quinta-feira, 6 de julho de 2023

Lucky Star (1929) de Frank Borzage



por António Cruz Mendes

Tal como um funâmbulo, o melodrama percorre um cabo lançado sobre um abismo. Pode vencê-lo e ser sublime ou despenhar-se e tornar-se ridículo. Borzage, em Lucky Star, ganha esse desafio. Em seu auxílio, vão estar Janet Gaynor e Charles Farrell. Vamos voltar a vê-los, neste ciclo que dedicamos a Borzage, em A Hora Suprema e O Anjo da Rua. Juntos, fizeram mais nove filmes e eram, à época, os “America’s favorite lovebirds”. 

Mas, pode um paraplégico, apenas movido pela força da sua vontade, levantar-se da sua cadeira de rodas e, depois de várias quedas e com a temporária ajuda de umas muletas, ser capaz de caminhar sobre a neve para resgatar a sua amada de um destino infeliz? Quem já viu A Palavra, de Carl Dreyer, sabe que, pelo menos no cinema, os milagres são possíveis. Toda a obra de arte contém um elemento retórico. Saber usar os recursos de que um meio artístico dispõe para convencer o público da sua verdade é o repto do artista. A magia de Borzage está em fazer-nos aceitar como possível, por ser tão desejada, a reunião de Tim e Mary, no preciso momento em que ela se prepara para partir com Wrenn, sacrificando a sua felicidade ao bem-estar da família. Como poderia terminar de outra forma esta história de amor banhada de ternura e casta sensualidade? 

A relação entre os dois começa pelas valentes palmadas com que ele a castiga por causa de uma pequena vigarice. Mais tarde, ela vingar-se-á desse castigo partindo à pedrada uma janela da sua casa. Mas, Tim, isolado e preso a uma cadeira de rodas, acolhe com simpatia aquela miúda selvagem, mas de bom coração. Afinal, não foi ela que lhe escreveu para a trincheira a desejar-lhe boa sorte e a oferecer-se para lhe tricotar umas meias? E ela descobre, nessa casa limpa e ordenada, e no sorriso amigável do seu anfitrião, um mundo que lhe era estranho. Ela pergunta-lhe: "o que aconteceu às suas pernas?”. “Nada”, é a resposta: “estou a poupá-las para uma ocasião especial”. E lava-lhe as mãos e oferece-lhe um lenço para que não volte a precisar de limpar o nariz na manga do vestido. Quando ela se vai embora, promete-lhe voltar amanhã e no dia seguinte e todos os dias. 

Tim entretém-se a “consertar coisas” e ambos, ele e Mary, têm algo que precisa de ser consertado. Mary, pequena e suja, está habituada a recorrer a expedientes pouco correctos para garantir a sua sobrevivência, e ele próprio regressou estropiado da guerra. Os dois começam por se aproximar por curiosidade, depois, por simpatia. Mais tarde, um sentimento mais forte começa a uni-los. O bracelete que Tim oferece a Mary parece-lhe “um grande anel de noivado”. Na cena em que Tim lhe lava a cabeça, descobrindo que, afinal, os seus cabelos são louros, franqueia-se um limiar. E, quando se prepara para lhe lavar as costas (“afinal, quantos anos tens?”), recua pedindo-lhe para o fazer ela própria no regato próximo da casa. 

Não resisto a transcrever, do belíssimo texto que João Bénard da Costa escreveu sobre Lucky Star, a parte em que ele se refere a esta passagem do filme, na sua opinião, a sua sequência mais genial: “Começa com um balde. Tim decidiu dar um banho a Mary e a limpar de vez a imagem e o corpo dela. E são ovos o que usa para essa ablução, que a transforma também de morena em loura. À medida que a espuma aumenta e que a vergonha e a aflição de Mary crescem, sela-se a relação física entre os dois, sublinhada pelo plano magistral em que vemos a quantidade de cascas de ovo partidas. Tim começa a descer no corpo de Mary, que se lhe oferece. Mas, a dada altura, a evidência do corpo de mulher sobrepõe-se à da criança que até então vira nela. Detém o gesto de a despir e manda-a, para a profundidade de campo, continuar o banho que já não é capaz de lhe dar. Borzage abre, de novo, todo o espaço, para nos dar a entrever um pouco do corpo nu de Mary e um pouco do olhar que Tim não resiste a lançar sobre ela. E, desse banho, Mary sai mulher”. 

A transfiguração de Mary está completa quando ela se veste em casa de Tim para ir ao baile que se vai realizar no salão dos bombeiros. Mas, aí reaparece Wrenn. Conhecemo-lo desde uma das primeiras cenas do filme, quando se confronta com Tim no alto de um poste eléctrico que têm de reparar. Mary é já o motivo dessa disputa. 

Wrenn é um rufia, arrogante e mentiroso. Na guerra, é ele que envia Tim para a missão que o deixará paralítico. Não podia ir ele próprio porque tinha de ir visitar “umas damas”. A melhor forma de conquistar uma mulher, confidencia a um soldado, é prometer-lhe casamento e “prometer não custa nada”. Antes disso, tinha mostrado a Tim uma carta de Mary semelhante àquela que ele recebera. Nessas breves cenas, onde, da guerra, só percebemos o clarão das explosões, podemos antecipar o drama que se vai seguir. 

Dois anos depois, Wrenn expulso do exército, pavoneia-se fardado na sua terra, onde seduziu uma rapariga. No baile, vai abandoná-la, enfeitiçado pela beleza de Mary. Repudiado por ela, passa a insinuar-se junto da sua mãe como alguém que, desposando-a, poderá tirar a família da miséria em que vive. A Sra. Tucker rende-se a essa esperança e o futuro de Mary parece estar decidido quando o milagre acontece e o amor triunfa. 

A história baseia-se num pequeno conto de Tristan Tupper, Três episódios da vida de Timothy Osborn, mas o argumento do filme altera-o significativamente. No conto, Tim, ferido na guerra, regressa a casa onde conhece uma rapariga rica e outra pobre, com quem acaba por casar. No filme, a rapariga rica desaparece e o final é completamente diferente. 

Se hoje podemos ver Lucky Star, isso deve-se a um acaso também, ele milagroso. O filme foi realizado na altura em que surgiram os primeiros filmes falados e, para poder acompanhar essa novidade, a produção encomendou, à pressa, uma versão com poucos diálogos e alguns efeitos sonoros para o mercado norte-americano. Parece ter tido pouco sucesso. No estrangeiro, foi distribuída uma versão muda. As duas foram consideradas perdidas até que uma cópia do filme mudo foi redescoberta, em 1990, nos arquivos do Museu do Cinema de Amesterdão, no meio de outros filmes antigos. A partir da versão holandesa e do roteiro original, foi possível reconstituir os intertítulos e o filme de Borzage “ressuscitou”. 

Quando o João Palhares e o José Oliveira fundaram este cineclube, decidiram baptizá-lo com o nome do filme de Borzage que hoje vamos ver. Das suas razões, caberá a eles falar. Mas, tendo em conta a simpatia de todos os que nos visitam e apoio dos nossos associados, parece-me que também o nosso cineclube nasceu sob a luz de uma estrela ditosa.




Sem comentários:

Enviar um comentário