por João Palhares
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Entre os anos de 2008 e 2009, Joana Torgal e Rodolfo Pimenta receberam um apoio da Fundação Minas da Panasqueira para gravar um banco de sons dessas famosíssimas explorações mineiras situadas entre o Fundão e a Covilhã, na região da Beira Interior. Mais de doze mil quilómetros de túneis e subterrâneos foçados pela mão humana, até aos trezentos metros de profundidade, fundados alguns anos depois de um carvoeiro ter descoberto uma pedra negra e brilhante no século XIX e se terem suscitado os interesses e as explorações de variadas companhias, nacionais e estrangeiras, com os picos de actividade e procura situados pela altura da Segunda Guerra Mundial, estando hoje tudo nas mãos da Almonty Industries do Canadá. Torgal e Pimenta confessaram ter lá estado bastante tempo, viveram entre os mineiros, assistiram aos processos de extracção, transporte, filtragem automática, filtragem manual, moagem automática, moagem manual, embalagem automática, embalagem manual, mistura química e transformação dos cristais de volframite durante meses sem sequer ligar uma câmara, ficando apenas de ouvidos bem atentos e olhos bem abertos. Terão tirado as suas notas, percebido todo o processo, assistido às rotinas diárias de homens e mulheres do raiar da aurora ao cair da noite, provavelmente entrevistado essas pessoas, apanhado chuva, neve e bastante sol, entre os picos dos dois solstícios que são tão pronunciados e extremados nessa zona do país. “Sempre fomos forçados a desenvolver projectos com poucos meios,” disseram ainda os realizadores a Mário Fernandes, em 2013, “de outra forma estaríamos em casa sentados à espera do subsídio. É claro que o apoio de amigos e familiares foi fundamental para a nossa permanência nas Minas da Panasqueira e para eles vai o nosso eterno agradecimento.”
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Já com a câmara, parecem esquecer esse trabalho todo (“parecem,” porque a rodagem foi preparada de forma minuciosa, envolveu invenção de equipamento e talvez faça falta uma entrevista ou um artigo de fundo sobre o processo de Joana Torgal e Rodolfo Pimenta, que vêm do cinema de animação e são criadores muitíssimo pacientes) e deixam-se levar pela estranheza e pela intensidade mágicas do processo até às últimas consequências. E em vez de prepararem um documentário didáctico cheio de diagramas, legendas, documentos, testemunhos e vozes off explicativas preferem jogar com as poucas luzes humanas e a escuridão tenebrosa das minas (há momentos no filme em que se não nos soubéssemos na mais pura e dura das realidades, nos acharíamos num filme de terror ou de ficção científica), põem a câmara perigosamente perto e primorosamente longe, em planos que se parecem com os quadros mais negros e desesperados do pintor britânico John Martin (sendo outros sem parentesco traçável), atiram-na para cima de transportadoras e deixam-na vibrar violentamente com mecanismos enormes e esmagadores enquanto filmam, forçam ao máximo o reconhecimento visual dos movimentos rapidíssimos das engrenagens, enchem-na de terra e de água tornando-a também parte dos elementos. “Ao filmar-se certos planos não se sente medo,” dizem no entanto os realizadores na mesma entrevista, “mas antes respeito e alguma adrenalina. Tal como filmares em cima dos vagões, com o tecto a meio palmo da testa, ou confinados num buraco onde só cabíamos nós e uma pá escavadora para recolher os escombros, ou ainda, quando te encontravas em cruzamentos sonoros de máquinas escavadoras a aproximarem-se na escuridão. Tanto a mina como a lavaria são lugares labirínticos onde nos podemos “perder ou encontrar”.”
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Finda a aventura, então, estes choques encadeados de sons e de imagens. Entre as embalagens metódicas do pó trabalhado antes de ser enviado para os laboratórios, que marcam um abrir e fechar de ciclo. A partir de certa altura, quando os mineiros já estão lá dentro e as máquinas carburam e sugam, furam e ardem, arrastam e rebentam, acontece um milagre. Enquanto a matéria mineral se transforma, também os planos se sucedem numa reinvenção constante, alcançando por vezes a abstracção pura e criando a sua própria música, ritmos constantes, hipnóticos e alucinatórios que alimentam as máquinas e que, como em Vertov, não dependem das outras artes para descrever ou deixar em testamento o seu século, os seus vultos e os seus heróis. Um fio amarelo e vermelho a rasgar a escuridão, um camião a atravessar o céu azul e a despejar uma nuvem negra pela encosta clara e frágil de um monte, um buraco iluminado com um homem em silhueta e como arquétipo a dominar um engenho mecânico e o seu meio, representado num enquadramento e num claro-escuro sintéticos. As metáforas são infindáveis, dos homens como autómatos, presas do trabalho e do complexo militar e industrial responsável pelos massacres do nosso mundo à figura reversa ascética e resiliente que pode significar a justiça derradeira e o alívio de todas as penas: continuam cá, como colossos a oscilar ao vento sem nunca tombar. 1895-2010, a história das indústrias mineiras e cinematográficas em cinquenta e cinco minutos sem diálogos, peripécias narrativas ou sopas do audio-visual. Para lá e para cá do tempo, para lá e para cá do espaço, a garantir-nos como D. Quixote, Al Jolson ou Alain Resnais e através das décadas e dos séculos que por mais que tenhamos visto, “ainda não vimos nada”. Bem hajam, Joana e Rodolfo.
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