram encontrar-se no mar mal acordassem na manhã seguinte, uma das manhãs da Criação. O Guadiana foi o primeiro, “escolheu lindos sítios e partiu de seu vagar. O Tejo acordou depois, e como queria chegar primeiro ao mar, largou mais depressa, e já as suas margens não são tão belas como as daquele. O Douro foi o ultimo que acordou, por isso rompeu por montes e vales, sem se importar com a escolha, e eis porque as suas margens são tristes e pedregosas.”[1] 

Os rios são testemunhas das andanças do mundo há centenas e centenas de milhares de anos, ora fazendo vogar calmamente quem viesse por bem e respeitasse o seu curso ora precipitando a perdição dos seres impulsivos que aí procuravam a morte. Quanto não pode um rio, ainda, das enchentes mortais e cascatas a pique às correntes e caudais que nos alimentam as casas e a vida em comum? “Sou um rio injusto, com margens de labaredas”, escreve Mário Cesariny de Vasconcellos na sua Pena Capital, “se me navegam, gelo, se me fogem, queimo.” O Rio Douro vela há quase trezentos anos pelas belíssimas vinhas que parecem escorregar pelas suas margens, alimentando as gentes que povoavam as redondezas de enguias, de escalos e de trutas, irrigando as margens em profundidade e fazendo brotar carvalhos, estevas, zimbros e sobreiros. Mas também afogou as milhares de almas portuenses que tentavam fugir das forças napoleónicas em 1809 pela Ponte das Barcas, abandonadas pelo comandante das forças portuguesas, D. António de São José de Castro, que saiu cobarde e sorrateiro pela noite; também reclamou para si o barão de Forrester, que deixara a sua Inglaterra natal pelo seu amor desmedido ao rio Douro apenas para encontrar a morte nas suas águas em 1861. Os cadáveres dos tripulantes foram todos encontrados e enterrados, menos o do barão, que ficou para sempre no leito do rio[2]. 

“O rio Douro não teve cantores”, escreveu Agustina Bessa-Luís no início da sua Fanny Owen. “Teve-os o Mondego e o Tejo também. Mas, para além das cristas do Marão, em vez do alaúde e da guitarra havia o repique dos sinos ou o seu dobrar espaçado. Havia o tiro certeiro dos caçadores de perdiz, lá pelas bandas da Muxagata e do Cachão da Valeira. E o clarim das guerrilhas ouvia-se através da poeira de neve que cobria os barrancos de Sabroso. O rio Douro ficou banido da lírica portuguesa com a sua catadura feroz pouco própria para animar os gorjeios dos bernardins, que são sempre lamurientos e que à beira de água lavam os pés e os pecados. E, no entanto, trata-se de um rio majestoso como não há outro. Eu vi-o em Zamora e não o reconheci; diz-se que as margens eram carregadas de pinheiros e daí o seu nome dum que quer dizer madeira. Mas entra em Portugal à má cara. Enovela o caudal sobre penhascos, muge e ressopra como um touro com molhelha de couro preto a subir uma calçada. Não creio que os poetas o habitem; e, no entanto, Dante tê-lo-ia amado e preferido; como preferiu os estaleiros incandescentes de Veneza e os túmulos abertos das arenas de Arles, para descrever o inferno. Por cá, são brandas as liras; com o aguilhão da fome, às vezes saltam umas revoltas que vibram na Calíope alguma bordoada. Com o ferrão do amor, não se cometem senão delitos em forma de soneto ou de sextilhas. Epopeias são raras, as musas são mimosas e não ardentes.” 

Os rios como forças, motivos e parábolas primordiais atravessam também as obsessões apaixonadas do grande Paulo Rocha, que os menciona em várias ocasiões. Sobre Jean Renoir, com quem trabalhou em Le caporal epinglé (1962) como assistente de realização e a quem chamou mesmo o “Rio Renoir”, menciona “a água (sacra) dos rios sem destino”, “o rio das ilusões e dos desejos que fazia flutuar os corações dos homens”, “a lógica cega e flutuante daqueles rios obscuros onde se escondiam as pulsões de morte”[3]. Sobre Agustina e no que parece uma carta de amor escreve que “através da tua boca falam pedras e plantas, animais e água, o rio, a luz do dia e a luz do céu”, que “as respostas da Sibila são anteriores à invenção da escrita. É uma lufada, uma palavra oral, rio sem barragens, águas primordiais.”[4] Estas comparações podem muito bem revelar a grande amizade e o grande amor que Rocha tem pelas pessoas de quem fala, pois também há rios na descrição de António Reis, que “morava num apartamento em Gaia com vista sobre o rio. As paredes estavam cobertas de bonecos de pano, de todas as cores, feitos pelos loucos de um manicómio. Os bonecos eram monstros com várias patas e cabeças e prenunciavam os desenhos de Jaime. Naquelas janelas viradas para a bruma do rio, havia uma energia irracional, um sopro de vida à beira do abismo.”[5] Em A Ilha de Moraes (1984), filme belíssimo em que Rocha continua na pista de Wencesleau de Moraes depois da Ilha dos Amores (1982), há uma monja japonesa que lhe diz que “Tokushima é famosa pelos seus rios e pelas suas mulheres. Encontramos mulheres belas perto de belos rios por todo o mundo.” Na mesma cena, com o rio em relevo, a mulher indaga sobre a palavra “mujô”, que se pode traduzir e explicar como a mutabilidade e a impermanência das coisas, dizendo que “é uma palavra que é muito cara aos japoneses. O rio corre sempre no mesmo sentido e nunca sobe a encosta. A água que corre à nossa frente nunca é a mesma. Essa palavra está gravada no fundo dos nossos corações.” Por fim, e em 1987, numa apresentação de O Desejado ou As Montanhas da Lua (1987) na Cinemateca Portuguesa, Rocha remata a questão e parece mesmo descrever o seu fabuloso Rio do Ouro (1998) ao dizer que “quando nos banhamos no rio do prazer absoluto, morremos, porque descobrimos a outra face da realidade, a realidade absoluta. A água do rio não recusa ninguém.” 

O Rio do Ouro é então o culminar das grandes paixões de Paulo Rocha, o culminar de uma forma trabalhada e ensaiada com os melhores técnicos no Japão, mantendo a impulsividade, a frescura e a curiosidade inata de sempre. Três saltos no eixo incríveis na cena do comboio, quando o “Zé dos Ouros” vê algo que não quer nem deve ver e que a Carolina de Isabel Ruth quer descobrir à força toda. É o princípio do fim. Se se descobre o efeito de certas coisas, porque não pô-las em prática, porque não insistir e repetir até ser só beleza em perfeita continuidade? O chamado erro técnico pode ser uma decisão consciente de dramaturgia. E pode ser preciso calcar horas e horas os arredores de Lisboa, conhecer pescadores, filmar em cabanas com pulgas nas meias, ler O Romance do Genji[6], passar anos no Japão, aprender a língua e servir de adido cultural entre dois países que tão misteriosamente e tão paradoxalmente se ligam para a tomar. O rio Douro da infância de Paulo Rocha é também o rio dos amores de Wencesleau de Moraes, do martírio dos pescadores do Furadouro, das mulheres invioláveis de Manoel de Oliveira, da ferocidade de Agustina, do apartamento em Gaia de António Reis com vista sobre as águas, das mortes poéticas de barões assinalados e das mortes trágicas de populares a fugir pela sobrevivência das tropas do general Junot, do teatro da vida do “Rio Renoir”, das vidas dilaceradas de Mizoguchi e das míticas imprudências do rei a quem chamaram “O Desejado”. Uma hora e quarenta que contém o mundo, um rio que se transforma em mar sem ter de chegar à foz, da mente indomável e continuamente mutável de Paulo Rocha, sem barragens ou diques sociológicos que a detenham. Há quem faça a recolha muito necessária de narrativas e músicas milenares para a posteridade, há quem as sintetize com movimentos de câmara desarmantes à volta de barcos rabelos e guindastes afiados, rodas populares com coreografias fascinantes, madrinhas ciumentas com poderes para lançar feitiços, sereias inocentes cujos salvamentos provocam a fúria das águas, fogo e sangue, pragas de abelhas e alpendres voadores, quedas de carros por falésias, comboios descarrilados e sacrifícios aos deuses pagãos ou aos quatro elementos naturais. Há quem faça O Rio do Ouro e nos continue a deixar pasmados com o resultado. Passaram vinte anos e o mergulho e a viagem são os mesmos, fontes inesgotáveis de sobressaltos e descobertas.

[1] in «Contos Tradicionaes do Povo Portuguez», de Teófilo Braga. 
[2] Joseph James Forrester amou o Douro como ninguém. Foi o primeiro estrangeiro a conseguir o título de barão em Portugal, conseguido pelo seu excelente trabalho cartográfico, nomeadamente um mapa completo do rio Douro que ia desenhando com grande rigor científico e ao largo das muitas horas em que ancorava entre as águas no seu barco rabelo com cozinha, quartos, casa-de-banho e sala de jantar. Esse amor e esse episódio não passaram despercebidos a Paulo Rocha, que os queria incluir num dos seis episódios do primeiro rascunho do filme, na altura chamado A Balada do Rio do Ouro.
[3] in «O Rio Renoir», a grande ilusão – revista de cinema, nº15-16, Abril de 1994.
[4] in «A Sibila do Campo Alegre», Público Magazine, nº189, 9 de Setembro de 1990.
[5] in «Uma figura luminosa – António Reis, poeta do cinema», Jornal de Letras, Artes e Ideias, nº 480, 17-23 de Setembro de 1991. O rio era o Douro.
[6] O Romance do Genji é um épico escrito no início do século XI por Murasaki Shikibu, mulher da corte imperial japonesa. Foi editado em duas partes pela Relógio d'Água em 2008.

Sem comentários:

Enviar um comentário