quarta-feira, 19 de setembro de 2018

Verdes Anos (1963) de Paulo Rocha



por João Bénard da Costa

Paulo Rocha 
e o regresso de Oliveira 

Verdes Anos foi uma produção de Cunha Telles. Este iniciara a sua actividade com a co-produção do filme de Pierre Kast, Vacances Portugaises que em 1962 trouxe a Lisboa actores como Catherine Deneuve e Françoise Arnoul ou técnicos como Coutard. Com eles, trabalharam técnicos portugueses do curdo de Telles. Assim, em torno deste, se foi formando uma equipa que, de realizadores a actores, de concepções de produção a concepções de argumento, marcou finalmente o tão falado corte. Independentemente dos respectivos méritos, é essa a atitude que atravessa as obras de Paulo Rocha, Fernando Lopes e António de Macedo, estreadas em 63, 64 e 66: Os Verdes Anos, Belarmino e Domingo à Tarde

Das origens de Fernando Lopes e de tudo o que o ligava à televisão falei já. Paulo Rocha era, por essa altura, relativamente marginal a quaisquer grupos. Estivera, é certo, por esses anos, perto de alguns dos universitários católicos que mais inovaram em matéria de gostos críticos, mas nunca teve nessas estruturas papel de evidência. Depois, vagueara pela França, com uma bolsa do I.D.H.E.C. e estagiara com Renoir em Le Caporal Epinglé. Ao voltar, em 1962, trabalhou com Oliveira no Acto da Primavera e na Caça. Quando se decidiu passar à realização, foi buscar a esse grupo de católicos dois dos mais relevantes colaboradores: Nuno de Bragança (1929-1985) que viria a ser um dos expoentes da nova literatura portuguesa nos anos 60 e 70 e o poeta Pedro Tamen (n. 1934). O primeiro adaptou o argumento e escreveu os diálogos; o segundo foi autor da letra da canção leitmotiv do filme, musicada por Carlos Paredes (n. 1925), nome grande da música deste século. 

Verdes Anos é um filme bem secreto e bem singular, que permanece como uma fonte de equívocos para quem dele faça uma leitura linear. Se o filme não envelheceu uma ruga e se revê hoje com o maior espanto é porque a história dos amores infelizes da «sopeira» (magistralmente interpretada por Isabel Ruth – n. 1940 – que na obra se afirmava como o primeiro grande rosto do cinema novo) e do «sapateiro» (Rui Gomes, n. 1939) era esvaziada de qualquer verismo para ficar agarrada ao conflito de décors e ao conflito de actores. Não julgo que haja no Paulo Rocha da época qualquer influência expressa do cinema japonês que, depois de Mudar de Vida (1967), foi o paradigma do cineasta. O que existe é um amor total aos personagens que se exprime num erotismo difuso e nada físico, numa espécie de «saudade de os amar» e de «tudo amar» que, recuperando um imaginário típico da literatura romântica (da novela popular ao Amor de Perdição) cortam com o lado queirosiano de que o cinema português tinha sido quase sempre involuntário herdeiro, para o re-ligar a uma tradição fantomática em que o fatalismo é o único fio condutor. 

É nesse sentido que Verdes Anos é um filme-charneira na história do cinema português. Por um lado, faz a ponte entre um imaginário visual que o nosso cinema quase sempre havia ignorado e um imaginário específico dos nossos melhores filmes. Ou seja, é o primeiro filme a articular coerente e cultivadamente o fundo visual e romanesco que se insinuara nalgumas das nossas obras clássicas. Por outro, dá as chaves das «figuras de retórica» possíveis na evolução futura desse imaginário, o que faz de quase todos os melhores dos filmes posteriores seus herdeiros. 

Ainda, Verdes Anos é o filme que melhor dá a ver Lisboa e Portugal como espaços de frustração, espaços claustrofóbicos, sem saídas, onde tudo se frustra e tudo agoniza numa morte branda. Se há retrato do «país que nos mata longamente» é Verdes Anos, e o crítico Alberto Vaz da Silva (n. 1936) terá tido a premonição disso quando na época escreveu que o filme era «além do mais português, porque muito raras vezes uma obra de arte deixou, entre nós assim transparecer também além do mais todo o fatalismo, o tempo absorto e o peso surdo, pesado e prolixo que há tanto se enraizaram na nossa terra e a vão definindo, no seu e nosso devir»[1]. 

«Fatalismo», «peso surdo pesado e prolixo» estão também, de modo formalmente diversíssimo, no Belarmino de Fernando Lopes, superficialmente confundido à época com os processos do «cinema-verdade». Belarmino, nome real de um boxeur em decadência que interpreta o seu próprio papel, é sobretudo um belo filme confessional, perseguição de uma voz sempre off (voz do entrevistador) ao rosto quase sempre presente do protagonista. Implacável campo-sem-contra-campo, o filme é uma habilíssima articulação entre o flash-back e o «frente-a-frente». «Se Belarmino tivesse vivido noutro país, talvez fosse um grande campeão». Esta afirmação, feita no filme, faz passar Belarmino do fait-divers para a tragédia, sem que Fernando Lopes assuma nunca uma posição trágica. E, numa abordagem quase inversa à de Paulo Rocha, é um filme construído sobre o combate de um personagem com um décor, essa portentosa Lisboa que só pode levá-lo ao K.O. em qualquer round

Obras paradigmáticas para o devir do cinema português, não admira que a nova crítica de então as tenha particularmente saudado como sinais de ressurgimento. Estou a citar o futuro cineasta Alberto Seixas Santos (n. 1936) que também disse que essas eram «as duas primeiras obras que uma geração ousa reivindicar»[2].

Curiosamente, nesse mesmo texto, Seixas Santos opunha-as a Manoel de Oliveira, introduzindo a primeira reserva de fundo a um cineasta que então (tão efemeramente) reunia a aclamação de todos os sectores. Falando da sua obra como da «única coerente de todo o nosso cinema», dizia que ela era uma «cartada corajosamente jogada e perdida. Perdida pelos erros do cineasta, perdida também pelas limitações do cinema que quis servir. E esta afirmação é um aviso que é bom seja feito hoje, quando o mestre do Norte começa a tomar, nas bocas mais jovens, as cores exaltantes do mito».

1963 vira, com efeito, também, além das estreias de Artur Ramos e Paulo Rocha, as estreias de O Acto da Primavera e de A Caça, os dois filmes de Oliveira feitos com dinheiro do Fundo. Tiveram encomiásticas críticas e as revistas Plateia e Filme dedicaram a Oliveira uma «homenagem nacional» e um número especial, esse último saído em Dezembro de 1963, quando o cineasta completou 55 anos.

«As cores exaltantes do mito» estavam, pois, vivas em 1964, quando Seixas Santos escreveu as palavras transcritas, embora o «mito» fosse só cinéfilo e só de nome ultrapassasse as fronteiras nacionais[3]. Mas uma tal unanimidade – no ano de arranque do cinema novo – parecia poder permitir a distanciação. A caução de Oliveira já não era mais necessária até «porque o cinema que quis servir» aparecia longe do cinema moderno, encerrado num realismo contra o qual haveria a remar. O Acto da Primavera – segunda longa-metragem de Oliveira – surgia à crítica mais informada como o ponto-limite de um estilo que nele se esgotava: o seu decantado documentarismo.

À excepção de um texto (Nuno de Bragança) ninguém pareceu compreender que o Acto não era um ponto de chegada mas um ponto de partida, onde se prefigurava o cinema futuro, não só do Autor, mas também de todo o cinema que teria início no final da década.

Por um lado, porque o Acto é (tanto como obras futuras de Godard ou Duras ou como Gertrud de Dreyer, pouco posterior) um cinema da palavra ou seja um cinema em que a palavra (o teatro) se tornava no próprio cerne da sua existência. Por outro, como muito mais tarde escreveu José Manuel Costa[4] porque Oliveira eregia «a ultrapassagem da convenção como postulado» e longe de proceder a uma reconstituição fílmica «enunciava sobre uma matéria pré-existente (o texto teatral) um universo imaginário» em que mais uma vez a função do cinema era repensada. O Acto, como porventura Persona de Bergman ou Gertrud de Dreyer, é obra que enuncia e anuncia a última grande viragem e revolução cinematográficas: a que postula o realizador como «produtor de efeitos cénicos» sendo a imagem o pré-texto do texto que dá a ver. Só que, e para usar ainda palavras de José Manuel Costa, a aparente clareza do Acto ocultava a sua máxima perturbação, demasiado inovadora para ser compreendida. Sucedia o inverso no críptico A Caça em que a perturbação se sobrepunha à clareza, mas o processo era o mesmo e a mesma a modernidade. Oliveira, como o Dreyer de Gertrud, não estava «para trás», estava demasiado à frente. Só a obra futura do cineasta permitiu descobrir esta evidência, tornando-o de novo em pedra de escândalo. Na primeira metade dos anos 60, o Acto e a Caça (antes de Pasolini e das teorias sobre o cinema-poesia) puderam ser vistos apenas como fechos de abóbada morais e murais. Muito pelo contrário, eram os fundamentos de uma das mais totalizantes aventuras do imaginário deste século.

Seja como for, os anos 63/64 que deram Verdes Anos e Belarmino, por um lado, e A Caça e O Acto, por outro, não deixaram nada igual ao que estava. O cinema português recriava uma tradição, enunciava um novo tipo de imaginário e afirmava-se em obras e não só em intenções como um cinema novo. Tudo isso – como sempre – se apagou muito depressa, mas uma demarcação de água era agora possível.

E ninguém deixou já de a ver na adaptação de Namora que António Macedo fez em 1966, no Domingo à Tarde, de novo dominado por Isabel Ruth. Até porque o realizador – ele também, figura em certa medida, marginal e de gostos esotéricos – conseguiu dominar, melhor do que os outros, certas deficiências técnicas e, servindo o livro, deu dele uma adaptação que à generalidade do público pareceu singularmente escorreita.

Em 1964-66, uma certa euforia voltou a reinar no cinema português, sobretudo na sua mais jovem camada. Em Março de 1964, Cunha Telles anunciava à revista Filme dez novas obras para 1965[5] ao passo que Lopes Ribeiro afirmava categoricamente não ter qualquer outro projecto «enquanto permanecerem as condições actuais do cinema português».

Descontados fins publicitários, num sentido ou noutro, as respostas traduziam a alteração da conjuntura. O «cineasta oficial» (não mais o seria) afirmava-se desempregado e, efectivamente, depois de O Primo Basílio não voltou a realizar filmes de fundo. O homem, a que então se chamava o «produtor-milagre», anunciava trabalho para todos os novos e fazia vir a Portugal Truffaut (La Peau Douce) e Kast para co-produções.

Por outro lado, o cinema novo ultrapassava as barreiras nacionais, caso que desde Camões não se verificava. Dom Roberto e Os Pássaros estrearam em Paris[6]. Verdes Anos ganhou a Vela de Prata no Festival de Locarno de 1964 (sobre concorrentes chamados Pasolini ou Clive Donner) e foi também premiado em Acapulco; Belarmino foi escolhido para Pesaro e Salso-Porretta; Domingo à Tarde foi seleccionado para Veneza em 1965. E, compulsando os Cahiers du Cinéma desses anos, sucedem-se as referências ao cinema português com Manoel de Oliveira, Fernando Lopes, Paulo Rocha, Fonseca e Costa e Cunha Telles em lugares de relevo.

O bom acolhimento da crítica estrangeira continuou para mais dois filmes produzidos por Telles: As Ilhas Encantadas (1965) e Mudar de Vida (1967). O primeiro foi realizado por Carlos Villardebó (n. 1926), português radicado em França desde os seis anos e autor de inúmeros documentários sobre arte, iniciados em 1948. Cunha Telles chamou-o para a primeira longa-metragem, em hora de aposta grande. Porto Santo (a ilha que outrora servira de décor à Canção da Terra) foi escolhida para local das rodagens e o papel de protagonista foi confiado a Amália, rodeada por Pierre Clementi e Pierre Vaneck, numa história «encantada» de amor a três, paradisíaca e infernal. O filme, irregular, é assaz interessante e obteve excelente acolhimento da imprensa francesa quando foi estreado em Paris, em 1966. Mas, em Portugal, o fiasco só pôde ser comparável ao do Vendaval Maravilhoso e «afundou» Cunha Telles, como outrora o Vendaval «afundara» Barros. Embora sem culpa nenhuma dela (Amália é excelente, nesse filme em que não canta), a vedeta ficava associada a dois dos maiores colapsos do nosso cinema.

Mudar de Vida, opus 2 de Rocha, introduziu na obra deste novas direcções, entre o legado nostálgico de Os Verdes Anos e os rumos da sua obra futura. Pano de fundo é a emigração, fenómeno que nos anos 60 afectara profundamente o tecido social e cultural português[7]. E é o primeiro filme de Rocha em que se afirma a influência do cinema japonês, nos belos planos de juncos, névoa e rio, ao mesmo tempo que se acentua a forma de requiem e uma oculta liturgia que nele foi sempre programa e arte de inventar personagens. Personagens que aqui são de novo Isabel Ruth (e a sequência da capela é uma das mais belas do cinema português), o brasileiro Gerardo Del Rey (actor de Glauber Rocha) e Maria Barroso (n. 1925) que, depois de fulgurante começo no teatro nos anos 40, o Governo forçara a abandonar os palcos[8].

Mas quando Mudar de Vida se estreou em Portugal (em 1967), o ambiente eufórico que rodeara Cunha Telles já se tinha desvanecido e o filme foi o ponto final das suas ambições. Apesar do relevo histórico e artístico destas obras, nenhuma logrou qualquer sucesso comercial e, apesar do seu baixo custo[9], todas fizeram perder dinheiro.

Várias razões poderosas contribuíram para este insucesso. Por um lado, o descrédito crítico e público a que chegara o cinema português não permitiu à generalidade dos espectadores distingui-los das outras produções. Por outro, o vanguardismo das propostas estéticas destes filmes encontrou difícil eco num panorama cinematográfico cada vez mais excêntrico em relação à Europa, devido à crescente virulência da Censura, nesses anos finais do salazarismo.

Da enorme mutação do cinema nesses tempos de novas vagas e novos cinemas, pouco ou nada chegava a Portugal que permitisse enquadrar esses filmes. A «elite burguesa» que os podia entender andava demasiado suspeitosa destas coisas do cinema português para os consumir. O espectador tradicional pouco ou nada se revia em obras que lhe pareciam herméticas e elitistas. Ou seja, por um lado, estava em vias de desaparição o fenómeno de analfabetismo que permitia «comer de tudo», por outro ainda não tinham aparecido novos alfabetos capazes de acederem a um tipo de cinema tão flagrantemente oposto a padrões comuns (e, ainda por cima, com iniludíveis deficiências técnicas). Paradoxalmente, a recepção aos filmes do «cinema novo» de 1963-67 ressentiu-se da sua ruptura com o cinema «do Lumiar» como da herança desse mesmo cinema. Se a batalha contra da década anterior fora ganha, não o foi a batalha pró dos anos 60. Até porque essa batalha contra tivera motivações políticas claras (atacar um cinema que já nada reflectia da realidade do País) e a batalha pró as não tinha, pois nenhum dos cineastas ou obras citados denunciava – ou podia denunciar, por óbvias razões censoriais – essa mesma realidade. Julgara-se que o movimento de oposição cultural era suficientemente poderoso para «obrigar» cada português que votara Delgado em 1958 a ir ver esses filmes. O engano foi trágico. Até porque qualquer dessas obras – aparentemente «formalistas» e aparentemente «idealistas» - não era de molde a despertar fervores ideológicos e a esquerda tradicional desconfiou tanto delas como a direita. O vanguardismo estético não tinha qualquer contrapartida em vanguardismos ideológicos. E os filmes feitos por homens que conheciam o cinema contemporâneo para um público que o desconhecia pouco suporte crítico tiveram, numa década que assistiu também ao declínio do movimento cine-clubista[10] e em que a crítica neo-realista conheceu derradeiro surto.

Assim, essa produção não teve destino muito diverso das obras medíocres que os cineastas «do antigamente» continuavam a conseguir estrear. Um só filme – e foi também uma Produção Cunha Telles – pôde ser superficialmente aproximado do movimento. Tratou-se de O Crime da Aldeia Velha (1964), novo filme de Manuel Guimarães baseado numa peça do muito empenhado dramaturgo Bernardo Santareno (1924-1980). Mesmo nesse caso, o convencionalismo da adaptação e erros de distribuição (com a francesa Barbara Laage no papel principal) impedem qualquer confusão e o filme nada mais é do que obra de rotina. Piores – quase todos catastróficos – são os coevos Pão, Amor... e Totobola (Henrique de Campos, 1964) em que se tentou lançar a actriz de revista Florbela Queiroz (n. 1943); Nove Rapazes e Um Cão (1964) do prolífico Constantino Esteves (1914-1985) herdeiro persistente do pior cinema dos anos 40 e 50; Aqui Há Fantasmas (1964), infeliz comédia de estreia de Pedro Martins (n. 1928), onde ainda aparece o par Ribeirinho-António Silva; Uma Hora de Amor (1964) de Augusto Fraga, a tentar impor como vedetas os ídolos televisivos do nacional-cançonetismo dos anos 50 e 60 que foram Madalena Iglésias (n. 1939) e António Calvário (1938-1988); A Última Pega (1964), mais um Constantino Esteves; Canção da Saudade (1964) de Henrique Campos, com Florbela Queiroz; Fado Corrido (1964), obra da decadência de Brum do Canto que se atribuiu a si próprio o papel de um fidalgo marialvista apaixonado por Amália; Passagem de Nível (1965) de Américo Leite Rosa, com Madalena Iglésias e Virgílio Teixeira; Rapazes de Táxis (1965) de Constantino Esteves, com António Calvário; 29 Irmãos (1965) de Augusto Fraga, tendo como pano de fundo a apologia da guerra colonial; O Trigo e o Joio (1965), nova adaptação de Fernando Namora, dirigida por Manuel Guimarães, com Eunice Muñoz e Igrejas Caeiro; A Voz do Sangue (1966), outra história de Angola de Augusto Fraga; Sarilho de Fraldas (1967) de Constantino Esteves, mais uma vez com Madalena Iglésias e Calvário e que, graças às vedetas, ainda deu para as despesas[11]; Operação Dinamite (1967) de Pedro Martins, patética exploração da receita 007, com Nicolau Breyner; e um incrível regresso ao filme religioso em Uma Vontade Maior (1967) de Carlos Tudela.

Infelizmente, o último filme de Produções Cunha Telles não se afastou muito destas catástrofes[12]. Já à beira da falência e em guerra aberta com os seus realizadores, Telles resolveu apostar em António de Macedo, apesar de tudo o cineasta que no box-office lhe dera menos razões de queixa, para um filme de espionagem, também com Florbela Queiroz. Chamou-se Sete Balas para Selma (1967) e não só o não salvou, como levou os seus companheiros de aventura a chamarem-lhe piores nomes do que aqueles que o Diabo chamou à mãe. Em 1967, como em 1959, o panorama parecia ser de novo de completo desastre, mitigado apenas por nova curta-metragem de Oliveira (As Pinturas do Meu Irmão Júlio de 1965, sobre a obra do pintor Júlio Pereira, irmão de José Régio que comentava em off os quadros mostrados) e pelas curtas-metragens de novos como Fonseca e Costa, Seixas Santos ou António-Pedro Vasconcelos (n. 1939) que, vindos da crítica e dos cine-clubes, se juntavam ao movimento que continuava a pugnar por um novo cinema.

Mas este parecia agora – funda a aventura Cunha Telles – cada vez mais distante. No Governo, as coisas endureciam, sobretudo a partir de 1962 quando a política cultural ficou em mãos ainda menos flexíveis. Os anos 60 foram de grande repressão, com o encerramento da Sociedade Portuguesa de Escritores em 1965 e uma paranóia censória bem indicativa da agonia do regime. Por toda a parte, os «falcões» se sucediam às «pombas» e a repressão atingiu limites próximos do insustentável.

Foi por essa altura que os homens do novo cinema – juntamente com Manoel de Oliveira – se lembraram de ir bater a outra porta. A porta da Fundação Calouste Gulbenkian, grande Fundação privada, uma das maiores do mundo, que desde 1956 conduzia uma acção que transformara a vida cultural portuguesa.

Fora fundada por Calouste Gulbenkian (1869-1955), multimilionário arménio, conhecido pelo cognome de «Senhor 5 por Cento» pois lhe cabiam 5 por cento dos interesses petrolíferos das maiores companhias do mundo. Em 1940, fixara-se em Portugal, procurando paz em tempo de guerra. Por cá se deixou ficar até morrer em 1955. E, no seu testamento, instituiu a criação de uma Fundação que tivesse o seu nome e se dedicasse às artes, ciências, educação e fins caritativos. Em 1956, a Fundação iniciou actividade, presidida por um prestigioso advogado português, José de Azeredo Perdigão (n. 1896). Rapidamente se tornou num estado dentro do Estado e a sua acção (sobretudo nos campos da música e das artes plásticas) transformou por completo o cinzento panorama da vida artística portuguesa.

Mas, durante os primeiros dez anos de existência, pouco fizera pelo cinema. Em 1967, decidiu-se a alargar a sua actividade até ele e propor aos cineastas – agrupados no Porto numa «Semana de Estudos Sobre o Novo Cinema Português» - que ponderassem como seria desejável uma intervenção da Gulbenkian.

Obviamente, o convite não caiu em saco roto. Após um ano de negociações, a Gulbenkian aceitou subsidiar uma cooperativa que agrupasse todos os homens do «cinema novo», (chamada Centro Português de Cinema) por um período experimental de três anos durante o qual tomaria a seu cargo esse novo cinema. Em Novembro de 1968 – vencidas sérias resistências – o Conselho de Administração da Gulbenkian assinava a histórica decisão. O Mecenas estava achado e um novo período da história do cinema português se iniciou.

in «Histórias do Cinema», Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1991

[1] ALBERTO VAZ DA SILVA, in «O Tempo e o Modo», Dezembro, 1963.
[2] ALBERTO SEIXAS SANTOS, in «O Tempo e o Modo», nº 19, Outubro de 1964. 
[3] O Acto da Primavera estreou-se em Paris, em 1963, e ganhou, em 1964, a Medalha de Ouro do Festival de Siena. Mas foi recusado por Veneza em 63, não tendo sido admitido na selecção oficial. Só em 1964, em Locarno A Caça e O Acto se impuseram à atenção da crítica internacional. Jacques Bontemps escreveu nos Cahiers du Cinéma (Outubro de 1964, nº 159) que A Caça era «bande suffisamment à part pour planer au dessus de tous les films presentés». Pela mesma altura, Freddy Buache homenageou em Lausanne Oliveira e Trnka. Em 1965, foi a vez de Langlois e da Cinemateca Francesa. «Voilà plus de trente ans que Manoel de Oliveira illustre le cinéma portugais», escrevia-se em Dezembro de 1965. Só neste ano o prestígio internacional de Oliveira começou, para além de referências mais antigas e altamente elogiosas de Bazin ou Sadoul. 
[4] Cf. JOSÉ MANUEL COSTA, artigo «Construção e Reprodução na Obra de Oliveira: um Jogo de Tensões» no volume Manoel de Oliveira, ed. Cinemateca Portuguesa, pp. 47-56, Lisboa 1981.
[5] Os dez filmes anunciados por Cunha Telles eram As Ilhas Encantadas, O Crime da Aldeia Velha de Manuel Guimarães (de que se falará adiante), três co-produções com a França e mais cinco filmes que se não fizeram ou se fizeram muito depois: Lembranças de Um Inverno que teria sido a primeira longa-metragem de Fonseca e Costa, se o realizador não tivesse sido preso por razões políticas; Bonecos de Luz a atribuir a António Campos (n. 1922) que viria a ser um dos grandes documentaristas portugueses; Lisboa, filme de animação de Mário Neves; um documentário sobre o famoso escritor Aquilino Ribeiro (1885-1963) de Fernando Lopes; e A Promessa, adaptação da peça de Bernardo Santareno, por António de Macedo. Só este filme se fez, mas dez anos mais tarde e já não com Cunha Telles.
[6] Embora apenas em 1966, quando também foram lançados As Ilhas Encantadas e Verdes Anos.
[7] Durante os anos 60, a emigração portuguesa atingiu a cifra impressionante de 1 184 227. Quase todos emigraram para a Europa (França, Alemanha, Luxemburgo, Bélgica) e muitos clandestinamente (420 505). A oposição chamou a este fenómeno (que levou a população portuguesa a diminuir de 150 000 entre 1960 e 1970) «votar com os pés».
[8] Maria Barroso é casada, desde 1949, com Mário Soares, presidente da República Portuguesa desde 1986. Como o marido, sofreu inúmeras perseguições políticas durante o Estado Novo que lhe impôs em 1948 a retirada dos palcos, Mudar de Vida marcou o seu regresso como actriz que prosseguiu depois – já a seguir ao 25 de Abril – nalguns filmes de Oliveira, como Benilde, Amor de Perdição ou Le Soulier de Satin. Na Benilde, de Oliveira, fez o papel de criada. Curiosamente, tinha sido ela – numa das suas interpretações mais aclamadas – quem criara a protagonista da peça de José Régio em que o filme se baseia, aquando da sua estreia em 1947.
[9] A maior parte destes filmes foi incrivelmente barata. Verdes Anos e Domingo à Tarde custaram cerca de 800 contos; Belarmino cerca de 500.
[10] No início dos anos 60, havia 45 cine-clubes no País. Em 1970, apenas 18 continuavam activos.
[11] Foi o último filme em que apareceu António Silva, aos 80 anos.
[12] Quase todas devidas à casa produtora CINEDEX, fundada em 1962 por Manuel Queiroz (n. 1921), que, entre esse ano e 1965, em que acabou, produziu 10 longas-metragens. Quase todas exploraram o nacional-cançonetismo dos anos 60, tendo como vedetas, além dos nomes indicados, o fadista Fernando Farinha (1929-1988) ou a actriz de revista Leónia Mendes (n-1922). Mas, como já referido, foram também Queiroz e a Cinedex quem produziu Pássaros de Asas Cortadas.

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